São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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LUZ SEM SOMBRAS

A diretora de fotografia de Eric Rohmer fala do apurado domínio técnico do cineasta, que o leva a dispensar assistente de direção e continuísta

especial para a Folha

Quando Diane Baratier, diretora de fotografia de "L'Anglaise et le Duc", aparece, o que surpreende são o físico e a voz de adolescente, já que tem bem mais de 30 anos. Filha de cineastas, Baratier relembra o tempo em que morou no Brasil e sua formação na escola Louis Lumière, em Paris. (CATHERINE ARNAUD) O filme foi rodado em vídeo digital?
Filmamos com a Betacam digital 790, da Sony. Não é a mais avançada em alta resolução. Escolhemos esse modelo porque oferece mais conforto. A mais recente era um protótipo no momento da filmagem, e, se houvesse algum problema, não teríamos câmera sobressalente. De todo modo, a alta definição não teria adiantado para o filme, porque tínhamos a intenção de unir as cenas externas e internas. As externas são em duas dimensões, e as internas em três dimensões.
Para as junções plano a plano, achamos que o vídeo seria mais adequado. E, como Rohmer gosta de só divulgar suas intenções de direção no último momento, durante a filmagem, era preciso garantir essa possibilidade de decidir a decupagem e a forma de rodar cada cena no último momento, como sempre. Essa graça e essa leveza que são intrínsecas ao trabalho de Rohmer foram preservadas no filme pela utilização do vídeo digital, dada a natureza do filme.
Para preparar esse filme fizemos dois curtas-metragens em vídeo: "Le Modèle" e "Une Histoire Qui Se Dessine". Isso levou ao todo três anos, preparar o filme e rodá-lo. Também fiz um estágio no INA (Institut National Audiovisuel) para me familiarizar com os efeitos especiais, e fizemos os primeiros testes com Rohmer logo depois. Filmamos entre abril e junho de 2000. Isso me ocupou pessoalmente durante dois anos. Há dez anos que nós dois nunca passamos muito tempo sem nos ver.
Fale de sua trajetória.
Meus pais são cineastas (Jacques e Nena Baratier). Depois de me formar no colégio, queria trabalhar em cinema e meu pai me aconselhou a ser assistente de fotografia, em vez de direção. É verdade que é mais interessante e mais prático quando, depois, se tem vontade de fazer filmes. Então fiz estágios como segunda assistente de fotografia. Depois compreendi que era preciso fazer a Louis Lumière (escola francesa que forma especificamente técnicos de cinema e de fotografia). Inscrevi-me no curso noturno.
Depois o Brasil entrou em minha vida e afastou a escola Louis Lumière: um amigo me ofereceu um trabalho de reportagem fotográfica no Brasil, e eu fui. O Brasil era um sonho de infância, porque em 1968 meu pai tinha feito um documentário, "Cintas Largas", sobre uma tribo indígena que teve o primeiro contato com a civilização por meio dessa filmagem. Eu tinha 5 anos e meu pai não me levou. Eu senti uma grande frustração e quis superá-la indo pessoalmente ao Brasil. Então aceitei fazer essa reportagem, que pagava pouco e só dava passagem de ida. Eu tinha 20 anos e era 1984.
Ao chegar ao Brasil, dois dias depois, conheci meu marido, um pescador brasileiro. Vivemos em Caravelas, na Bahia, durante quatro anos. Lá eu tive nossa primeira filha. Éramos muito pobres. No começo meu marido nem tinha barco. É duro ser pobre no Brasil! Realmente vivi como mulher de pescador durante quatro anos e compreendi que não devia ficar presa lá: decidi voltar à França, continuar aprendendo cinema e voltar para "arquivar" o Brasil (na verdade Diane só voltou ao Brasil no ano passado, com suas duas filhas). Esse país é fabuloso em sua diversidade, em sua mistura de civilizações, em tudo o que acontece, e tive a impressão de que a TV no Brasil não filma suficientemente seu país, sua sociedade. Por outro lado, no nível ecológico e geopolítico eles se exprimem e agem mais que na Europa.
