São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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As vias abertas da América Latina

Alain Touraine

A América Latina está agora cindida em dois, não pela geografia que oporia a América do Norte à do Sul, mas porque existem dois projetos conscientes para a América Latina, encabeçados não por uma parte do continente, mas por dois países, o México e o Brasil, que procuram, um e outro, orientar o futuro de todo o continente. Os outros países, Argentina e Chile incluídos, não dispõem da capacidade de propor um projeto diverso. O antagonismo entre os dois projetos não é uma invenção de jornalistas ou politólogos; ele é claramente reconhecido pelas elites dirigentes de cada país e se expande em categorias cada vez maiores.
O caso mais interessante é o do México, pois esse país, que experimentou por muito tempo o vivo antiamericanismo, se tornou em poucos anos favorável à situação criada pelo Nafta (Área de Livre Comércio da América do Norte). Não somente muitos mexicanos se definem como norte-americanos, identificação reforçada pela latinização do sul dos Estados Unidos, mas afirmam também que essa integração econômica não acarreta subordinação política ou dependência cultural. E a realidade mexicana contribui com argumentos de peso para essa tese. O México é provavelmente a sociedade mais viva do continente; acaba de sair de um longo regime de partido-Estado e leva uma vida cultural bastante ativa, apesar da grave crise da Universidade Nacional, fechada durante um ano.
E nada indica que o presidente Vicente Fox, decidido a separar a economia da política, e portanto favorável à economia de mercado, esteja disposto a aceitar todas as políticas americanas. Além disso, ele assinalou sua vontade de desenvolver relações com a Europa. Façam como nós, diz o México ao resto do mundo, aceitem um tratado de livre-comércio muito menos exigente que o Mercosul e reforcem ao mesmo tempo sua capacidade de ação política e sua cultura hispânica ou ibérica. Os próprios Estados Unidos estão empenhados demais na expansão de sua zona econômica para lançar uma política neocolonial.
Além do México, certos países (como a República Dominicana) estão ainda mais próximos dos Estados Unidos, onde vive 1 milhão de imigrantes. Mas esses dois países e outros mais rejeitam terminantemente a idéia de que poderiam seguir o caminho de Porto Rico.
No conjunto do continente, o que chama a atenção é a fraqueza, tanto política como econômica, da maioria dos países. Quanto ao Chile, que viveu um grande desenvolvimento econômico num passado recente, ele se vê bastante seduzido pelo modelo mexicano, sobretudo desde o tratado que desenvolveu em muito o comércio entre os dois países. Enfim a Argentina de Menem, ao dolarizar a economia, marcou seu desejo de apoiar a política americana, sobretudo para resistir ao Brasil.
Resta, afinal, o Brasil. Sua posição é completamente diferente da de outros países. Ele se sabe e se quer o líder do continente, e seus vizinhos não discutem sua liderança, quer a temam ou a desejem. A posição brasileira é naturalmente oposta àquela do México. Em parte porque o comércio brasileiro estava repartido entre os EUA, a Europa Ocidental e o resto do mundo; em parte porque o Brasil adquiriu uma capacidade de produção tecnológica e industrial que nenhum outro país da região possui; mas também porque a magnitude geográfica e econômica do país lhe permite, e somente a ele, ter uma política econômica de grande potência que a Argentina nem sonha em ter e que o México busca mais do que nunca adquirir, agora que está integrado ao Nafta.
A política brasileira consiste, pois, em reagrupar em torno do Brasil a vontade de independência da América do Sul, não para se opor aos Estados Unidos, mas para formar um núcleo de resistência que possa negociar, em posição de força relativa, com os Estados Unidos. Ninguém põe em dúvida no Brasil a independência política do país e sua identidade cultural.
Essa breve descrição mostra claramente a oposição dos dois projetos e, em consequência, o vazio que recobre a idéia da América Latina. Mas, a partir daí, será que podemos prever o triunfo de um desses dois modelos ou sua inevitável fusão ou sua inevitável justaposição, que reforçaria a ruptura do continente em dois? Enfim, cabe formular a pergunta: o modelo brasileiro é vazio se não incorporar o México? A essa última pergunta é fácil dar a resposta, sobretudo depois que o presidente FHC convidou a Brasília todos os chefes de Estado da América do Sul, deixando de lado, de maneira espetacular, o México e os países da América Central e Caribe.
Uma reaproximação com o México acarretaria um enfraquecimento do modelo brasileiro e, de fato, a adoção pelo Brasil da "via" mexicana. Inversamente, o Brasil fechar-se no Mercosul seria uma solução bem menos atraente do que antes da desvalorização brasileira e da crise econômica argentina. O Brasil não pode, portanto, escolher uma outra via que não a escolhida pelo presidente, pelo menos se quiser reforçar sua autonomia de decisão.
Cabe agora formular questões difíceis: um e outro modelo são viáveis? Do lado mexicano, pode-se proteger e desenvolver a originalidade política e a cultura do país admitindo sua integração ao Nafta, ou seja, ao espaço americano? A resposta depende antes de tudo da evolução política do México. Se lograr construir um sistema político, ou seja, partidos independentes do Estado e capazes de liberar as forças sociais do país, em primeiro lugar os sindicatos, o México pode se tornar um Estado forte. Do contrário, se os partidos do tipo atual se mantiverem no poder ou se a marginalização das categorias pobres, da metade inferior da população, conduzir a uma violência que limite o controle real das instituições sobre o país, a ambição atual do México parecerá irrealista. E é cedo demais para saber se a queda do PRI (Partido Revolucionário Institucional) pode ser transformada na criação de uma nova esquerda.
Quanto ao Brasil, ele melhorou suas instituições políticas, mas ainda não expandiu o bastante a sociedade para que se forme uma consciência nacional baseada em esperanças e proposições.
Num caso como no outro, o sucesso de um projeto político depende antes de tudo da força das instituições políticas e da integração social. Como ela não é grande em nenhum dos dois casos, o modelo brasileiro parece mais realista por se apoiar em escolhas econômicas mais livres. Porém o vigor do México atual pode ele próprio reforçar a credibilidade do modelo dito brasileiro.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Ed. Vozes).
Tradução de José Marcos Macedo.



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