|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ autores
As vias abertas da América Latina
Alain Touraine
A América Latina está agora cindida em dois, não pela geografia
que oporia a América do Norte à
do Sul, mas porque existem dois
projetos conscientes para a América Latina, encabeçados não por uma parte do
continente, mas por dois países, o México e o Brasil, que procuram, um e outro,
orientar o futuro de todo o continente.
Os outros países, Argentina e Chile incluídos, não dispõem da capacidade de
propor um projeto diverso. O antagonismo entre os dois projetos não é uma invenção de jornalistas ou politólogos; ele é
claramente reconhecido pelas elites dirigentes de cada país e se expande em categorias cada vez maiores.
O caso mais interessante é o do México, pois esse país, que experimentou por
muito tempo o vivo antiamericanismo,
se tornou em poucos anos favorável à situação criada pelo Nafta (Área de Livre
Comércio da América do Norte). Não
somente muitos mexicanos se definem
como norte-americanos, identificação
reforçada pela latinização do sul dos Estados Unidos, mas afirmam também que
essa integração econômica não acarreta
subordinação política ou dependência
cultural. E a realidade mexicana contribui com argumentos de peso para essa
tese. O México é provavelmente a sociedade mais viva do continente; acaba de
sair de um longo regime de partido-Estado e leva uma vida cultural bastante ativa, apesar da grave crise da Universidade
Nacional, fechada durante um ano.
E nada indica que o presidente Vicente
Fox, decidido a separar a economia da
política, e portanto favorável à economia
de mercado, esteja disposto a aceitar todas as políticas americanas. Além disso,
ele assinalou sua vontade de desenvolver
relações com a Europa. Façam como
nós, diz o México ao resto do mundo,
aceitem um tratado de livre-comércio
muito menos exigente que o Mercosul e
reforcem ao mesmo tempo sua capacidade de ação política e sua cultura hispânica ou ibérica. Os próprios Estados Unidos estão empenhados demais na expansão de sua zona econômica para lançar
uma política neocolonial.
Além do México, certos países (como a
República Dominicana) estão ainda
mais próximos dos Estados Unidos, onde vive 1 milhão de imigrantes. Mas esses
dois países e outros mais rejeitam terminantemente a idéia de que poderiam seguir o caminho de Porto Rico.
No conjunto do continente, o que chama a atenção é a fraqueza, tanto política
como econômica, da maioria dos países.
Quanto ao Chile, que viveu um grande
desenvolvimento econômico num passado recente, ele se vê bastante seduzido
pelo modelo mexicano, sobretudo desde
o tratado que desenvolveu em muito o
comércio entre os dois países. Enfim a
Argentina de Menem, ao dolarizar a economia, marcou seu desejo de apoiar a
política americana, sobretudo para resistir ao Brasil.
Resta, afinal, o Brasil. Sua posição é
completamente diferente da de outros
países. Ele se sabe e se quer o líder do
continente, e seus vizinhos não discutem
sua liderança, quer a temam ou a desejem. A posição brasileira é naturalmente
oposta àquela do México. Em parte porque o comércio brasileiro estava repartido entre os EUA, a Europa Ocidental e o
resto do mundo; em parte porque o Brasil adquiriu uma capacidade de produção tecnológica e industrial que nenhum
outro país da região possui; mas também
porque a magnitude geográfica e econômica do país lhe permite, e somente a ele,
ter uma política econômica de grande
potência que a Argentina nem sonha em
ter e que o México busca mais do que
nunca adquirir, agora que está integrado
ao Nafta.
A política brasileira consiste, pois, em
reagrupar em torno do Brasil a vontade
de independência da América do Sul,
não para se opor aos Estados Unidos,
mas para formar um núcleo de resistência que possa negociar, em posição de
força relativa, com os Estados Unidos.
Ninguém põe em dúvida no Brasil a independência política do país e sua identidade cultural.
Essa breve descrição mostra claramente a oposição dos dois projetos e, em consequência, o vazio que recobre a idéia da
América Latina. Mas, a partir daí, será
que podemos prever o triunfo de um
desses dois modelos ou sua inevitável fusão ou sua inevitável justaposição, que
reforçaria a ruptura do continente em
dois? Enfim, cabe formular a pergunta: o
modelo brasileiro é vazio se não incorporar o México? A essa última pergunta é
fácil dar a resposta, sobretudo depois
que o presidente FHC convidou a Brasília todos os chefes de Estado da América
do Sul, deixando de lado, de maneira espetacular, o México e os países da América Central e Caribe.
Uma reaproximação com o México
acarretaria um enfraquecimento do modelo brasileiro e, de fato, a adoção pelo
Brasil da "via" mexicana. Inversamente,
o Brasil fechar-se no Mercosul seria uma
solução bem menos atraente do que antes da desvalorização brasileira e da crise
econômica argentina. O Brasil não pode,
portanto, escolher uma outra via que
não a escolhida pelo presidente, pelo menos se quiser reforçar sua autonomia de
decisão.
Cabe agora formular questões difíceis:
um e outro modelo são viáveis? Do lado
mexicano, pode-se proteger e desenvolver a originalidade política e a cultura do
país admitindo sua integração ao Nafta,
ou seja, ao espaço americano? A resposta
depende antes de tudo da evolução política do México. Se lograr construir um
sistema político, ou seja, partidos independentes do Estado e capazes de liberar
as forças sociais do país, em primeiro lugar os sindicatos, o México pode se tornar um Estado forte. Do contrário, se os
partidos do tipo atual se mantiverem no
poder ou se a marginalização das categorias pobres, da metade inferior da população, conduzir a uma violência que limite o controle real das instituições sobre o
país, a ambição atual do México parecerá
irrealista. E é cedo demais para saber se a
queda do PRI (Partido Revolucionário
Institucional) pode ser transformada na
criação de uma nova esquerda.
Quanto ao Brasil, ele melhorou suas
instituições políticas, mas ainda não expandiu o bastante a sociedade para que
se forme uma consciência nacional baseada em esperanças e proposições.
Num caso como no outro, o sucesso de
um projeto político depende antes de tudo da força das instituições políticas e da
integração social. Como ela não é grande
em nenhum dos dois casos, o modelo
brasileiro parece mais realista por se
apoiar em escolhas econômicas mais livres. Porém o vigor do México atual pode ele próprio reforçar a credibilidade do
modelo dito brasileiro.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade"
(Ed. Vozes).
Tradução de José Marcos Macedo.
Texto Anterior: O barão assinalado Próximo Texto: + livros: A frivolidade de um apóstolo da desilusão Índice
|