Assim, voltei a Paris em 1988 e finalmente fiz o curso noturno na Louis Lumière. Depois conheci Raoul Coutard (diretor de fotografia de vários filmes de Godard, de Truffaut, de "Lola" de Jacques Demy etc.), que me contratou para sua equipe.
Coutard me ensinou a estar a serviço de um filme. Depois Eric Rohmer procurava alguém novato em fotografia quando o conheci. Era para "L'Arbre, le Maire et la Médiathèque", em 1991. Eu fiz o enquadramento e a fotografia do filme e me tornei diretora de fotografia. O segundo filme de Rohmer em que fiz a fotografia foi "Les Rendez-Vous de Paris", em 1993. Depois houve "Conte d'Eté", "Anniversaires" e "Conte d'Automne". E finalmente "L'Anglaise et le Duc". Também fiz a fotografia de diversos documentários, entre os quais um de Jean-Louis Comolli, chamado "De Mères en Filles", que achei muito interessante, e um filme de Abraham Segal, "La Vie de St. Paul", que adorei.
Como é trabalhar com Eric Rohmer?
Ele foi quem realmente me formou na profissão de diretora de fotografia; ele me formou em sua técnica. Eu me adaptei a seus desejos. Paralelamente, se eu lhe comunico algum problema técnico, ele chega a modificar sua direção para contornar esse problema. É um grande técnico. Ele conhece de tal maneira sua profissão que nada é problema. Trabalhar com os outros cineastas é que é problema (risos).
Com Rohmer o trabalho é particular: ele não tem assistente de direção, pelo menos há vários anos. É ele quem faz seu plano de trabalho. Também não tem continuísta na filmagem. Portanto, filmamos respeitando ao máximo a cronologia dos fatos para não cometer erros. Somos todos um pouco responsáveis pelo filme, durante a filmagem, cada qual em seu campo: Eric Rohmer, Françoise Etchegarry na produção, Pascal Ribier no som e eu na fotografia.
Mary Stephen, a montadora, não assiste às filmagens, assim como nós não vemos a montagem do filme. Rohmer controla tudo, mas com delicadeza. Nada de angústia nem de cólera. Os dias são pequenos, nunca mais de oito horas. Muitos ensaios para as junções. Não filmamos as cenas em vários ângulos. Rohmer tende a colocar menos rigor formal no movimento dos aparelhos, de zooms, e mais no foco, na profundidade de campo, a luz que não deve fazer sombras marcadas nas paredes etc. Ele não faz concessões. Sua exigência passa por isso, e sua elegância passa pela fluidez. Em "L'Anglaise et le Duc" ele tinha uma grande equipe, cerca de 150 pessoas. Algo excepcional na carreira de Eric Rohmer, como em "Perceval le Gallois" e "La Marquise d'O".
Rohmer nos demonstrou que ele pode funcionar igualmente bem e harmoniosamente numa grande produção ou quando dirige sua pequena equipe. Nesse último filme foram três meses de felicidade, e muitos choraram no fim das filmagens. Foram excepcionais as condições para mim: eu tinha um eletricista-chefe, iluminadores. O filme é realmente a soma de 150 energias que se encontram na tela.
Você considera difícil para uma mulher a profissão de diretora de fotografia?
Também é difícil para um homem. Dá dor nas costas. O prazer de pegar a câmera e filmar pessoalmente tem um alto preço. Depois, para se impor como mulher, durante anos -e é necessário- tendemos a apelar para nossa parte masculina, o que é uma pena! Eu fiz isso quando ainda não tinha total confiança em mim mesma e sofri.
Em "L'Anglaise et le Duc", o que foi maravilhoso para mim é que a verba permitiu que eu tivesse ajuda para carregar as coisas pesadas, e não ficava exausta à noite depois do trabalho. Por outro lado, trabalhando com outros grandes profissionais da imagem, eu não estava só e não tinha medo de fazer perguntas, de às vezes me deixar conduzir por pessoas muito mais experientes que eu. Isso me permitiu novamente considerar maravilhosa essa profissão.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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