São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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A Amazônia e o fim dos jesuítas

Kenneth Maxwell

Nas duas últimas décadas, os historiadores, ou muitos deles, têm depreciado o papel de eventos e personalidades. Também houve uma tendência a rejeitar a história das idéias ou ao menos uma fácil interação de causa e efeito entre idéias e a implementação de políticas. Do lado positivo, contudo, presenciamos o crescimento de uma história mais internacional, menos eurocêntrica.
Digo isso logo de saída, por óbvio que seja, porque me parece que estarei às voltas aqui com um evento (a expulsão dos jesuítas de Portugal e de seu império em 1759); com uma personalidade dominante, para não dizer dominadora (o marquês de Pombal, que, para todos os efeitos, governou Portugal de 1750 a 1777); com idéias (sobretudo, no caso das monarquias ibéricas, uma reflexão revigorada e sistemática sobre o papel do Estado em promover o desenvolvimento econômico e assegurar para si o monopólio da coerção, dos orçamentos, da administração e da Justiça); e com a história internacional (pelo que focalizarei uma remota periferia do mundo setecentista: a bacia amazônica).
Esse evento (a expulsão portuguesa), essa personalidade (Pombal) e essa periferia (a bacia amazônica) foram no entanto a centelha que pôs em marcha o processo, pela Europa católica afora, que deitou por terra a Sociedade de Jesus. Como saldo, em Portugal, foi o Iluminismo que forneceu um fundamento, uma justificativa, bem como os meios com que remediar os estragos deixados pela retirada forçada dos jesuítas.
Talvez seja importante ressaltar que aqui é onde e quando teve início a expulsão. Ainda tendemos a olhar do centro para as margens, porém foi nessas margens mais distantes do mundo europeu, onde os jesuítas sempre haviam sido mais ativos, que os primeiros decretos para suprimir a Sociedade de Jesus foram efetivados. Por que uma ação no Brasil teve tamanha repercussão alhures é um assunto à parte. No espaço que ora me cabe, interessa-me a centelha. Por que a Amazônia? Por que Pombal?
Havia dois aspectos distintos, mas relacionados, do ambiente intelectual de Portugal setecentista que influenciaram o modo de Pombal pensar sobre os problemas com que se deparou ao assumir o cargo em 1750; um e outro, cada qual a seu modo, tiveram impacto na disputa com os jesuítas. Primeiro, havia o aceso debate sobre questões fundamentais a respeito de filosofia e educação. Segundo, existia um considerável corpo de pensamentos sobre vários aspectos da economia política de Portugal.
O estímulo para aquele em Portugal, tal como noutras partes da Europa, foi a conquista intelectual de Descartes, Newton e Locke. As mais importantes obras que emergiram dessa escola intelectual em Portugal incluíam as de Martinho de Mendonça Pina e Proença (1693-1743), que tentou adaptar a Portugal algumas das teorias de Locke, especialmente sobre educação; os escritos do cristão-novo dr. Jacó de Castro Sarmento (1692-1762), que introduziu idéias newtonianas em Portugal; e as obras do dr. Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), outro cristão-novo que deixara Portugal em 1726, trabalhando a partir de então na Inglaterra, Holanda, Rússia e finalmente na França, onde (de 1747 até sua morte, em 1783) foi colaborador dos enciclopedistas e escreveu sobre medicina, pedagogia e economia.

Iluminismo português O mais influente de todos eles foi o oratoriano Luís Antônio Verney (1713-1792), autor de "O Verdadeiro Método de Estudar", publicado em 1746. Luís Antônio Verney passou o mais de sua vida adulta em Nápoles e Roma, onde estudou com Antonio Genovesi (1712-1769) e travou amizade com Ludovico Antonio Muratori (1672-1750). Em Roma, tornou-se membro da Arcádia e por um tempo atuou como secretário do enviado português ao Vaticano, Francisco de Almada e Mendonça, que era sobrinho de Pombal.
