São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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TRÉPLICA
Abel Barros Baptista responde à resenha sobre o livro "Céu-Eclipse"
Dois belos casos

ABEL BARROS BAPTISTA
especial para a Folha

Diz um antigo provérbio português que "quem tem bom vizinho não teme arruído". Deve ser verdade. Régis Bonvicino remeteu à Folha um artigo assinado por Horácio Costa "em resposta" à resenha "A angústia da insuficiência", que aqui publiquei em 12 de setembro passado. Reivindicar o direito de resposta em matéria de crítica literária é já de si um despropósito. Usá-lo fazendo imprimir outra resenha é que já cabe no domínio do insólito. Estive tentado a debater se o "ofendido" constituiu advogado ou se exercita habilidades de ventríloquo, mas logo abandonei o projeto, por ocioso. Uma vez que o texto de Horácio Costa em momento algum se refere ao meu, nem ensaia sequer rebater frontalmente qualquer das asserções nele contidas, colijo do episódio que Régis Bonvicino reincide no vício que lhe apontei, o de querer estar na vinha e na eira ao mesmo tempo: pretende ostentar uma indiferença altiva (a minha resenha é lixo que não merece sequer menção), mas não quer ficar calado e promove resenha reparadora.
A primeira pretensão é convencional, a segunda, inusitada: bem vistas as coisas, o poeta não reclama o direito de responder, mas o de escolher o resenhista e de determinar o modelo e o conteúdo da resenha. E, se calhar, no delírio da arrogância, até acredita que, consumada a operação, a minha resenha desaparece como um incidente minúsculo, inexoravelmente removida pela única, pela autêntica, pela legítima, pela verdadeira -a de Horácio Costa!
O artigo de Horácio Costa não surge, portanto, a título de resenha alternativa, valorativamente oposta e analiticamente mais competente: Bonvicino usa-o como remédio para extirpar o micróbio e restabelecer a normalidade. Andasse ele mais acautelado no uso dos fármacos, não lançava mão de placebos e talvez se poupasse ao infortúnio de com eles vir fortalecer o micróbio deletério. Eu, pelo menos, tive o cuidado de não lhe fazer a suprema maldade de citar um só dos seus versos.
Não assim com Horácio Costa, forçado aliás pelo expediente de réplica: poeta e resenhista pretendem que um livro de poesia se critica analisando o que a minha resenha ostensivamente não analisou -a linguagem e os poemas. É uma verdade evidente, a qual, no entanto, prestando-se facilmente à manipulação pelos menos avisados, pode conduzir ao preconceito incompatível com o gesto crítico, já que permite a qualquer um glorificar qualquer coisa.
Horácio Costa despeja sobre o leitor sintagmas, antinomias, magnitudes semânticas, reverberações, imbricamentos poéticos, quocientes de irisação metafórica -o diabo! Logo de começo, e numa clara prova de que a má retórica pode dispensar a astronomia, chega a querer convencer-nos de que "céu" e "eclipse" são noções antinômicas, supondo assim provar a "felicidade da escolha do título" com que o poeta "alcança funcionamento metafórico transparente e palpável consistência poética"... Que o fraseado seguinte comprove que o "funcionamento metafórico" é tudo menos transparente, ou que "palpável consistência poética" se possa aplicar indiferentemente a quase tudo o que um dia se escreveu em verso ou prosa, dependendo da boa vontade de quem apalpa, não são obstáculos que detenham o resenhista.
Habilidades destas, parafraseando uma imagem machadiana, podem dar a impressão de que um texto pensa e analisa quando simplesmente transpira. Eis um completo exemplo de resenha que soçobra perante uma das dificuldades -com que todos nos debatemos- da crítica literária contemporânea: parece que quanto mais sofisticados são os meios de análise, mais rara se faz a grande poesia que os mereça, e é bem certo que a pletora terminológica se tornou o meio mais expedito de transformar o trivial em sublime. Na falta de perspectiva autônoma mais adequada ao livro de que fala e de um argumento que lhe decida a construção, a resenha perde o tino e cai na logorréia, aliás o sintoma vulgar da angústia da insuficiência.
A desorientação denuncia-se até no modo como Horácio Costa se refere a "Céu-Eclipse": no primeiro parágrafo é "coletânea de poemas", pouco adiante sublinha a importância do "selo" "poema-idéia". Sem se aperceber de que não é indiferente que um livro se proponha como "coletânea" ou como "poema", porque nisso está implicado um dos problemas decisivos da tradição poética moderna, a noção de livro, o resenhista reproduz inadvertidamente e assim confirma uma das inconsistências que apontei à poética de Bonvicino.
E aqui tocamos o cerne. O ângulo de abordagem, a estratégia de construção e o princípio de argumentação devem constituir por si próprios uma crítica rigorosa: isso desde logo distingue a crítica da mera aplicação de receitas. A escolha da abordagem a partir das notas, que eu próprio afirmei oblíqua, não era expediente para me esquivar à análise dos poemas: visava mostrar que o próprio poeta se encarregou de tornar dispensável a análise explícita dos poemas. Se o poeta compõe um livro que inclui notas sobre os poemas, se ademais marca em subtítulo a unidade de poema e de idéia, prescreve necessariamente a releitura dos poemas à luz das notas: a crítica não pode ignorar essa prescrição, cabendo-lhe a tarefa da releitura e o esforço de compreensão da necessidade das notas.
A minha crítica consiste simplesmente em dizer que Régis Bonvicino não percebe isso: não percebe que entrega um livro aos leitores e que estes o recebem lendo-o enquanto organização autônoma. E não percebe sobretudo que as características da sua "dicção subjetiva" (para usar a pitoresca expressão de Horácio Costa) repelem tudo aquilo que a inclusão das notas representa: a tentativa de recuperação da experiência individual, de reintrodução da proveniência pessoal que o poema, enquanto inscrição, apagara por efeito inexorável dos seus traços poeticamente distintivos. Numa palavra, o tipo de poesia que Bonvicino imita é incompatível com a sua noção de poesia e com o programa poético que lhe quer impor.
Mais uma vez Horácio Costa se encarrega de reproduzir a falha, quando escreve que o subtítulo "poema-idéia" "busca transferir a experiência individual do poeta para a arena mais complexa da razão compartilhável". Uma fórmula de aparência sofisticada corroborando a conclusão que a minha resenha extraía da presença das notas: que o poeta escreve uma poesia que independe de circunstâncias particulares, mas não quer que o leitor ignore que depende de circunstâncias particulares. As notas são o único instrumento que permite fazer dessa "transferência" um dos traços da poesia de Régis Bonvicino: e se esse traço é tão decisivo assim, como ignorá-las?
Veja-se o poema citado por Horácio Costa, "Esboço", que já agora também cito na íntegra: "Facas em punho/ numa reunião de muros /riscados /Tarde de verão /na cela /sentados -/uma lâmpada no teto/ é um sol apagado". Estou pronto a admitir que isso é excelente poesia quando alguém me mostrar como se lê nestes versos a transferência da "experiência individual do poeta para a arena mais complexa da razão compartilhável". Enquanto isso, leio ali maus versos, o que até nem é a pior das desgraças: são versos que o próprio autor fez escassos e depois puniu por não dizerem o suficiente.


Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água, Lisboa).


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