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Elogio à técnica
Processo de desenvolvimento tecnológico ajuda a compreender as contradições do sistema capitalista
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
É técnica a questão da
técnica. Não coloca o
problema da procura
de sua verdade, de como ela nos relaciona
de modo muito específico com
o Ser. E o motivo é muito simples, pois me parece que existem técnicas e técnicas, e não
vejo a possibilidade de encaixar, sob uma única cláusula, os
mais diversos relacionamentos
que os seres humanos mantêm
com o universo mediante construções feitas por eles mesmos.
No final das contas, a linguagem também não é uma técnica de transformar sinais em
símbolos? Do mesmo modo, o
discurso sobre a técnica, a tecnologia, teórico ou prático,
continua a ser uma fala ligada a
procedimentos de experimentação e construção.
Em resumo, a oposição radical entre conhecimento e técnica não mais existe, se já existiu, de sorte que interessa examinar o que se entende quando
se fala do saber e do fazer desse
do ponto de vista.
Perigo e responsabilidade
Não cabe menosprezar os perigos da tecnologia, os efeitos
colaterais das novas drogas, o inesperado cansaço de materiais artificialmente submetidos a pressões adversas assim como as técnicas da guerra e
dos campos de concentração.
Mas esses perigos no mínimo
são equiparáveis àqueles processos naturais em transformação, tais como erupções vulcânicas fantásticas, terremotos e tsunamis avassaladores e assim
por diante. Nesse ponto, a
questão é de responsabilidade.
Mas não exageremos esse
ponto, pois, se falamos ao telefone e assistimos à televisão
sem entender o que se passa
além de sua aparência, isso
sempre valeu para o ato de alimentar, pois pouquíssimos são
aqueles que sabem da digestão
de um grão de trigo.
Além disso, é simplesmente
ideológico imaginar que tudo o
que vem da natureza é bom.
No final das contas, o veneno
das aranhas e o ópio são produtos naturais, mas no veneno da
jararaca se encontrou uma
substância que tem sido muito
usada no tratamento da hipertensão. No fundo dessa posição
ingênua reside o postulado de
que a natureza é obra divina feita sem trabalho, embora Jeová
tenha descansado depois de
seis dias de criação.
Desde os primórdios da filosofia, essa idéia religiosa se tornou leiga, inspirando um duplo
conceito de razão. O primeiro,
substantivo, que indaga de onde nós viemos, o que nós somos
e o que deveríamos ser; o segundo, meramente técnico, pelo qual, dados certos fins, se
procuram os meios para que sejam realizados.
Em que medida a procura
dos meios também não configura o fim visado? Aqui nos interessa, porém, outro lado da
questão: parte da filosofia contemporânea tem deixado de lado esses conceitos de razão
porque questiona essa diferença na medida em que hoje sabemos que qualquer raciocínio
efetivo pode ser reconstruído
por sistemas formais, por lógicas diferentes.
Nem mesmo a análise de
conceitos se livra de métodos
construtivos. Em suma, o sólido terreno da lógica, até então
pensado como pavimento dos
procedimentos racionais, também pode ser pensado tecnologicamente. Daí uma determinação recíproca muito variada entre conhecimento e tecnologia, um lado colocando problemas para o outro e vice-versa.
Conhecimento e técnica só
podem então vir a ser perigosos
no seu uso, particularmente no
seu uso social.
Se este também é técnico, o é
na medida em que inclui técnicas de controle, toda uma rede
de instituições que lutam para
criar e se apropriar da tecnociência em seu proveito.
Não existem dois planos separados, esse da tecnociência e
aquele de seu emprego no contexto quer da concorrência cruzada entre instituições privadas e estatais, quer no conflito entre as nações. Precisando:
são essas instituições particularizadas ou globalizadas que
dirigem o "mainstream" do
progresso das ciências e das
técnicas.
Progresso
Já na fase mais elementar do
financiamento de um projeto
de pesquisa, a liberdade de escolha é conformada pelas políticas de Estado, pelas fundações financiadoras, pelo sistema de publicação dos novos conhecimentos e, sobretudo, pela
conversão da teoria num produto pelos grandes institutos e
laboratórios privados.
É sabido que a invenção científica e tecnológica tem passado
ao largo das universidades que,
se não se encaixam nas redes de
produção tecnocientífica, tendem a produzir apenas mão-de-obra qualificada.
Não se deduza dessas minhas
indicações que estou pulando
de contente com o extraordinário progresso do conhecimento
e da tecnologia que experimentamos desde os meados do século 19. Se o avanço da tecnociência me admira quando nos dá instrumentos extraordinários para resolvermos nossos
problemas atuais, igualmente
me horroriza quanto tais instrumentos são postos em razão
de políticas assassinas.
Os instrumentos das ciências
e das técnicas nunca foram
neutros do ponto de vista político, mas a partir dos meados
do século 19 começa um crescimento exponencial de novas
teorias e do número de pesquisadores, na medida em que a
produção da ciência se torna
uma força produtiva. Sempre
saber e poder fazer mais criaram vantagens no embate entre as nações.
Mas, claramente depois da
Segunda Guerra Mundial, esse
processo de ganhar na margem
se converte numa luta de ganhar pela ampliação e controle
dessa margem.
Explorar a contradição
Siracusa podia imaginar que
queimaria a frota inimiga utilizando os espelhos concêntricos
desenhados por Arquimedes; o
doge podia imaginar que a luneta apresentada por Galileu
lhe traria vantagens contra os
inimigos de Veneza; mas a corrida pela fabricação da bomba
atômica não se resumiu a uma
apropriação de teorias feitas,
mas se abriu numa corrida vertiginosa para obter novos conhecimentos, somente disponíveis graças ao investimento de capitais fabulosos.
Em que medida o circuito
desses capitais determina e é
determinado pelo desenvolvimento do saber fazer? Isso se
reproduz nos tempos de paz,
quando, por exemplo, a associação entre o Estado e a indústria bélica americanos se torna
tão potente que o inimigo interno, em particular a guerrilha, se torna muito mais importante do que o inimigo externo.
E a guerrilha não é antes de
tudo a vontade de usar procedimentos elementares para emperrar a grande máquina do
mundo cotidiano?
Não tem mais sentido dizer
que mesmo a produção da ciência pode ser feita para o bem ou
para o mal. Ela progride pelo
empuxo dos mais fortes politicamente, mas a cada passo
adiante ela também abre poros
nesse grande sistema, exibindo
suas contradições.
De um lado, não há a tecnociência; de outro, há o controle
de tudo o que é novo pela dinâmica do capital. A pergunta não
consiste então no modo como
se exploram a contradições para que uma nova forma de sociabilidade, menos predadora,
possa ser pelo menos sonhada?
E o sonho não é técnico.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve regularmente na seção "Autores".
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