A congregação do Oratório de São Felipe de Nery, à qual pertencia Verney, tomara a dianteira em Portugal, assim como em outras partes da Europa católica, na introdução de experimentos científicos e no conflito com os jesuítas acerca de modelos pedagógicos. Os oratorianos eram ativos promotores das ciências naturais e destacavam também a importância da língua, gramática e ortografia portuguesas, que acreditavam devessem ser estudadas diretamente e não pelo desvio do latim. A razão de serem os jesuítas o alvo dessa crítica era óbvia: eles detinham o monopólio da educação superior em Portugal e da educação secundária no Brasil.
A par desse debate filosófico, parte de um amplo fenômeno europeu, existia uma importante segunda corrente de pensamento, mais específica em relação a Portugal. Era um corpo de idéias e discussão sobre governo, economia e diplomacia, que emergira na primeira metade do século 18 em meio a um pequeno, mas influente, grupo de conselheiros ultramarinos e ministros de governo, um grupo dentro do qual Pombal era uma figura-chave. D. Luís da Cunha, sucessivamente embaixador português na República Holandesa e na França, era o mais formidável desses pensadores e autor de uma análise abrangente das fraquezas de Portugal e dos meios de remediá-las. D. Luís foi em muitos aspectos o mentor de Pombal.
Esse debate centrou-se na posição de Portugal dentro do sistema internacional e enfrentou às claras tanto os embaraços quanto as opções com que um pequeno país como Portugal, parte da Península Ibérica, mas independente da Espanha, tinha de conviver. O fulcro dessas discussões era o problema de reter e explorar o considerável ativo ultramarino que Portugal controlava na Ásia, na África e sobretudo no Brasil; e desenvolver ao mesmo tempo um mecanismo para desafiar o domínio econômico inglês sobre Portugal e sua vasta colônia americana sem debilitar a aliança política e militar com a Grã-Bretanha, a que Portugal se via obrigado para conter a Espanha.
D. Luís da Cunha, em particular, situara os problemas de Portugal no contexto de sua relação com a Espanha, sua dependência da -e exploração econômica pela- Inglaterra e o que ele reputava serem as fraquezas endógenas de Portugal em termos de carência de população e de espírito de empresa. Essa triste condição econômica e espiritual ele atribuía ao número excessivo de padres, à atividade da Inquisição e à expulsão e perseguição dos judeus. Ele propôs a criação de companhias comerciais monopolistas, baseadas no modelo holandês e inglês.
Pombal também traçou modelos a partir de sua interpretação da experiência de outros países europeus. De 1739 a 1744, ele representara o rei português em Londres. Para Pombal, a ameaça imposta pelos ingleses aos vastos e ricos domínios no Brasil viraram uma preocupação maior. Era essencial, acreditava ele, compreender as origens da superioridade comercial e militar britânica e da fraqueza econômica e política de Portugal e de sua dependência militar.
Em Londres, Pombal, que se tornara membro da Sociedade Real em 1740, passou a investigar as causas, técnicas e mecanismos do poder comercial e naval britânico. Mas a Inglaterra não foi sua única experiência externa. De Londres, Pombal mudou-se para Viena. Ali não foi menos observador e se envolveu numa longa, árdua e frustrante negociação com o papado em favor do governo austríaco, no curso da qual se tornou bastante íntimo de Manuel Teles da Silva, um emigrante português de linhagem aristocrática que ascendera alto no Estado austríaco. Manuel Teles da Silva, que fora intitulado duque Silva Tarouca pelo sacro imperador romano Carlos 6º em 1732, foi presidente do Conselho dos Países Baixos e da Itália e era um confidente da imperatriz Maria Theresa.
Pombal casara-se pela segunda vez quando em Viena, um casamento de sucesso e altamente vantajoso com Maria Leonor Ernestina Daun, de quem teve cinco filhos. A condessa Daun era sobrinha do marechal Heinrich Richard Graf von Daun, comandante-em-chefe do Exército austríaco. A imperatriz Maria Theresa mostrou especial interesse na união. O enviado português em Roma observou azedo que foi esse matrimônio que garantiu a Pombal a posição de secretário de Estado em Lisboa. E foi de fato a mulher austríaca de d. João 5º, Maria Ana da Áustria, rainha regente durante a doença terminal de d. João 5º, que chamou Pombal de Viena em 1749 para que se juntasse ao ministério em Lisboa.
