São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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Civilização escrita e falada

Nos oito textos reunidos em "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime", o historiador Roger Chartier identifica, já no século 18, a imbricação entre alta e baixa culturas

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

O pensador Paul Ricoeur escreveu em um de seus livros mais conhecidos -"Tempo e Narrativa" [ed. Papirus]- que os historiadores, quando requisitados a pensar sobre os fundamentos teóricos que amparam a sua atividade, são tão inábeis que se parecem com artesãos descrevendo o seu ofício. Pode-se, sem dúvida, alegar que Ricoeur exagera e que, talvez, suas cobranças não passem de lamúrias de um filósofo saudoso dos tempos em que a filosofia, tida como saber fundante das outras ciências, tinha lá seus privilégios.

Teoria crítica
Pode-se, por certo, alegar isso e muito mais; no entanto, há de ter em conta que a assertiva de Ricoeur não é de todo caluniosa, ainda porque não são muitos os historiadores que se dedicam a refletir sistematicamente sobre os pressupostos teóricos que norteiam o seu trabalho -e, como bem sabemos, conscientes ou "selvagens", tais pressupostos sempre existem.
Ultimamente, entre aqueles historiadores de profissão que teimam em contradizer a incômoda colocação de Ricoeur, um dos nomes mais sonantes é o do francês Roger Chartier, cujos ensaios de matiz conceitual têm feito grande sucesso entre os especialistas. O leitor que quiser avaliar em que medida e com que pertinência as posições propostas nesses ensaios têm norteado a atividade do historiador Chartier deve percorrer atentamente as páginas de "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime", obra recentemente publicada no Brasil.
Embora os oito ensaios que compõem o livro não tratem direta e explicitamente de questões teóricas, os objetos que o autor aí constrói, os problemas que pretende resolver e as nuanças que põe em relevo constituem um excelente exemplo de como a reflexão teórica apurada garante uma construção mais coesa, criativa e, sobretudo, coerente do saber histórico.
"Leituras e Leitores", como mencionado, é composto por oito ensaios reunidos pelo próprio autor em 1989 e que abordam temas variados, todos referentes à cultura na França do Antigo Regime: a relação entre traços impostos e traços inventados nas festas populares; as diversas construções e os meios de propagação da idéia de "civilidade"; as variações nos ritos a serem respeitados diante da morte; os meios de propagação do impresso e a criação de um público para tais artigos; a prática da leitura entre os camponeses; e, ainda, a coleção de livros "populares" denominada Biblioteca Azul. Tal diversidade de temas e objetos, porém, se ordena a partir de duas inquietações centrais: de um lado, demonstrar a impossibilidade de traçar um limite preciso entre cultura popular e cultura dominante e, conseqüentemente, pôr em causa a própria idéia de cultura popular; de outro, mostrar que, no Antigo Regime, a "cultura tradicional" (oral e gestual) e a cultura escrita, que começava a ganhar terreno, não são domínios tão independentes como outrora se pensava.
Daí o historiador buscar explicitar, por exemplo, o quão impregnados estavam os livros "populares" da Biblioteca Azul por histórias, temas e figuras de uma literatura "erudita" ou o quanto as festas urbanas misturavam, em diferentes medidas, traços impostos pela Igreja ou pelo Estado com outros provenientes da tradição popular. Interessa-lhe, nessas e em outras análises, suspender certos conceitos e partições quase naturalizados pela história da cultura -e toda história é, de certo modo, cultural, segundo Chartier-, substituindo-os não por outros, supostamente mais maleáveis, mas sim por "descrições acuradas" dos modos de produção, circulação e apropriação da cultura na sociedade francesa do Antigo Regime.
Um "positivismo feliz", ao gosto de Foucault? Talvez, afinal, como escreveu há tempos Peter Burke, Chartier é o historiador da nova geração mais próximo do autor de "O Cuidado de Si". Todavia, se essa proximidade existe, "Leituras e Leitores" deixa claro que ela não é da ordem nem da transposição de modelos nem da obediência a um suposto método. Dito de outro modo, deixa claro que Chartier não "aplica" uma teoria de Foucault ou de qualquer outro, mas vê a história (e o mundo) através das lentes de um determinado "óculo" teórico.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).

Leituras e Leitores na França do Antigo Regime
396 págs., R$ 42,00
de Roger Chartier. Trad. Álvaro Lorencini. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, São Paulo, SP, CEP 01001-900, tel. 0/xx/11/3242-7171).



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