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O grande inquisidor
O historiador Carlo Ginzburg, que faz palestras nesta semana, fala de sua nova obra, "O Fio e os Rastros", e do sucesso de seus trabalhos no Brasil
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
O italiano Carlo
Ginzburg, 68, é um
velho conhecido
dos historiadores
brasileiros. Por
conta de seu trabalho mais famoso, o livro "O Queijo e os
Vermes" (1976, lançado no
Brasil pela Cia. das Letras), sua
obra passou a ser uma referência para os estudiosos interessados na relação da história
com outras ciências humanas,
mais especificamente com a
antropologia.
A história de Menocchio, um
moleiro condenado pela Inquisição no século 16, seguia os padrões da tradição da Escola dos
Annales. Como se encaixava
perfeitamente no debate historiográfico da época, Ginzburg
acabou por ser visto como uma
espécie de braço italiano do
movimento nascido na França.
Como o Brasil também passou a viver uma "febre" da chamada nova história, sua obra
tornou-se leitura obrigatória
no meio acadêmico daqui.
Mas Ginzburg não gosta nem
um pouco de ser reduzido a esse rótulo. Pesquisador rigoroso, especializou-se em minuciosas investigações sobre os
processos da Inquisição nos séculos 16 e 17. Em "Mitos, Emblemas, Sinais" (1989, Cia. das
Letras) e outros escritos posteriores, ampliou seu universo de
ação. Além de aprofundar a relação de seu trabalho com a antropologia, dedicou-se também
a analisar a obra de filósofos e a
história da arte, entre outros
assuntos.
Agora, chega ao Brasil "O Fio
e os Rastros", livro em que analisa o trabalho com o relato histórico. Leia abaixo os principais trechos da entrevista que
Ginzburg concedeu à Folha,
por telefone, de Bolonha.
FOLHA - O sr. é um historiador renomado internacionalmente, mas
parece que, aqui, seus livros têm um
apelo especial. Por que os historiadores brasileiros gostam tanto de
seu trabalho?
CARLO GINZBURG - Esse é um fato
bastante curioso, e eu sempre
me pergunto qual é a explicação. Antes de mais nada, acho
que tenho uma boa editora aí
(Companhia das Letras). Mas,
além disso, penso que há uma
identificação entre os assuntos
aos quais me dedico e as preocupações dos pesquisadores
brasileiros. Principalmente no
que diz respeito à diversidade
cultural. De algum modo, a maneira como trabalho com esse
tema, dando ênfase aos aspectos antropológicos, às vezes parece ter mais ressonância no
Brasil do que em outros países.
FOLHA - O sr. diz que, quando começou sua carreira, o modo como se
contava a história ainda não era um
tema para a própria história. Hoje, o
relato histórico tem outro status
dentro do debate. Por que houve essa mudança?
GINZBURG - Em "O Fio e os Rastros", eu tento responder a essa
pergunta aplicando-a a assuntos específicos, em áreas diversas, como a filosofia, a história
da arte e a própria discussão
contemporânea sobre o que é
fazer história.
Sempre me interessei em fazer a ligação entre pesquisa empírica e preocupações teóricas.
FOLHA - O que está em primeiro
plano para a história hoje?
GINZBURG - Duas coisas vieram
para o primeiro plano nas últimas décadas. Uma é a história
cultural. Sua importância parece óbvia aos nossos olhos agora,
mas não era assim quando eu
comecei.
E isso tem várias implicações. Por exemplo, fixou-se
uma conexão com a antropologia que foi especialmente importante nos anos 70 e 80, mas
que deveria estar mais viva hoje. E não está porque é preciso
melhorar esse diálogo entre
ambas.
A outra coisa que veio para o
primeiro plano é justamente o
relato histórico.
FOLHA - Como o sr. vê a sua participação nessa mudança?
GINZBURG - A natureza das evidências das quais eu tratava, os
julgamentos inquisitoriais, me
motivou a experimentar com o
modo de contar a história.
Analisar esses textos me levou a refletir sobre a forma com
que deveriam ser trazidos e incorporados a uma narrativa. A
partir dessas experimentações,
começaram a surgir também
questões metodológicas.