Possuímos uma correspondência privada extraordinariamente franca e íntima entre o duque Silva Tarouca e Pombal, cobrindo a primeira década depois que Pombal assumiu o cargo em Lisboa, a qual fornece uma discussão única e reveladora dos objetivos e medidas governamentais de Pombal. Silva Tarouca, empolgado com a ascensão ao poder de Pombal em Lisboa, escreveu em 1750 para cumprimentar seu amigo e lembrá-lo de suas conversas e expectativas em relação ao futuro. "Não somos escravos da moda e de práticas estrangeiras", disse Silva Tarouca a Pombal, "mas menos ainda somos escravos de antigos hábitos e preocupações". Ele falava das "grandes e novas disposições" que haviam discutido juntos.
O reinado de d. João 5º vira, sem dúvida, um fortalecimento das prerrogativas régias, em boa parte resultado das vastas riquezas que afluíam do Brasil após a descoberta do ouro. A monarquia bragantina não precisou lançar mão da antiga instituição representativa de Portugal, as Cortes, para angariar impostos durante todo o século 18, e d. João 5º usou sua opulência colonial para realçar seu prestígio e persuadir Roma a lhe outorgar o título de "fidelíssimo". Bem mais do que metade de todas as receitas do Estado provinha direta ou indiretamente dos domínios ultramarinos de Portugal, sobretudo o Brasil.
Mas como essa atmosfera difusa de idéias e preocupações afetou a política? Quais eram essas "grandes e novas disposições" de Pombal? Por que elas o puseram tão vivamente em conflito com os jesuítas, uma vez que não há prova, em particular, a sugerir hostilidades para com os jesuítas da parte de Pombal antes de 1750, sendo mesmo provável que os jesuítas lhe tenham amparado a subida ao poder?
Em parte, ela resultou do fato de ter sido a situação colonial que primeiro chamou a atenção da nova administração em Lisboa. O Tratado de Madri entre Espanha e Portugal fora assinado em janeiro de 1750. O tratado foi o primeiro acordo negociado entre os poderes ibéricos a traçar os limites terrestres do conjunto de seus territórios na América do Sul. Os portugueses reivindicaram a Amazônia, sobretudo o limite fluvial interior formado pelos rios Guaporé-Mamoré-Madeira. Quando assumiu como secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros em julho de 1750, Pombal herdava um "fait accompli", algumas partes do qual ele não aplaudia.

Os jesuítas e a Espanha Essas demarcações de fronteira interna eram de grande sensibilidade para as ordens missionárias, de vez que as missões -e as jesuíticas em particular- mergulhavam estrategicamente no interior continental, situadas entre territórios espanhóis e portugueses bem como ao longo dos principais sistemas fluviais. Os jesuítas tinham cooperado com a Espanha nos anos 1740, e o uso dos neófitos indígenas convertidos pelos jesuítas como tropas e mão-de-obra foi uma parte indispensável dos planos espanhóis para conter a expansão das fronteiras portuguesas, fundindo-se a estratégia espanhola, nesse ponto, com o tradicional objetivo dos jesuítas de criar uma cadeia de missões unida, bem guarnecida, sertão adentro do subcontinente sul-americano. Os temores de Portugal quanto à lealdade dos jesuítas não eram, pois, infundados.
