São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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O grande inquisidor

O historiador Carlo Ginzburg, que faz palestras nesta semana, fala de sua nova obra, "O Fio e os Rastros", e do sucesso de seus trabalhos no Brasil

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

O italiano Carlo Ginzburg, 68, é um velho conhecido dos historiadores brasileiros. Por conta de seu trabalho mais famoso, o livro "O Queijo e os Vermes" (1976, lançado no Brasil pela Cia. das Letras), sua obra passou a ser uma referência para os estudiosos interessados na relação da história com outras ciências humanas, mais especificamente com a antropologia.
A história de Menocchio, um moleiro condenado pela Inquisição no século 16, seguia os padrões da tradição da Escola dos Annales. Como se encaixava perfeitamente no debate historiográfico da época, Ginzburg acabou por ser visto como uma espécie de braço italiano do movimento nascido na França.
Como o Brasil também passou a viver uma "febre" da chamada nova história, sua obra tornou-se leitura obrigatória no meio acadêmico daqui.
Mas Ginzburg não gosta nem um pouco de ser reduzido a esse rótulo. Pesquisador rigoroso, especializou-se em minuciosas investigações sobre os processos da Inquisição nos séculos 16 e 17. Em "Mitos, Emblemas, Sinais" (1989, Cia. das Letras) e outros escritos posteriores, ampliou seu universo de ação. Além de aprofundar a relação de seu trabalho com a antropologia, dedicou-se também a analisar a obra de filósofos e a história da arte, entre outros assuntos.
Agora, chega ao Brasil "O Fio e os Rastros", livro em que analisa o trabalho com o relato histórico. Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Ginzburg concedeu à Folha, por telefone, de Bolonha.  

FOLHA - O sr. é um historiador renomado internacionalmente, mas parece que, aqui, seus livros têm um apelo especial. Por que os historiadores brasileiros gostam tanto de seu trabalho?
CARLO GINZBURG
- Esse é um fato bastante curioso, e eu sempre me pergunto qual é a explicação. Antes de mais nada, acho que tenho uma boa editora aí (Companhia das Letras). Mas, além disso, penso que há uma identificação entre os assuntos aos quais me dedico e as preocupações dos pesquisadores brasileiros. Principalmente no que diz respeito à diversidade cultural. De algum modo, a maneira como trabalho com esse tema, dando ênfase aos aspectos antropológicos, às vezes parece ter mais ressonância no Brasil do que em outros países.

FOLHA - O sr. diz que, quando começou sua carreira, o modo como se contava a história ainda não era um tema para a própria história. Hoje, o relato histórico tem outro status dentro do debate. Por que houve essa mudança?
GINZBURG
- Em "O Fio e os Rastros", eu tento responder a essa pergunta aplicando-a a assuntos específicos, em áreas diversas, como a filosofia, a história da arte e a própria discussão contemporânea sobre o que é fazer história. Sempre me interessei em fazer a ligação entre pesquisa empírica e preocupações teóricas.

FOLHA - O que está em primeiro plano para a história hoje?
GINZBURG
- Duas coisas vieram para o primeiro plano nas últimas décadas. Uma é a história cultural. Sua importância parece óbvia aos nossos olhos agora, mas não era assim quando eu comecei.
E isso tem várias implicações. Por exemplo, fixou-se uma conexão com a antropologia que foi especialmente importante nos anos 70 e 80, mas que deveria estar mais viva hoje. E não está porque é preciso melhorar esse diálogo entre ambas.
A outra coisa que veio para o primeiro plano é justamente o relato histórico.

FOLHA - Como o sr. vê a sua participação nessa mudança?
GINZBURG
- A natureza das evidências das quais eu tratava, os julgamentos inquisitoriais, me motivou a experimentar com o modo de contar a história.
Analisar esses textos me levou a refletir sobre a forma com que deveriam ser trazidos e incorporados a uma narrativa. A partir dessas experimentações, começaram a surgir também questões metodológicas.