FOLHA - No capítulo do livro sobre
a documentação da Inquisição, o sr.
comenta a dificuldade e o incômodo
que muitos historiadores sentem ao
começar a lidar com esse tipo de texto. Foi assim com o sr.?
GINZBURG - A Inquisição nunca
deixou de ser uma fonte de vergonha, por isso causa incômodo mexer nos seus registros.
Para historiadores católicos,
então, muito mais.
Por outro lado, são documentos que podem ser usados
de diferentes maneiras. Por
exemplo, para encontrar heróis
da tentativa de reforma ou da
incompreensão da sociedade
naquela época etc.
No meu caso, a aproximação
foi marcada pela preocupação
com a antropologia.
FOLHA - Os arquivos da Igreja sobre a Inquisição hoje estão mais
acessíveis? Como a carta que o sr.
enviou ao papa João Paulo 2º, em
1979, colaborou para isso?
GINZBURG - Essa é uma história
bizarra. Eu estava buscando o
registro de um julgamento, cujo original estava no arquivo da
Inquisição em Veneza.
Como se tratava de um texto
muito longo e o homem que copiava esses documentos me pedira um dinheiro a mais para
transcrevê-lo, decidi buscar
uma cópia dele, que acreditava
existir em Roma.
Achei que, se eu enviasse
uma carta burocrática, ninguém me responderia.
Aí decidi enviar uma carta
pessoal para João Paulo 2º. E
apelei para questões amplas.
Disse que eu era judeu, ateu e
historiador. Então perguntei
sobre o documento e pedi que
os arquivos fossem mais abertos, pois a Igreja Católica deveria submeter-se ao julgamento
da história.
É claro que essa carta não teve resposta. Então escrevi outra, mais burocrática, apenas
perguntando pelo documento.
Recebi uma resposta do cardeal responsável pela seção,
que era nada menos que o então cardeal Ratzinger [hoje, papa Bento 16]. Ele dizia que tinha mandado checar e que o
documento não estava lá.
Em 1998, o papa resolveu
abrir os arquivos, de forma ainda restrita, para historiadores,
e Ratzinger declarou que minha carta havia sido importante naquela decisão.
Me perguntei por que isso levou quase 20 anos para acontecer. Mas depois me dei conta de
que não era muito tempo. Afinal, duas décadas não são nada
na história da Igreja Católica.
FOLHA - No capítulo sobre Montaigne, o sr. diz que o interesse dele
por culturas distantes poderia aproximá-lo de nossas preocupações de
hoje, mas que pensar assim seria
equivocado. Por quê?
GINZBURG - Porque é preciso
estar atento a essa espécie de
movimento duplo que fazemos
quando tentamos entender o
passado. O capítulo sobre Montaigne, na verdade, é uma reflexão sobre os problemas relacionados a esse movimento duplo.
Primeiramente, tentamos
trazer o passado para perto, para lhe fazer perguntas e observá-lo. Depois, então, temos de
recriar a distância para lançar
nossas considerações.
Ou seja, usamos técnicas para entender o passado de perto.
Só que depois temos de entender o passado dentro de
seus próprios termos.
E, para isso, é preciso afastá-lo de nós novamente.
Esse movimento duplo mostra que, no fundo, ao fazer história, estamos tentando entender uma linguagem que não é a
nossa.
O desafio é decifrar essa linguagem sabendo que não nos
pertence. É preciso sentir o
choque da história.
FOLHA - Li numa entrevista que o
sr. gosta da sensação de ser ignorante diante de um novo assunto. Isso o
faria ficar excitado com a idéia de
começar a pesquisá-lo. Com a experiência, esses momentos de ignorância não vão ficando cada vez
mais raros?
GINZBURG - Não, de maneira
nenhuma. Eu mudo muito de
assunto, e é mais fácil ser ignorante quando você não se prende a um tema só. Isso também
ajuda a reagir ao fato de estar ficando velho e mais experiente.
É claro que não posso ser jovem novamente, mas eu ainda
posso ser muito ignorante (risos). É uma situação saudável
para estabelecer um ponto de
partida para conhecer melhor
um assunto. Aprender sempre
é possível.
O FIO E OS RASTROS
Autor: Carlo Ginzburg
Tradução: Eduardo Brandão
e Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Cia. das Letras
(tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 59 (456 págs.)
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