Com o Tratado de Madri, os portugueses cederam à Espanha a Colônia de Sacramento e as terras imediatamente ao norte do rio da Prata em troca do reconhecimento espanhol das fronteiras fluviais ocidentais do Brasil. Estas incluíam o rio Uruguai, o que punha as sete missões jesuíticas da região, havia tempos sob a soberania espanhola, sob a de Portugal. Os acordos de Madri prescreviam a evacuação dos jesuítas e seus neófitos indígenas das missões uruguaias bem como mais de 1 milhão de cabeças de gado e previam um levantamento da linha demarcatória entre a América espanhola e portuguesa por duas comissões mistas. O governador-geral do Brasil, Gomes Freire de Andrade, foi designado comissário português para o Sul. Para a região amazônica, ao norte, Pombal enviou seu próprio irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
A "carta secretíssima" a Gomes Freire, complementando suas instruções gerais, revelam toda a magnitude dos objetivos e expectativas de Pombal para a América portuguesa e demonstram como pesaram para Pombal a experiência vienense e suas discussões com Silva Tarouca. "Como o poder e a riqueza de todos os países consistem principalmente no número e multiplicação do povo que o habita", escreveu ele, "esse número e multiplicação do povo é mais indispensável agora nas fronteiras do Brasil para sua defesa". Como não era "humanamente possível" fornecer o povo necessário da metrópole e das ilhas adjacentes sem convertê-las "inteiramente em desertos", era essencial abolir "todas as diferenças entre índios e portugueses" para atrair os índios das missões do Uruguai e estimular-lhes o casamento com europeus. As instruções a Mendonça Furtado refletem objetivos semelhantes. A fim de promover o aumento da população e intensificar seu compromisso com Portugal, Pombal recomendou ao irmão que emancipasse os índios do controle dos missionários, estimulasse a migração e estabelecimento de casais dos Açores e avivasse o quanto possível o comércio de escravos africanos na região.

"Todos hão de servir" Na prática, a implementação dessas idéias, no que tocava aos índios, significava a remoção da tutela dos jesuítas e visava a sua assimilação, em vez de sua separação da sociedade portuguesa no Brasil. Essas idéias receberam calorosa acolhida de Viena: o duque Silva Tarouca escreveu a Pombal em 1752 que os "reis de Portugal podem chegar a ter um império como a China no Brasil (...)". Grande cuidado, escreveu ele, havia de ser tomado para povoar o Brasil. "Mouro, branco, negro, mulato ou mestiço, todos hão de servir, todos são homens e são bons se forem bem governados." Acima de tudo, a vasta bacia amazônica deveria ser protegida. "População é tudo, muitos milhares de léguas de desertos de nada servem."
Definidos assim, os interesses do Estado colidiam, é claro, com o mais básico princípio filosófico da política de proteção aos índios dos jesuítas, e de fato se lançava a política estatal ao encontro dos colonizadores, com quem sempre haviam lutado os jesuítas em seus esforços para resguardar os índios da exploração.
Valendo-se das idéias de Luís da Cunha e de Pombal sobre companhias monopolistas, o irmão de Pombal, logo após chegar a Belém, a capital paraense à boca do rio Amazonas, recomendou que fosse estabelecida uma companhia comercial para facilitar a provisão de escravos africanos à região amazônica; ele acreditava que a importação de escravos africanos aliviaria a pressão sobre os colonizadores para escravizar e maltratar a população indígena nativa. Ele queria também ver crescer o investimento na economia amazônica, coisa que resultaria, segundo ele, da ação de uma companhia monopolista, para lhe incrementar as potenciais exportações.
Em 1755, em resposta a esse conselho, Pombal estabeleceu a Companhia do Grão-Pará e Maranhão. À companhia foi concedido o direito exclusivo de comércio e navegação entre Portugal, África e essas capitanias amazônicas por um período de 20 anos. Ao mesmo tempo, Pombal expediu decretos em 6 e 7 de junho de 1755 suprimindo a autoridade secular dos jesuítas sobre os índios, declarando-os "homens livres". Além disso, ele ordenou a expulsão do Brasil daqueles comissários volantes que atuavam como agentes comissionados de casas mercantis estrangeiras, sobretudo britânicas, estabelecidas em Londres.
Essas três medidas decisivas estavam ligadas. O objetivo oculto da Companhia do Grão-Pará e Maranhão era de fato mais amplo do que talvez indique seu foco regional. Com efeito, Pombal começou seus esforços de "nacionalizar" setores do comércio colonial nos quais os negociantes estrangeiros eram menos ativos para camuflar suas intenções mais largas.
