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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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"Os Dez Mandamentos da Ética" parte de Aristóteles para discutir os conceitos de certo e errado, mas ignora as reflexões de Maquiavel, Kant e Descartes sobre o tema

Um guia pré-moderno para o bem

Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha

Fernando Henrique Cardoso, o mais destacado intelectual tucano, falou constantemente sobre ética e política durante os seus mandatos presidenciais [1995-2002]. Usava Max Weber e se referia à ética da responsabilidade, que seus detratores assimilavam a uma ética com desconto. Não citava Maquiavel, que em última análise inspira Weber, pela simples razão de que o pensador italiano goza injustamente de má fama. Gabriel Chalita, secretário da Educação do Estado de São Paulo, publica agora um livro sobre ética, todo ele baseado em Aristóteles [384-322 a.C.]. Mas o contraste não podia ser maior, entre a ética moderna falada pelo ex-presidente e a ética antiga reescrita pelo educador, embora ambos sejam tucanos. Chalita expõe longamente e com clareza a "Ética a Nicômaco", que o pensador grego destinou a seu filho. É, pois, um trabalho de pedagogo. Mas cabe a pergunta: a ética aristotélica é adequada para a educação atual? Constitui uma boa base para pensar as escolhas em nossos dias?

"Verdade absoluta"
Falta, neste livro, uma definição do que é "bem". Essa palavra é presumida de ponta a ponta como também é presumido que exista uma "verdade absoluta" (pág. 100), o que dificilmente um filósofo de nossos dias admitiria, ou que "as verdades científicas" expressem "a essência e o comportamento das coisas" (pág. 138), o que tampouco um cientista aceitaria.
O autor assim não pergunta o que é o bem. Parece supor um consenso a seu respeito. Discute as escolhas, elogia o meio-termo, defende a amizade. Nada de que discordemos. Mas disso resulta um guia insuficiente para as questões de hoje, em especial porque esse livro não problematiza as boas intenções.
Daí um certo tom de prédica, mais que de questionamento, nessa ética. Uma ética moderna deve basear-se na autonomia do indivíduo e na opacidade do mundo. Este é opaco, porque desconhecemos para onde ele irá. Agimos sob uma luz turva. Ignoramos em que resultarão nossos atos.
E sabemos que boas intenções geram maus resultados, até do ponto de vista ético. Por isso, desde o fim da Idade Média, há uma consciência de que a simples exortação à ação equilibrada, nos termos de Aristóteles e de Tomás de Aquino, de pouco serve.
Além disso, a pessoa moderna é autônoma. Para esse ser "condenado à liberdade", que somos nós, não tem cabimento uma ética de dez mandamentos, como a que propõe Chalita. Até podemos seguir esses dez pontos, mas bastará isso para sermos éticos? Podemos ser éticos sem uma forte dúvida sobre o certo e errado, o bom e o mau? O que quer que pensemos de Kant, o cerne de sua ética é mais válido hoje do que o Aristóteles aqui invocado. Insisto na autonomia do sujeito ético. Ela se expressa na regra de que cada um escolha livremente como agir, sob uma só condição: que todo ato seu signifique a proclamação de que todo e qualquer homem deva agir do mesmo modo. Podemos divergir dos detalhes da formulação kantiana, mas essa tese é forte. Implica que não haja mapa prévio do certo e do errado. Coloca-nos diante de nossa responsabilidade. Mas a condiciona a um princípio fortíssimo, o da igualdade e reciprocidade entre os homens. Se mato, furto ou furo fila, autorizo todos os demais a matar(-me), a furtar(-me) e a furar(-me a) fila. Os valores éticos, que Chalita não questiona, ele também os aplica à política. Entendo que sua prédica cause sucesso.


As idéias de Gabriel Chalita caem em solo fértil, o de uma sociedade cansada de corrupção e sequiosa de decência


Descarte
Mas me impressiona como está alheia à discussão dos últimos 500 anos e não só por sua definição da ciência, já citada. Há uma grande distância entre o que dizia Fernando Henrique Cardoso, citando Weber, e o que diz o responsável pela educação paulista. Aqui, não há problematização dos elos entre ética e política. É só aplicar a primeira à segunda. Mas, para tanto, é preciso descartar o que se pensou sobre ética e política desde a Renascença.
As idéias de Gabriel Chalita caem em solo fértil, o de uma sociedade cansada de corrupção e sequiosa de decência. Mas, contra esses inegáveis males, não adianta postular uma ética que suponha o bem, sem interrogar sua ambiguidade. A modernidade nasce, séculos atrás, de uma série de dúvidas. "O que é o bem?" é uma delas. Maquiavel, mostrando como a boa intenção pode resultar em males, Descartes, questionando as evidências dos sentidos, e Kant, exortando-nos a "ousar saber", romperam com um universo transparente de valores que nos bastaria identificar e seguir. Uma ética para nossos dias não pode esquecer a modernidade.

Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "A Universidade e a Vida Atual - Fellini Não Via Filmes" (ed. Campus).

Os Dez Mandamentos da Ética
224 págs., R$ 25,00
de Gabriel Chalita. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2537-8770).


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