São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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O CINEASTA, O POVO E O GOVERNO

Quem quer fazer de Rohmer o porta-bandeira artístico de uma França desembaraçada de seus fantasmas revolucionários pretende apenas apresentar a visão dominante das coisas como se fosse um ponto de vista minoritário

por Jacques Rancière

Entre os filmes-vedete do festival de Veneza figura "L'Anglaise et le Duc", filme histórico de Eric Rohmer, inspirado nas memórias de uma aristocrata inglesa sob a Revolução Francesa. Quer o rumor que o festival italiano rende assim homenagem a um filme que os responsáveis franceses do festival de Cannes teriam afastado por razões de "political correctness". Um perfume de escândalo e de repressão nunca faz mal a um filme, mas este convida à reflexão. Em que, ao certo, seria comprometedor filmar a revolução em geral, e a Revolução Francesa em particular, do ponto de vista dos aristocratas?
Durante décadas, crianças francesas devoraram, sem grande danos aos valores republicanos e revolucionários, as histórias do "Mouron Rouge", heróico aristocrata inglês que salvava gentis aristocratas das garras de ferozes bestas populares. E desde os anos 80 as teses de François Furet, largamente inspiradas pela tradição contra-revolucionária, dominam na França a historiografia revolucionária e a opinião intelectual.
Não vemos bem, pois, que "political correctness" impediria hoje mostrar um revolucionário sedento de sangue. E é de supor que quem quer fazer de Rohmer o porta-bandeira artístico de uma França enfim desembaraçada de seus fantasmas revolucionários se vale simplesmente do lance clássico que consiste em apresentar a visão dominante das coisas como ponto de vista minoritário, vítima das perseguições de um horrível "complô de intelectuais".
Mas, se há uma política nesse filme, ela se desenrola talvez em plano diverso ao dessas batalhas de estandartes. Rohmer jamais se fez passar por um homem de esquerda. E se defende de ter desejado fazer um filme militante. De fato, a história de aventuras de Grace Elliott na tormenta revolucionária não está nada preocupada em julgar as causas e os efeitos da revolução, mas transforma em obra, em fato de doutrina política, dois lugares-comuns da ficção histórica e política. O primeiro opõe a fidelidade afetiva e moral aos tortuosos cálculos da política. Assim a inglesa encarna a virtude feminina e irrefletida da fidelidade para com a família real perseguida, diante do vício masculino do interesse calculista, representado pelo duque d'Orléans, primo do rei disposto a todos os compromissos com os revolucionários, a ponto de votar a morte de seu primo para servir a seus próprios interesses dinásticos. O segundo opõe as boas maneiras de pessoas evoluídas à eterna grosseria do populacho bestial.