Pombal esperava que, concedendo privilégios especiais e proteção para estimular a emissão de créditos mais longos por negociantes portugueses, as casas mercantis em Portugal seriam capazes de acumular capital suficiente para competir com mais eficácia com os negociantes britânicos no comércio colonial como um todo e, por extensão, também em Portugal.
Desse modo, o Estado pombalino conteria e limitaria o papel da participação estrangeira no comércio luso-atlântico. E, golpeando os comissários volantes, ele esperava suprimir um elo decisivo entre os negociantes estrangeiros em Portugal e os produtores brasileiros -e, no caso da Amazônia, os jesuítas, cujo comércio em produtos amazônicos ele via como uma concorrência desleal com o de empresários brasileiros e portugueses a quem ele queria estimular.
Pombal disse ao duque Silva Tarouca que seu objetivo ao estabelecer a Companhia do Grão-Pará e Maranhão era "restabelecer às praças mercantis de Portugal e do Brasil as comissões de que foram privadas e que são a principal substância do comércio e o meio pelo qual poderiam ser estabelecidas as grandes casas mercantis que têm faltado em Portugal". Pombal também insistiu com seu irmão, em correspondência privada, para "usar todo pretexto possível para separar os jesuítas da fronteira e cortar todas as comunicações entre eles e os jesuítas dos domínios espanhóis".

Objetivos implícitos A companhia monopolista de Pombal servia assim a objetivos em vários níveis, nem todos eles explícitos. O principal objetivo no comércio colonial era tentar diminuir a influência dos britânicos, mas os métodos empregados para alcançar tal fim eram sutis, pragmáticos e envoltos em subterfúgios. O inevitável problema na relação entre britânicos e portugueses era que ela estava circunscrita a tratados que, por razões políticas e de segurança, os portugueses queriam manter. Um modo de agir contra a influência britânica, não obstante, enquanto evitava o confronto aberto sobre os termos dos tratados entre os dois países era usar uma variedade de técnicas em Portugal e dentro do cenário colonial para transpor as vantagens econômicas das concessões estrangeiras para os grupos mercantis portugueses. Nesse respeito, a escolha da Amazônia para dar início ao processo foi um subterfúgio bastante sagaz. Os britânicos não perceberam a ameaça a seus interesses senão ao final da década. Em Viena, Silva Tarouca, quando informado das ações de Pombal, muito apreciou a idéia. Tais eram precisamente o tipo de grandes e novas disposições que aplaudia -cercadas da camuflagem com que ele recomendava sempre disfarçá-las. Isso não quer dizer que a intervenção de Pombal não tenha encontrado resistência. Longe disso. A promulgação dos privilégios da Companhia do Grão-Pará e Maranhão e a emancipação indígena da tutela missionária provocaram pronta resposta dos comerciantes espoliados e dos jesuítas.
Ambos encontraram um órgão para agitação na Mesa do Bem Comum, uma rudimentar associação comercial lisboeta estabelecida no final dos anos 1720. Em face dessas provocações, Pombal não tardou a agir. Dissolveu a confraria comercial do Espírito Santo como prejudicial ao serviço real, ao interesse comum e ao comércio, e os deputados ofensores foram condenados ao desterro. Os papéis confiscados da Mesa revelaram o alcance do envolvimento jesuíta, e Pombal interpretou e lidou com o protesto como se fosse um levante conspirador contra o poder real.

Consequências involuntárias A criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão acarretou assim várias consequências importantes e provavelmente involuntárias. Primeiro, uniu as tentativas de fazer valer o controle nacional sobre setores do comércio colonial a questões geoestratégicas mais amplas, nascidas da implementação do Tratado de Madri. Segundo, lançou Pombal, e não menos gravemente seu irmão, em aberto conflito com os jesuítas, porque o Grão-Pará e o Maranhão eram um baluarte das atividades missionárias jesuíticas e uma região com uma história de amargas disputas entre jesuítas e colonizadores.
