São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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+ brasil 501 d.C.
O barão assinalado


O barão de Rio Branco não podia prever que a assimetria entre nós e as nações poderosas aumentaria; por isso mesmo, sua atenção para com os Estados Unidos era acompanhada de um menor cuidado quanto a nossos vizinhos hispano-americanos


Luiz Costa Lima

As comemorações por nossos 500 anos foram no mínimo paradoxais: ao passo que a mais badalada terminou com o "naufrágio" da caravela que encenava a descoberta, uma das menos divulgadas, a publicação da série "Identidade Brasileira", lançada pela ed. Contraponto, editou sete pequenos ensaios sobre figuras relevantes de nossa história. A partir dela, pode-se supor que o incentivador da pesquisa científica no Brasil, Álvaro Alberto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, enquanto editor, o barão de Rio Branco, o marechal Rondon, Santos Dumont e Villa-Lobos tenham seus feitos mais divulgados entre mais ampla parcela da população ou no estrangeiro, entre os que se interessem por nós. A simples nomeação dos escolhidos mostra que os patrocinadores não privilegiaram alguma atividade específica. E a leitura dos textos -nem todos, por certo, de mesmo nível-, que seus autores se preocuparam com uma formulação sóbria, honesta e simples. Como, além do mais, cada volume contém uma pequena iconografia -o ensaísta Alberto Venâncio Filho me faz saber que a referente a Euclides é equivocada, na identificação de datas e personagens- as reconstituições se tornam mais vivas. Entre os ensaios, destaca-se o escrito por Rubens Ricupero sobre o barão de Rio Branco (1845-1912). Ao menos este, seja porque se trata de personalidade relativamente pouco estudada, seja por seu papel no estabelecimento da política externa do país, mereceria a divulgação que não tem.

A escolha de Rio Branco
Louve-se de início a opção do autor: destacar Rio Branco menos por seus êxitos no estabelecimento das fronteiras do país do que por seu empenho na "inserção do país no mundo", isto é, em "interpretar o mundo para o país e este para o mundo". Não que aquelas vitórias tenham sido pequenas no contencioso das Misiones (1895), na questão do Amapá (1898-1900) e a mais difícil, a questão do Acre (1912) -senão que apenas apresentam a parte mais visível de uma vida que se confundia com a defesa dos interesses da nação. Assim se mostra pelo encadeamento sobretudo de três capítulos, "Os Anos de Preparação", "O Longo Estágio no Estrangeiro", "O Período da Vida Ativa". As observações que se seguem se baseiam fundamentalmente neles. Destaque-se desde logo que, embora como seu pai, o visconde de Rio Branco, o futuro barão integrasse a "classe dirigente do Império", pai e filho não foram, como seria hoje de esperar, homens ricos. Em vez de acentuar a eticidade que assim os caracterizava, o autor prefere, justamente sob a influência da interpretação do país por Raimundo Faoro, em "Os Donos do Poder", destacar que a modéstia econômica dos Paranhos estava ligada a que, entre nós, "o que de fato contava como fonte de emprego era o Estado", que, por si, não permitia o acúmulo de riquezas ou as bruscas oscilações de fortuna e fracasso, tão comuns nos Estados Unidos da época. Daí Ricupero tem a felicidade de formular um certo tipo de personalidade, que tanto Rio Branco como Nabuco encarnam: "A dependência completa do Estado vai criar um tipo de personalidade para a qual país, nação e pátria eram noções absorvidas pelo conceito de Estado, fora do qual não se concebia a salvação (daí talvez o "adesismo" brasileiro, de que não escapou o barão, monarquista, mas fiel servidor da República)". Assim, como seu amigo Nabuco, também filho de político famoso do Segundo Reinado, sua primeira viagem à Europa é parcialmente financiada por meios ocasionais; no caso de Nabuco, o recebimento de uma pequena herança, no caso de Rio Branco, por um bilhete de loteria. Ao voltar, porém, da Europa, sem vocação para a carreira de direito em que se formara, Rio Branco tenta ser professor do colégio Pedro 2º ou promotor. As experiências não duram mais do que alguns meses. Procura então na política um meio de subsistência. Aí lhe vale o prestígio paterno. Com o apoio dos chefes do Partido Conservador, torna-se deputado por Mato Grosso, integrando a Câmara por duas legislaturas (1869-1876) e destacando-se apenas na última, quando o pai, chefiando o mais longo gabinete do Segundo Reinado (1871-1875), se torna responsável pela decretação da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871). Mas tampouco a opção política o satisfazia. Ricupero oferece uma explicação plausível para o não prosseguimento da carreira: o futuro barão, então reconhecido como boêmio, engravida uma atriz e com ela estabelece relação estável.