Sadismo brutal À imagem daqueles que antes opunham a correção dos oficiais ao sadismo brutal dos SS, Grace Elliott não se cansa de ser arrancada das mãos de hordas ébrias e concupiscentes por oficiais ou comissários e até pelo representante do povo, Robespierre, os quais lembram ao populacho o sentido das leis e a civilidade do mundo "comme il faut". Se há, pois, uma "mensagem" política nesse filme, ela não diz respeito à legitimidade ou ilegitimidade das revoluções. Ela remonta à idéia dupla, bastante difundida, de que a política é uma coisa suja e que essa coisa suja deve ser reservada a quem tenha hábitos limpos e maneiras civis, longe do alcance da plebe das ruas.
Claro, Rohmer não é um ideólogo. É um cineasta. Mas é justamente aqui que as coisas ficam interessantes. A relação entre o limpo e o sujo, entre pessoas "comme il faut" e a multidão das ruas, se torna em seu filme um problema de ocupação da imagem, formulado e resolvido em termos técnicos e estéticos que possuem um valor emblemático.
O filme, com efeito, tem uma tela de fundo pitoresca, desenhada a partir de aquarelas que representam a Paris de final do século 18, cenário da "douceur de vivre" aristocrática que a revolução vem perturbar. Todas as cenas externas, e em particular as cenas de multidão, rodadas em estúdio diante de um fundo neutro, são a seguir inseridas nesse cenário de tela pintada. Esse processo não é apenas uma alternativa econômica à custosa reconstituição de cenários de época. É também uma maneira de pôr em cena o povo e recolocá-lo em seu lugar. Nesse cenário feito para a passagem de carruagens, o gênero de povo que convém são os dois ou três personagens pitorescos que tradicionalmente dão a escala dos monumentos e fornecem a animação do entorno. Ora, eis que a tela se abre de algum modo, deixando afluir, no lugar desses gentis figurantes, uma multidão compacta que, visivelmente, se acha aí deslocada. Assim, o dispositivo visual da encenação apresenta a alegoria da "má" política: aquela na qual as ruas normalmente destinadas à circulação entre os edifícios públicos e as residências privadas se tornam o teatro em que a multidão dos figurantes anônimos se declara abusivamente como povo político. Mas também esse dispositivo corrige por si próprio o excesso que manifesta. Essas multidões de homens do povo de rostos patibulares que invadem o palácio dos reis e as mansões dos nobres, o cineasta as reúne em estúdio, entre cordas que devem evitar que suas imagens digitais retornem desastradamente ao cenário pintado. Assim, a imagem pintada, o estúdio e a câmera digital combinam seus poderes para resolver esteticamente um problema político -ou antes o próprio problema da política: o fato de se ocuparem, esses homens de rua, de assuntos comuns que a eles visivelmente não se destinam.
Manifestamente a solução não é assim tão fácil para aqueles que se intitulam a si próprios políticos. E talvez os jurados de Veneza tenham, diante das multidões bem enquadradas e digitalizadas de Rohmer, um pensamento compassivo com relação a esses homens de Estado do G-8 que se reuniram dois meses antes em Gênova. Para aqueles que querem governar o mundo exclusivamente com interlocutores "responsáveis" -sejam eles ditadores ou antigos espiões como Putin-, ainda não há meio de canalizar em estúdio e dissolver por digitalização essas multidões de manifestantes que insistem em imaginar que também fazem parte do mundo e têm vocação para se ocupar de seus assuntos.
Mostrar manifestantes de cogulas, equivalente moderno dos rostos bestiais dos assassinos de outrora, também não basta para recolocar esse povo em seu lugar. É portanto à polícia que cabe confiar a tarefa "estética" de limpar as ruas, transformando as cidades históricas em "bunkers", atacando os manifestantes e invadindo seus quartéis-generais de um modo bem menos civilizado que os sectários parisienses invadindo, em Rohmer, a residência da bela inglesa.
Segundo a conhecida piada, sem poder construir as cidades no campo, os grandes deste mundo decidiram então se reunir da próxima vez nas montanhas canadenses para poder, longe de todo o ruído da multidão importuna, realizar seu próprio sonho, o sonho atual dos governantes: a direção entre homens responsáveis de um mundo sem povo.
Se o filme de Rohmer suscita embaraço, não é por ferir o espírito do tempo. É talvez, ao contrário, porque lhe seja conforme demais, porque, sob sua aparência ideologicamente e visualmente retrô, ele põe em imagens, de modo bastante direto, o sonho contemporâneo do governo mundial de pessoas "competentes", livres de toda a perturbação da rua. Mais uma vez, Rohmer pouco se preocupa em ostentar os porta-bandeiras para o enterro definitivo das revoluções. Sua política é antes de tudo estética. Sua "contra-revolução" se circunscreve ao campo do cinema. Se ele nunca bancou o esquerdista, Rohmer foi, nos anos 50, um dos primeiros campeões da revolução rosselliniana que abriria caminho à nouvelle vague em nome de alguns princípios: o adeus aos estúdios, a câmera na rua partindo em descoberta dos habitantes contemporâneos do mundo e capaz de seguir os acasos de seus itinerários materiais, sentimentais e eventualmente políticos. Na esteira da câmera móvel dos cineastas da nouvelle vague, foram os estudantes dos anos 60 que partiram em descoberta do mundo social de seu tempo e invadiram as ruas de Paris e de algumas outras metrópoles.
É ainda esse liame entre uma estética de cinema e um modo de praticar a política que evoca o último filme de Godard, "Eloge de l'Amour" (Elogio do Amor), quando a câmera percorre as ruas de Paris, vai visitar os funcionários da limpeza noturna dos trens, à maneira dos difusores de panfletos esquerdistas, ou se instala meditativa diante do edifício hoje deserto da antiga "fortaleza operária" das indústrias Renault. Já Rohmer cedo se desviou dos acasos da rua para se consagrar às contingências do sentimento nos microcosmos socialmente protegidos, mas sem negar por isso o realismo rosselliniano. O flagrante artificialismo que corresponde, em "L'Anglaise et le Duc", à ampliação histórica do cenário rohmeriano assume então o valor de um manifesto estético que encerra simbolicamente uma era do cinema.
É nisso, mais que em alguma mensagem ideológica, que ele se une à vontade de dar fim a uma era que quis retornar às ruas e franquear a política a todos.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.


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