Enquanto isso, as missões indígenas dos jesuítas na fronteira meridional haviam pego em armas para defender-se e opor-se à implementação do Tratado de Madri, provocando contra elas uma campanha conjunta hispano-portuguesa. A imagem dos índios militarizados sob o controle jesuíta insurgindo-se unilateralmente contra as ordens dos monarcas ibéricos causou expressivo efeito no espírito europeu. Voltaire, em seu "Cândido", retrata um jesuíta brandindo uma espada montado a cavalo.
E o que é mais, os eventos envolvendo a implementação do Tratado de Madri fortaleceram a convicção de Pombal de que a presença dos jesuítas em terras portuguesas, estrategicamente situadas como eram as missões ao longo da região fronteiriça, era um empecilho à realização de seus propósitos de restabelecer o poder e a prosperidade a Portugal e à proteção de suas fronteiras pelo estímulo ao crescimento populacional mediante a incorporação dos índios -pela miscigenação e secularização- à sociedade colonial portuguesa.
De Viena, o duque Silva Tarouca, revendo sua antiga opinião sobre a conveniência da cooperação jesuítica, observou em fevereiro de 1758: "Não foi espírito evangélico que armou de mosquetes 80 ou 100 mil índios e erigiu um poder intermediário do rio da Prata ao Amazonas que um dia poderá ser fatal às potências dominantes da América do Sul".
Os anos 1750, portanto, marcando a primeira década da preeminência de Pombal, viram Portugal embarcar num ambicioso projeto para restabelecer alguma medida de controle nacional sobre as riquezas que afluíam a Lisboa procedentes dos domínios ultramarinos portugueses, o Brasil à frente. Para fazê-lo, ele adaptou às peculiaridades da posição portuguesa muitas das técnicas de desenvolvimento econômico que vira em ação em Londres e Viena, sobretudo o uso do poder estatal para dar relevo aos dotes empresariais nacionais e a imposição de monopólios estatais para proteger a nascente indústria e comércio nacionais. Também lhe coubera implementar o Tratado de Madri, envolvendo um esforço superlativo de traçar e levantar as vastas fronteiras do Brasil. Em ambos os casos, os jesuítas interpuseram grandes obstáculos a seus planos. Na fronteira meridional, uma campanha militar fora necessária para derrotar as forças conduzidas a campo pelas missões jesuíticas. No norte do Brasil, as missões amazônicas se precipitaram em conflito aberto com o irmão de Pombal.
Em meio ao acúmulo dessas batalhas, o terremoto de 1755 atingiu Lisboa, elevando Pombal a um poder praticamente supremo e abrindo caminho para uma radical reconstrução da cidade. Porém o desencanto da antiga nobreza com as políticas de Pombal também crescia. A Companhia do Grão-Pará e Maranhão usara o engodo do enobrecimento como um incentivo para investir. Os estatutos da companhia ofereciam a investidores não-nobres certas isenções e privilégios que antes haviam sido prerrogativa exclusiva da nobreza e da magistratura, admitindo-os como membros de ordens militares. A aristocracia exclusivista indispôs-se com a exclusão da mercê e com os favores cumulados a comerciantes e homens de negócios.
Além disso, pequenos comerciantes e taberneiros não se resignavam por terem sido excluídos pela nova companhia monopolista de Pombal, criada para proteger os produtores de vinho do vale do alto Douro, e essas reações conspiraram para produzir uma série de revoltas violentas e tentativas de assassinato, a que Pombal reagiu ferozmente, não apenas contra as classes populares mas também contra a alta nobreza e a ordem jesuíta.
O caso da Mesa do Bem Comum, o ataque ao contrabando e a regulação do comércio colonial forjaram assim uma identidade de interesses entre comissários volantes espoliados, seus credores ingleses e os jesuítas, e os favores outorgados aos colaboradores de Pombal criaram uma identidade de interesses entre esses grupos e os nobres descontentes.
Para a velha aristocracia, os colaboradores mercantis de Pombal representavam um sério desafio ao privilégio aristocrático dentro da estrutura social portuguesa, e a reação a essa engenharia social promovida pelo Estado não tardou a surgir.