FOLHA - No capítulo do livro sobre a documentação da Inquisição, o sr. comenta a dificuldade e o incômodo que muitos historiadores sentem ao começar a lidar com esse tipo de texto. Foi assim com o sr.?
GINZBURG
- A Inquisição nunca deixou de ser uma fonte de vergonha, por isso causa incômodo mexer nos seus registros. Para historiadores católicos, então, muito mais.
Por outro lado, são documentos que podem ser usados de diferentes maneiras. Por exemplo, para encontrar heróis da tentativa de reforma ou da incompreensão da sociedade naquela época etc.
No meu caso, a aproximação foi marcada pela preocupação com a antropologia.

FOLHA - Os arquivos da Igreja sobre a Inquisição hoje estão mais acessíveis? Como a carta que o sr. enviou ao papa João Paulo 2º, em 1979, colaborou para isso?
GINZBURG
- Essa é uma história bizarra. Eu estava buscando o registro de um julgamento, cujo original estava no arquivo da Inquisição em Veneza.
Como se tratava de um texto muito longo e o homem que copiava esses documentos me pedira um dinheiro a mais para transcrevê-lo, decidi buscar uma cópia dele, que acreditava existir em Roma.
Achei que, se eu enviasse uma carta burocrática, ninguém me responderia.
Aí decidi enviar uma carta pessoal para João Paulo 2º. E apelei para questões amplas. Disse que eu era judeu, ateu e historiador. Então perguntei sobre o documento e pedi que os arquivos fossem mais abertos, pois a Igreja Católica deveria submeter-se ao julgamento da história.
É claro que essa carta não teve resposta. Então escrevi outra, mais burocrática, apenas perguntando pelo documento.
Recebi uma resposta do cardeal responsável pela seção, que era nada menos que o então cardeal Ratzinger [hoje, papa Bento 16]. Ele dizia que tinha mandado checar e que o documento não estava lá.
Em 1998, o papa resolveu abrir os arquivos, de forma ainda restrita, para historiadores, e Ratzinger declarou que minha carta havia sido importante naquela decisão. Me perguntei por que isso levou quase 20 anos para acontecer. Mas depois me dei conta de que não era muito tempo. Afinal, duas décadas não são nada na história da Igreja Católica.

FOLHA - No capítulo sobre Montaigne, o sr. diz que o interesse dele por culturas distantes poderia aproximá-lo de nossas preocupações de hoje, mas que pensar assim seria equivocado. Por quê?
GINZBURG
- Porque é preciso estar atento a essa espécie de movimento duplo que fazemos quando tentamos entender o passado. O capítulo sobre Montaigne, na verdade, é uma reflexão sobre os problemas relacionados a esse movimento duplo.
Primeiramente, tentamos trazer o passado para perto, para lhe fazer perguntas e observá-lo. Depois, então, temos de recriar a distância para lançar nossas considerações.
Ou seja, usamos técnicas para entender o passado de perto. Só que depois temos de entender o passado dentro de seus próprios termos.
E, para isso, é preciso afastá-lo de nós novamente. Esse movimento duplo mostra que, no fundo, ao fazer história, estamos tentando entender uma linguagem que não é a nossa.
O desafio é decifrar essa linguagem sabendo que não nos pertence. É preciso sentir o choque da história.

FOLHA - Li numa entrevista que o sr. gosta da sensação de ser ignorante diante de um novo assunto. Isso o faria ficar excitado com a idéia de começar a pesquisá-lo. Com a experiência, esses momentos de ignorância não vão ficando cada vez mais raros?
GINZBURG
- Não, de maneira nenhuma. Eu mudo muito de assunto, e é mais fácil ser ignorante quando você não se prende a um tema só. Isso também ajuda a reagir ao fato de estar ficando velho e mais experiente.
É claro que não posso ser jovem novamente, mas eu ainda posso ser muito ignorante (risos). É uma situação saudável para estabelecer um ponto de partida para conhecer melhor um assunto. Aprender sempre é possível.


O FIO E OS RASTROS
Autor:
Carlo Ginzburg
Tradução: Eduardo Brandão e Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Cia. das Letras (tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 59 (456 págs.)


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