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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Simpósio internacional realizado nos EUA discutiu estatuto literário de "Os Sertões"

Euclides entre a ficção e a história

Adriano Schwartz
enviado especial a Austin, Texas

Os Sertões", de Euclides da Cunha, é uma obra de literatura ou de história? Iniciadas no ano passado, as comemorações do centenário de publicação do texto tiveram o seu fecho simbólico há duas semanas, em um simpósio internacional realizado na Universidade do Texas, em Austin (EUA), no qual essa foi a questão mais debatida. Participaram do congresso, coordenado por Leopoldo Bernucci, diretor do departamento de português e espanhol da universidade, especialistas do Brasil, dos EUA e da Europa. A dúvida sobre o caráter do livro não é, evidentemente, nova. Em um célebre comentário, escrito logo após o seu lançamento, o crítico José Verissimo dizia: "O livro do sr. Euclides da Cunha [...] é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista".

Literatura como borda
Ao longo do simpósio, a posição de Euclides como historiador foi defendida nos debates e, posteriormente, em conferência por Luiz Costa Lima, que deu prosseguimento às idéias que já lançara no estudo "Terra Ignota" (ed. Civilização Brasileira) e atacou o que denominou de "homogeneidade da recepção" do livro. Para o crítico, "a literatura se faz presente em "Os Sertões" apenas como borda que ornamenta um argumento que se quer científico".
Contra essa posição, colocaram-se, a partir de diferentes estratégias analíticas, Bernucci, autor de "A Imitação dos Sentidos" (Edusp), que apresentou a palestra "Cientificismo e Aporias em "Os Sertões'", e Berthold Zilly, tradutor do livro para o alemão e professor na Universidade de Berlim, que procurou mostrar traços da tragédia e da epopéia no texto euclidiano. Opuseram-se também Lourival Holanda, da Universidade Federal de Pernambuco, e Sara Castro-Klarén, da Johns Hopkins University.
A professora peruana, aliás, teve um curioso diálogo quando reencontrou Costa Lima, a quem já conhecia, um dia antes do início do congresso. Depois de se cumprimentarem, ela disse que havia relido recentemente "Os Sertões" e ficara novamente espantada com a qualidade da narrativa do engenheiro e que julgava muito curioso o fato de ele se considerar um historiador. O brasileiro retrucou: "Mas ele é um historiador". "É claro que não é", disse ela; "é claro que é", disse ele; "não, não é"...
Frederic Amory, da Universidade de San Francisco, comentou brevemente alguns ensaios sobre Canudos e Euclides da Cunha -sendo especialmente crítico em relação aos "erros factuais" de "O Sertão Prometido" (Edusp), do brasilianista Robert Levine- e apresentou alguns dos pressupostos da biografia que está preparando.
Francisco Foot Hardman, da Universidade Estadual de Campinas, tratou da "Poética das Ruínas em "Os Sertões'" e mostrou como a noção de ruína atravessa a obra euclidiana, estando presente já em seus escritos juvenis. Hardman trabalha atualmente, com Leopoldo Bernucci, em uma compilação de poemas do escritor, muitos dos quais inéditos, que deve ser lançada no primeiro semestre do ano que vem.
Antônio Dimas, da USP, mostrou três reações de contemporâneos ao massacre de Canudos, com destaque para algumas crônicas de Machado de Assis, nas quais fica evidente que o autor de "Dom Casmurro" se posicionou de modo claro ao lado do governo no conflito, lamentando apenas que este não tenha agido mais rapidamente. "A Chave Gnóstica - Antonio Conselheiro, Euclides da Cunha e Borges" foi o título da palestra de Peter Elmore, da Universidade do Colorado, que contrastou o texto com uma de suas fontes principais, a obra do francês Ernest Renan (1823-1892).
A relação entre ciência e arte foi discutida por José Carlos Barreto de Santana, da Universidade de Feira de Santana (Bahia), e por Valentim Facioli, professor da USP e editor da Nankin, que relançou recentemente "Juízos Críticos" (co-edição com a editora da Unesp), a coletânea há muitos anos esgotada de artigos sobre "Os Sertões" publicados na época de sua primeira edição.
Apresentaram também trabalhos no simpósio Dain Borges (Universidade de Chicago), Luiz Valente (Universidade Brown) e Renata Wasserman (Universidade Wayne State).
Além das conferências e debates, o evento marcou também a abertura da exposição "Fotografando a Guerra", com imagens do conflito feitas por Flávio de Barros. Ela ocorrerá até 15 de janeiro de 2004 na biblioteca Benson, na qual existe uma das mais importantes coleções do planeta de livros e periódicos sobre assuntos latino-americanos.


O jornalista Adriano Schwartz viajou a Austin a convite da Universidade do Texas.


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