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TRÉPLICA
Abel Barros Baptista responde à resenha sobre o livro "Céu-Eclipse"
Dois belos casos
ABEL BARROS BAPTISTA
especial para a Folha
Diz um antigo provérbio português que "quem tem bom vizinho
não teme arruído". Deve ser verdade. Régis Bonvicino remeteu à
Folha um artigo assinado por Horácio Costa "em resposta" à resenha "A angústia da insuficiência",
que aqui publiquei em 12 de setembro passado. Reivindicar o direito de resposta em matéria de
crítica literária é já de si um despropósito. Usá-lo fazendo imprimir outra resenha é que já cabe no
domínio do insólito. Estive tentado a debater se o "ofendido"
constituiu advogado ou se exercita habilidades de ventríloquo,
mas logo abandonei o projeto,
por ocioso. Uma vez que o texto
de Horácio Costa em momento
algum se refere ao meu, nem ensaia sequer rebater frontalmente
qualquer das asserções nele contidas, colijo do episódio que Régis
Bonvicino reincide no vício que
lhe apontei, o de querer estar na
vinha e na eira ao mesmo tempo:
pretende ostentar uma indiferença altiva (a minha resenha é lixo
que não merece sequer menção),
mas não quer ficar calado e promove resenha reparadora.
A primeira pretensão é convencional, a segunda, inusitada: bem
vistas as coisas, o poeta não reclama o direito de responder, mas o
de escolher o resenhista e de determinar o modelo e o conteúdo
da resenha. E, se calhar, no delírio
da arrogância, até acredita que,
consumada a operação, a minha
resenha desaparece como um incidente minúsculo, inexoravelmente removida pela única, pela
autêntica, pela legítima, pela verdadeira -a de Horácio Costa!
O artigo de Horácio Costa não
surge, portanto, a título de resenha alternativa, valorativamente
oposta e analiticamente mais
competente: Bonvicino usa-o como remédio para extirpar o micróbio e restabelecer a normalidade. Andasse ele mais acautelado
no uso dos fármacos, não lançava
mão de placebos e talvez se poupasse ao infortúnio de com eles
vir fortalecer o micróbio deletério. Eu, pelo menos, tive o cuidado de não lhe fazer a suprema
maldade de citar um só dos seus
versos.
Não assim com Horácio Costa,
forçado aliás pelo expediente de
réplica: poeta e resenhista pretendem que um livro de poesia se critica analisando o que a minha resenha ostensivamente não analisou -a linguagem e os poemas. É
uma verdade evidente, a qual, no
entanto, prestando-se facilmente
à manipulação pelos menos avisados, pode conduzir ao preconceito incompatível com o gesto
crítico, já que permite a qualquer
um glorificar qualquer coisa.
Horácio Costa despeja sobre o
leitor sintagmas, antinomias,
magnitudes semânticas, reverberações, imbricamentos poéticos,
quocientes de irisação metafórica
-o diabo! Logo de começo, e numa clara prova de que a má retórica pode dispensar a astronomia,
chega a querer convencer-nos de
que "céu" e "eclipse" são noções
antinômicas, supondo assim provar a "felicidade da escolha do título" com que o poeta "alcança
funcionamento metafórico transparente e palpável consistência
poética"... Que o fraseado seguinte comprove que o "funcionamento metafórico" é tudo menos
transparente, ou que "palpável
consistência poética" se possa
aplicar indiferentemente a quase
tudo o que um dia se escreveu em
verso ou prosa, dependendo da
boa vontade de quem apalpa, não
são obstáculos que detenham o
resenhista.
Habilidades destas, parafraseando uma imagem machadiana, podem dar a impressão de que
um texto pensa e analisa quando
simplesmente transpira. Eis um
completo exemplo de resenha
que soçobra perante uma das dificuldades -com que todos nos
debatemos- da crítica literária
contemporânea: parece que
quanto mais sofisticados são os
meios de análise, mais rara se faz a
grande poesia que os mereça, e é
bem certo que a pletora terminológica se tornou o meio mais expedito de transformar o trivial em
sublime. Na falta de perspectiva
autônoma mais adequada ao livro
de que fala e de um argumento
que lhe decida a construção, a resenha perde o tino e cai na logorréia, aliás o sintoma vulgar da angústia da insuficiência.
A desorientação denuncia-se
até no modo como Horácio Costa
se refere a "Céu-Eclipse": no primeiro parágrafo é "coletânea de
poemas", pouco adiante sublinha
a importância do "selo" "poema-idéia". Sem se aperceber de que
não é indiferente que um livro se
proponha como "coletânea" ou
como "poema", porque nisso está
implicado um dos problemas decisivos da tradição poética moderna, a noção de livro, o resenhista reproduz inadvertidamente e assim confirma uma das inconsistências que apontei à poética de Bonvicino.
E aqui tocamos o cerne. O ângulo de abordagem, a estratégia de
construção e o princípio de argumentação devem constituir por si
próprios uma crítica rigorosa: isso desde logo distingue a crítica
da mera aplicação de receitas. A
escolha da abordagem a partir das
notas, que eu próprio afirmei
oblíqua, não era expediente para
me esquivar à análise dos poemas: visava mostrar que o próprio
poeta se encarregou de tornar dispensável a análise explícita dos
poemas. Se o poeta compõe um livro que inclui notas sobre os poemas, se ademais marca em subtítulo a unidade de poema e de
idéia, prescreve necessariamente a
releitura dos poemas à luz das notas: a crítica não pode ignorar essa
prescrição, cabendo-lhe a tarefa
da releitura e o esforço de compreensão da necessidade das notas.
A minha crítica consiste simplesmente em dizer que Régis
Bonvicino não percebe isso: não
percebe que entrega um livro aos
leitores e que estes o recebem lendo-o enquanto organização autônoma. E não percebe sobretudo
que as características da sua "dicção subjetiva" (para usar a pitoresca expressão de Horácio Costa) repelem tudo aquilo que a inclusão das notas representa: a tentativa de recuperação da experiência individual, de reintrodução da proveniência pessoal que o
poema, enquanto inscrição, apagara por efeito inexorável dos
seus traços poeticamente distintivos. Numa palavra, o tipo de poesia que Bonvicino imita é incompatível com a sua noção de poesia
e com o programa poético que lhe
quer impor.
Mais uma vez Horácio Costa se
encarrega de reproduzir a falha,
quando escreve que o subtítulo
"poema-idéia" "busca transferir a
experiência individual do poeta
para a arena mais complexa da razão compartilhável". Uma fórmula de aparência sofisticada corroborando a conclusão que a minha
resenha extraía da presença das
notas: que o poeta escreve uma
poesia que independe de circunstâncias particulares, mas não quer
que o leitor ignore que depende
de circunstâncias particulares. As
notas são o único instrumento
que permite fazer dessa "transferência" um dos traços da poesia
de Régis Bonvicino: e se esse traço
é tão decisivo assim, como ignorá-las?
Veja-se o poema citado por Horácio Costa, "Esboço", que já agora também cito na íntegra: "Facas
em punho/ numa reunião de muros /riscados /Tarde de verão /na
cela /sentados -/uma lâmpada
no teto/ é um sol apagado". Estou
pronto a admitir que isso é excelente poesia quando alguém me
mostrar como se lê nestes versos a
transferência da "experiência individual do poeta para a arena
mais complexa da razão compartilhável". Enquanto isso, leio ali
maus versos, o que até nem é a
pior das desgraças: são versos que
o próprio autor fez escassos e depois puniu por não dizerem o suficiente.
Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água, Lisboa).
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