|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Antologia traz textos sobre 500 anos de conflito social no Brasil
A miséria desmedida
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
As relações de trabalho e o sistema agrário no Brasil, questões
tratadas via de regra pela ótica da
sociologia, economia, ciência política ou história, acabam de ganhar uma antologia de textos literários que, direta ou indiretamente, abordam o assunto. "Com Palmos Medida - Terra, Trabalho e
Conflito na Literatura Brasileira",
livro editado em grande formato e
ilustrado por Enio Squeff, foi organizado pelo professor da USP,
Flávio Aguiar, com o declarado
propósito de apresentar um painel tão amplo quanto possível dos
conflitos sociais que atravessam a
história brasileira, desde a época
dos primeiros cronistas até os romancistas de hoje. Um empreendimento sem dúvida oportuno
para um país que está longe de erradicar o analfabetismo, a fome e
que, mais recentemente, tem sido
sacudido de norte a sul por multidões de sem-terra.
Na introdução ao livro, Flávio
Aguiar expõe os "três eixos diretores" que nortearam a seleção
dos textos: a) a conquista ou ocupação das terras brasileiras; b) a
fixação ou consolidação da estrutura agrária e das relações de trabalho; e c) a exclusão, processo
contínuo e crescente de criação de
"rejeitados, deserdados, expulsos,
exilados, por assim dizer, em sua
própria terra". Definidos o propósito e o campo temático, o organizador passa a apresentar os
textos, todos precedidos de breve
nota biográfica sobre os autores e
distribuídos em sete seções cronológicas, do "Período Colonial
-Séculos 16 e 17" a "Do Auge da
Ditadura ao Seu Declínio".
O primeiro texto da antologia é
um fragmento da famosa carta de
Pero Vaz de Caminha, o escrivão
da armada de Cabral que registrou o primeiro contato entre
portugueses e índios, descrevendo a terra em termos quase idílicos, mas com olhos já interessados: "Até agora, não pudemos saber que haja ouro nem prata",
anota Caminha. A coletânea prossegue então com excertos dos padres Anchieta e Vieira, dos árcades Tomás Antonio Gonzaga e
Basílio da Gama, dos românticos
Alencar e Castro Alves, de Machado, até chegar ao século de Lima
Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Drummond.
Percebe-se que o livro é resultado de uma pesquisa bem-feita,
que procurou incluir não só os
autores mais relevantes de cada
período, mas também se preocupou em dar conta dos problemas
específicos de cada região do país:
os engenhos de cana-de-açúcar
no Nordeste, a exploração do ouro nas Minas Gerais, as plantações
de café em São Paulo, a escravidão
nas estâncias gaúchas, os fluxos
migratórios do sertão para o sul, o
massacre de Canudos, o recrutamento forçado de nortistas para a
Guerra do Paraguai.
Como acontece com toda antologia, sobretudo com uma antologia temática como essa, pode-se
objetar que o organizador deveria
ter incluído, por exemplo, algum
texto sobre a exploração do trabalho nos seringais da Amazônia
-que por sinal deu uma literatura bem interessante, de Ferreira
de Castro a Claudio de Araujo Lima. Ou que estaria faltando algum escritor "indispensável". Ou
ainda que, de um determinado
autor, teria sido melhor selecionar esse texto em vez daquele. Tudo isso é passível de discussão,
uma discussão aliás estéril e sem
fim. O que merece ser questionado é se o livro foi bem-sucedido
em suas intenções ou não.
Se o objetivo do organizador e
editor foi chamar a atenção de um
maior número de leitores para os
conflitos sociais brasileiros por
meio de obras literárias, os resultados são bastante duvidosos.
Apesar das boas intenções e da seriedade da pesquisa, os textos
compilados em "Com Palmos
Medida", por serem quase todos
fragmentos extraídos de seus
contextos originários, perdem
muito do interesse e às vezes até o
sentido. Isso acontece porque as
obras literárias e paraliterárias
(discursos, crônicas etc.) reunidas
na antologia são todas, na prática,
reduzidas a simples documentos
sociológicos a serviço de uma tese
-a tese, de resto correta, de que o
Brasil é um país carcomido pela
desigualdade social.
Tampouco a coletânea funciona
adequadamente como obra de referência ou didática, já que a
maioria das peças ali presentes
aparece de forma incompleta
-capítulo de romance, cena de
auto, fragmento de discurso.
Por tudo isso, o interesse do livro acaba de fato se restringindo a
um público especializado, para
quem a antologia passa a fazer
sentido porque se articula a um
conhecimento prévio dos textos,
servindo assim como mais uma
provocação e ponto de partida
para se discutir, entre outras coisas, as relações entre literatura e
sociedade ou o célebre pendor da
literatura brasileira para o documentário social.
"Com Palmos Medida" termina
valendo também -agora que o
país está prestes a completar 500
anos- como um registro desigual e melancólico da frustração
por reformas profundas que o
Brasil, de fato, nunca chegou a conhecer. Como diz Antonio Candido no prefácio ao livro, "invertendo a proposição otimista que embalou a formação de tantas gerações: não há por que nos ufanarmos do nosso país".
A OBRA
Com Palmos Medida - Terra, Trabalho e Conflito na
Literatura Brasileira - Org.
Flávio Aguiar. Ed. Fundação Perseu Abramo/Boitempo (av. Pompéia, 1991, Perdizes, CEP 05023-001, SP, tel. 0/xx/3865-6947). 416
págs. R$ 42,00.
Texto Anterior: Tréplica - Abel Barros Baptista: Dois belos casos Próximo Texto: Diálogos impertinentes - Nelson Ascher: O patriotismo da política Índice
|