Tentativa de regicídio A crise chegou ao auge com a tentativa de regicídio em 1758. O rei d. José 1º retornava ao palácio de Belém depois de uma visita noturna a sua amante, a jovem mulher do marquês de Távora, quando sua carruagem foi alvejada a tiros. O rei feriu-se seriamente, o suficiente para que a rainha, dona Mariana Vitória (1718-1781), assumisse a regência (7 de setembro de 1758) durante sua convalescença. O incidente foi mantido em silêncio oficial até o começo de dezembro, quando um número substancial de pessoas foi preso numa vasta operação pente-fino, incluindo um grupo de aristocratas de prol. Os prisioneiros mais eminentes eram os cabeças da família Távora, o conde de Atouguia e o duque de Aveiro. O duque d. José Mascarenhas, o mais poderoso nobre de Portugal, excetuando a família real, era presidente da Suprema Corte. O marquês de Távora era ex-vice-rei da Índia e comandante da cavalaria. O conde de Atouguia chefiava a guarda palaciana.
O rei instaurou uma Suprema Junta de Inconfidência (9 de dezembro de 1758), presidida por três secretários de Estado e sete juízes, mas dominada de fato por Pombal. O tribunal, munido de amplos poderes que negavam aos réus as usuais salvaguardas da lei portuguesa, agiu com presteza. Em 12 de janeiro de 1759, os prisioneiros foram julgados culpados de tentativa de regicídio e condenados. O duque de Aveiro seria esquartejado, seus membros e braços esmagados e expostos numa roda para que todos vissem, suas cinzas lançadas ao mar. O marquês de Távora seguiria a mesma sina. Os membros do restante da família seriam quebrados na roda, mas primeiro haveriam de ser estrangulados. A sentença grotesca, cuja violência contra os aristocratas chocou boa parte da Europa, foi executada no dia seguinte em Belém.
No dia anterior, oito jesuítas foram presos por suposta cumplicidade, entre eles Gabriel Malagrida, um missionário e místico de ascendência italiana que partira para o Brasil em 1721, onde eles haviam trabalhado, no Maranhão. Após uma breve passagem em Lisboa entre 1749 e 1751, ele retornou ao Brasil, onde cedo se meteu em dificuldades com o irmão de Pombal. Malagrida publicara um panfleto sobre o terremoto de Lisboa, atribuindo o desastre à cólera divina. Pombal suara para explicar o terremoto como um fenômeno natural e pessoalmente denunciou Malagrida à Inquisição, no comando da qual instalara seu outro irmão, Paulo de Carvalho.
Um alvará real de 3 de setembro de 1759 declarou estarem os jesuítas em rebelião contra a coroa, ratificando o decreto real de 21 de julho do mesmo ano, que ordenava o encarceramento e prisão dos jesuítas no Brasil. Até março e abril de 1760, 119 jesuítas haviam sido banidos do Rio de Janeiro, 117 da Bahia e 119 do Recife. As vastas propriedades da ordem no Brasil, em Portugal e no remanescente do antes vasto império português na Ásia foram expropriadas.
Em 21 de setembro de 1761, após um auto-de-fé em Lisboa, Malagrida foi garroteado e queimado, e suas cinzas lançadas ao vento. Sobre o caso Malagrida, Voltaire escreveu, "l'excès du ridicule et de l'absurdité fut joint à l'excès d'horreur" (o excesso de ridículo e de absurdo uniu-se ao excesso de horror). A reação em outras partes da Europa foi forte o bastante para sugerir a Pombal imprimir a sentença contra Malagrida com uma justificativa em francês. Que o último indivíduo queimado vivo pelas autoridades portuguesas a instâncias da Inquisição fosse um padre, membro de uma ordem que representara a ponta-de-lança mesma da Contra-Reforma, era algo carregado de simbolismo e serviu de trampolim para que Pombal promovesse sua formidável propaganda de Estado na cruzada antijesuítica. Dali em diante, a administração pombalina instigou e subsidiou pela Europa afora uma virulenta campanha contra a ordem.

