São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Antologia traz textos sobre 500 anos de conflito social no Brasil
A miséria desmedida

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

As relações de trabalho e o sistema agrário no Brasil, questões tratadas via de regra pela ótica da sociologia, economia, ciência política ou história, acabam de ganhar uma antologia de textos literários que, direta ou indiretamente, abordam o assunto. "Com Palmos Medida - Terra, Trabalho e Conflito na Literatura Brasileira", livro editado em grande formato e ilustrado por Enio Squeff, foi organizado pelo professor da USP, Flávio Aguiar, com o declarado propósito de apresentar um painel tão amplo quanto possível dos conflitos sociais que atravessam a história brasileira, desde a época dos primeiros cronistas até os romancistas de hoje. Um empreendimento sem dúvida oportuno para um país que está longe de erradicar o analfabetismo, a fome e que, mais recentemente, tem sido sacudido de norte a sul por multidões de sem-terra.
Na introdução ao livro, Flávio Aguiar expõe os "três eixos diretores" que nortearam a seleção dos textos: a) a conquista ou ocupação das terras brasileiras; b) a fixação ou consolidação da estrutura agrária e das relações de trabalho; e c) a exclusão, processo contínuo e crescente de criação de "rejeitados, deserdados, expulsos, exilados, por assim dizer, em sua própria terra". Definidos o propósito e o campo temático, o organizador passa a apresentar os textos, todos precedidos de breve nota biográfica sobre os autores e distribuídos em sete seções cronológicas, do "Período Colonial -Séculos 16 e 17" a "Do Auge da Ditadura ao Seu Declínio".
O primeiro texto da antologia é um fragmento da famosa carta de Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada de Cabral que registrou o primeiro contato entre portugueses e índios, descrevendo a terra em termos quase idílicos, mas com olhos já interessados: "Até agora, não pudemos saber que haja ouro nem prata", anota Caminha. A coletânea prossegue então com excertos dos padres Anchieta e Vieira, dos árcades Tomás Antonio Gonzaga e Basílio da Gama, dos românticos Alencar e Castro Alves, de Machado, até chegar ao século de Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Drummond.
Percebe-se que o livro é resultado de uma pesquisa bem-feita, que procurou incluir não só os autores mais relevantes de cada período, mas também se preocupou em dar conta dos problemas específicos de cada região do país: os engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste, a exploração do ouro nas Minas Gerais, as plantações de café em São Paulo, a escravidão nas estâncias gaúchas, os fluxos migratórios do sertão para o sul, o massacre de Canudos, o recrutamento forçado de nortistas para a Guerra do Paraguai.
Como acontece com toda antologia, sobretudo com uma antologia temática como essa, pode-se objetar que o organizador deveria ter incluído, por exemplo, algum texto sobre a exploração do trabalho nos seringais da Amazônia -que por sinal deu uma literatura bem interessante, de Ferreira de Castro a Claudio de Araujo Lima. Ou que estaria faltando algum escritor "indispensável". Ou ainda que, de um determinado autor, teria sido melhor selecionar esse texto em vez daquele. Tudo isso é passível de discussão, uma discussão aliás estéril e sem fim. O que merece ser questionado é se o livro foi bem-sucedido em suas intenções ou não.
Se o objetivo do organizador e editor foi chamar a atenção de um maior número de leitores para os conflitos sociais brasileiros por meio de obras literárias, os resultados são bastante duvidosos. Apesar das boas intenções e da seriedade da pesquisa, os textos compilados em "Com Palmos Medida", por serem quase todos fragmentos extraídos de seus contextos originários, perdem muito do interesse e às vezes até o sentido. Isso acontece porque as obras literárias e paraliterárias (discursos, crônicas etc.) reunidas na antologia são todas, na prática, reduzidas a simples documentos sociológicos a serviço de uma tese -a tese, de resto correta, de que o Brasil é um país carcomido pela desigualdade social.
Tampouco a coletânea funciona adequadamente como obra de referência ou didática, já que a maioria das peças ali presentes aparece de forma incompleta -capítulo de romance, cena de auto, fragmento de discurso.
Por tudo isso, o interesse do livro acaba de fato se restringindo a um público especializado, para quem a antologia passa a fazer sentido porque se articula a um conhecimento prévio dos textos, servindo assim como mais uma provocação e ponto de partida para se discutir, entre outras coisas, as relações entre literatura e sociedade ou o célebre pendor da literatura brasileira para o documentário social.
"Com Palmos Medida" termina valendo também -agora que o país está prestes a completar 500 anos- como um registro desigual e melancólico da frustração por reformas profundas que o Brasil, de fato, nunca chegou a conhecer. Como diz Antonio Candido no prefácio ao livro, "invertendo a proposição otimista que embalou a formação de tantas gerações: não há por que nos ufanarmos do nosso país".



A OBRA

Com Palmos Medida - Terra, Trabalho e Conflito na Literatura Brasileira - Org. Flávio Aguiar. Ed. Fundação Perseu Abramo/Boitempo (av. Pompéia, 1991, Perdizes, CEP 05023-001, SP, tel. 0/xx/3865-6947). 416 págs. R$ 42,00.




Texto Anterior: Tréplica - Abel Barros Baptista: Dois belos casos
Próximo Texto: Diálogos impertinentes - Nelson Ascher: O patriotismo da política
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.