Estágio no estrangeiro
Como, entretanto, conciliar a responsabilidade de pai de família com a situação de desempregado? Rio Branco vê uma saída para o dilema pleiteando o posto de cônsul em Liverpool, o mais importante porto inglês da época. A moralidade "vitoriana" do Segundo Reinado não o favorecia e ele só consegue a nomeação graças ao fato de, estando Pedro 2º na Europa, a regente, a princesa Isabel, atender seu pedido. Inicia-se seu "longo estágio no estrangeiro" (1876-1902). Ao partir, estava o Império no auge; ao voltar, já a República se instalara.
Durante a semi-obscuridade em que viveu, Rio Branco, por um lado, desenvolvia sua paixão pelo exame de mapas antigos e de documentos históricos e, por outro, acumulava a experiência de viver no país que era "a encarnação do capitalismo industrial, do liberalismo político e do sistema parlamentar de governo". Sem que soubesse, se preparava para a missão que, paradoxal e curiosamente, lhe será oferecida apenas pelo governo republicano. Pois, como bem diz Ricupero, é o governo jacobino de Floriano "que descobre" o funcionário temeroso de perder seu emprego, logo lhe confiando a chefia da delegação brasileira na questão das Misiones (1895).
Seu primeiro êxito o qualifica para o próximo contencioso, o do Amapá. Também vitorioso, é chamado em Berlim, onde então servia, por Rodrigues Alves, recém-eleito presidente, para se tornar ministro das Relações Exteriores. Assumindo o cargo em 1902, nele morrerá, em 1912. É esse, como mostra seu analista, o período mais intenso de sua vida.
Desde logo, em que se depara com a questão complicada do Acre. Não se trata, bem o capta seu analista, de repetir as manobras aprendidas com as questões anteriores de fronteiras. Pois o conflito envolve não apenas países vizinhos, sobretudo a Bolívia, como interesses norte-americanos e europeus, presentes sob a forma dos acionistas do Bolivian Syndicate, ao qual a Bolívia cedera a terra em questão. A habilidade do negociador agora havia de contar com outro fator: a assimetria de poder entre o Brasil e um de seus contendores. Interessa-nos menos acentuar a estratégia de Rio Branco em negociar com cada parte em separado, combinar força e compromisso do que acompanhar Ricupero na formulação da política brasileira diante dos Estados Unidos.
A "aliança não escrita" que então se estabelece era condicionada por três elementos: "A convergência ideológica, o aspecto pragmático e o esforço constante de uma difícil harmonização entre os interesses dos Estados Unidos e os da América Latina". No primeiro, importa tanto "a homogeneidade do sistema internacional de então" como a "personalidade acentuadamente conservadora" do ministro. Apesar dessa convergência, Ricupero mostra que a política externa brasileira não se confundia com a norte-americana: ao passo que a política do Big Stick, de Theodore Roosevelt (1858-1919), incorporava a prática européia do expansionismo, não importando qual o preço de violência a pagar, Rio Branco compreendia que nossas questões de fronteira estavam resolvidas e era possível desenvolver uma política externa pacífica. Além do mais, "a aliança não escrita" não supunha o apoio incondicional às posições norte-americanas. O analista nota a diferença com o que sucederá em 1950, quando o pragmatismo de Rio Branco se convertera em dogma. Seu substituto de então afirmará "não poder conceber outra política externa que não fosse a de apoiar os Estados Unidos nas grandes questões internacionais". Rio Branco nunca praticou tal adesismo.

Os próprios limites
Daí, perante fenômeno de agora, "não seria ele certamente que se engajaria no imprudente desmantelamento do Estado em nome de uma globalização e liberalização que exigem, ao contrário, forte e efetivo Estado regulador". Pois a análise de Rubens Ricupero não visa apenas a divulgar a ação de um homem notável. E não apenas assinalar decisões que não se conciliam com as que teriam sido suas, mas ainda mostrar seus próprios limites. Dois se destacam: Rio Branco não podia prever que a assimetria entre nós e as nações poderosas aumentaria, chegando ao ponto em que hoje nos encontramos.
Por isso mesmo, sua atenção para com os Estados Unidos era acompanhada de um menor cuidado quanto a nossos vizinhos hispano-americanos, razão, diga-se de passagem, do rompimento da amizade que o ligara a Oliveira Lima. Reconhecê-lo torna o estudo de Rubens Ricupero duplamente exemplar: exemplar pela sóbria formulação da política que caracterizou Rio Branco; mas ainda exemplar por verificar o ponto em que falhou: não o de não prever o aumento da desigualdade que hoje nos pesa, mas sim o de não levar em conta as diferenças que nos separam de nossos vizinhos. Diferenças que não se encerram em acordos econômicos.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis -Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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