Propaganda antijesuítica O próprio Pombal esteve intimamente envolvido na redação e formulação da notável peça de propaganda conhecida como "Dedução Cronológica e Analítica". O texto dividia a história de Portugal entre o útil e o desastroso, essencialmente ligados à influência dos jesuítas. Sustentava uma rigorosa visão regalista no tocante à igreja de Portugal. O professor Samuel Miller descreve a obra, não sem razão, como "uma monótona repetição de todas as acusações já assacadas contra os jesuítas por qualquer um em qualquer época". A história do assalto, pelas coroas portuguesa e espanhola, às missões jesuíticas ao longo do rio Uruguai na América do Sul durante o final dos anos 1750 também foi resumida e durante muitos anos definida por outra peça de propaganda financiada e promovida pelo Estado, a "Relação Abreviada".
Publicada em português, italiano, francês, inglês e alemão em Amsterdã, a "Relação" era um relato da campanha conjunta de portugueses e espanhóis contra as missões jesuíticas no que hoje são as terras fronteiriças do Sul brasileiro. Estima-se que cerca de 20 mil cópias foram distribuídas. Foi uma poderosa arma na batalha européia que conduziu à supressão dos jesuítas pelo papa Clemente 14 em 1773. Como mostrou Franco Venturi, sobretudo Veneza e Roma especializaram-se em imprimir vivos relatos das idas e vindas que ocorriam em Lisboa.
A expulsão dos jesuítas deixou Portugal praticamente despido de professores de nível secundário e universitário. Não admira que a criação de um sistema escolar de educação secundária e a reforma da Universidade de Coimbra tenham seguido à risca as recomendações dos antigos inimigos dos jesuítas, os oratorianos e Luís Antônio Verney, o último a essa altura consultor pago do governo português. Essas duas reformas forneceriam munição a Pombal para que sustentasse ser um paladino de um governo ilustrado. Ambas as reformas foram financiadas em parte pelas propriedades expropriadas dos jesuítas e aristocratas condenados por regicídio.
Finalmente, tornemos à pergunta que formulamos antes: por que Pombal, e por que a Amazônia? A resposta está em cinco pontos de conflito cruciais. O primeiro era o plano de Pombal para a regeneração econômica por intermédio da exploração racional das colônias. Segundo, havia o conflito geopolítico em torno das fronteiras e da segurança do império, no qual as missões guaranis, em particular, se opunham às decisões de Portugal pela força das armas. Terceiro, a tentativa de regicídio. Quarto, havia o eterno conflito dentro da igreja sobre educação e regalismo; esse importante cisma permitiu atacar os jesuítas sob o manto da tradição católica, na qual se irmanavam os principais porta-vozes antijesuítas.
Quinto e último, a situação armou um conflito direto entre a ordem e um ministro poderoso e inclemente que não tolerava divergências, para quem a "raison d'état" era a política suprema -e que não hesitava em agir quando provocado.
Que essas cinco causas servissem de catalisador para a expulsão dos jesuítas de Portugal muito deveu, é claro, à receptividade da opinião ilustrada européia, à política eclesiástica e à aquiescência diplomática de outras monarquias católicas da Europa. Mas a opinião européia sozinha não teria sido necessariamente suficiente para ocasionar um ato de expulsão -e muito menos para conduzir à momentosa decisão do papa Clemente 14, em 1773, de suprimir a ordem jesuíta por inteiro. Os monarcas católicos europeus na Espanha, depois na França e na Áustria, apressaram-se a seguir o exemplo de Portugal em expulsar os jesuítas, mas é muito questionável que algum deles o tivesse feito se Portugal não agisse primeiro.
É nesse ponto, claro, que as correntes do pensamento ilustrado que esbocei no começo forneceram justificação propícia para ações que, no fundo, como vimos, tinham motivações mais prosaicas.


Kenneth Maxwell é historiador inglês, autor, entre outros, de "A Devassa da Devassa" e "Marquês de Pombal - Paradoxo do Iluminismo" (ambos pela ed. Paz e Terra) e membro do Council on Foreign Relations de Nova York. Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!. O texto acima, em versão integral, aparecerá em uma edição da revista "Portuguese Studies" em homenagem ao historiador Charles R. Boxer.

Tradução de José Marcos Macedo.


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