São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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Ponto de fuga

A carne e o mármore

Jorge Coli

No museu Guggenheim de Berlim, uma exposição: "Robert Mapplethorpe e a Tradição Clássica - Fotografias e Gravuras Maneiristas". Pode-se argumentar: se é clássico, não é maneirista; se é maneirista, não é clássico. O título se refere, porém, de modo mais preciso, à "tradição clássica", à qual o maneirismo pertence, já que ele é, por assim dizer, sua perversão.
O problema não é tanto o de unir esses dois termos, classicismo e maneirismo. Está antes na crença de que o melhor modo para perceber a relação entre Mapplethorpe e o classicismo é sintonizá-la com o universo maneirista.
À primeira vista, a idéia é sedutora. O maneirismo contém uma intensidade erótica pouco ortodoxa; a notoriedade imediata de Mapplethorpe vem dos escândalos provocados por suas fotografias obscenas. Aparente coincidência apenas, pois basta confrontá-las com as gravuras flamengas ou holandesas do século 16, expostas lado a lado, para perceber a distância entre os dois universos. Mapplethorpe não busca formas retorcidas e instáveis. Suas anatomias não apresentam o jogo inquieto de relevos sob a epiderme, tão presentes naquelas antigas pranchas. A célebre mão, desenhada por Goltzius em 1588, serve de emblema para a mostra. Suas veias acentuadas, suas juntas nodosas, sua crispação, definem com nitidez um conjunto de interesses visuais sem equivalente possível nas fotografias. Porém, se as comparações propostas não convencem, a mostra tem o mérito de indicar o caminho. Compreender em profundidade a natureza das imagens de Mapplethorpe é encontrar a substância clássica de que são feitas.

Mood - "Meu trabalho é sobre ordem. Sou um perfeccionista." "Procuro a perfeição na forma. Faço isso com retratos. Faço isso com cacetes. Faço isso com flores." Essas declarações são de Mapplethorpe. Ele poderia ter acrescentado: "Faço isso com estátuas da Antigüidade". Elas são, como os retratos, as flores e os cacetes, recorrentes em sua obra. As fotos sadomasoquistas, os closes "pornográficos", levam muitos críticos (entre eles, os dos ensaios no catálogo da exposição berlinense) a insistir no caráter iconoclástico dessa criação. Ao contrário, trata-se de uma "iconia", ou de uma "icastia", já que as imagens de Mapplethorpe se mostram sólidas, inabaláveis, representando os objetos com pureza de contornos e de superfícies, na simplificação do preto-e-branco.
Ele parte de temas nos quais pulsam uma clara vitalidade interior. A forma, muito controlada, se encarrega de conter, em todos os sentidos da palavra, a expansão exuberante das forças vitais. As referências a serem encontradas na história não correspondem nem aos maneiristas nem a Rodin, como alguns também sugerem. Elas estão em Canova e Thorvaldsen, em David, mas sobretudo Girodet, Ingres. Ou seja, numa bela filiação neoclássica, que desdobrou seus purismos até o século 20, até o art déco. A sexualidade, assim, como todo o resto, se cristaliza, se eterniza e purifica.

Outro assunto - Bayreuth, pequena cidade alemã da Francônia, é graciosa. Teve uma corte brilhante no século 18 e conserva testemunhos da mais requintada cultura rococó. É sobretudo conhecida porque lá Wagner escolheu uma colina para construir seu teatro, lá morou e lá foi enterrado. O festival de suas óperas, todo verão, é o único lugar no mundo em que se pode mergulhar, com tanta intensidade, na obra de um único compositor. Tudo respira Wagner e sua família, em Bayreuth. A casa em que morou é um museu. Neste ano, abrigou uma exposição sonora sobre os primeiros cantores do festival.

Ecos - Por ocasião da mostra sobre os antigos intérpretes de Wagner em Bayreuth, foi editado um álbum com 12 CDs, horas e horas de gravações com artistas que atuaram ali, de 1876 a 1906. Mesmo se a qualidade técnica daqueles tempos deixa a desejar, mesmo se técnica vocal e estilo podem surpreender, a emoção que esses registros transmitem permanece intacta. Entre tantos, é quase miraculoso ouvir, na névoa dos chiados, a voz de Hermann Winkelmann, o primeiro Parsifal.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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