São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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+ brasil 500 d.C.

Os esplendores da imortalidade


Nenhum dos dois pintores representou com exatidão os fatos. Pedro Américo, atendendo à finalidade da encomenda, buscou construir a imagem de um herói guerreiro, criador de uma nação. Moreaux, talvez pensando nas revoluções de sua pátria, pintou um líder popular

José Murilo de Carvalho

Um pintor de história deve restaurar com a linguagem da arte um acontecimento que não presenciou e que "todos desejam contemplar revestido dos esplendores da imortalidade". Assim escreveu Pedro Américo em texto explicativo sobre o quadro conhecido como "O Grito do Ipiranga", completado em Florença em 1888 por encomenda da comissão de construção do monumento do Ipiranga. A tela tornou-se ícone nacional, representação maior da Independência. O texto descreve o grande cuidado do pintor em reproduzir de maneira exata o acontecimento. Leu, pesquisou, entrevistou testemunhas oculares, visitou o local. No entanto, por razões estéticas, teria sido obrigado a fazer mudanças nas personagens e no cenário a fim de produzir os esplendores de imortalidade.
De início, dom Pedro não podia montar a besta gateada de que falam as testemunhas. O pedestre animal, apesar de ter arcado com o peso imperial, teve o desgosto de se ver substituído no quadro pela nobreza de um cavalo. Com maior razão, prossegue o pintor, o augusto moço não podia ser representado com os traços fisionômicos de quem sofria as incômodas cólicas de uma diarréia. Como se sabe, a diarréia fora o motivo da parada da comitiva às margens do Ipiranga (um irreverente poderia acusar dom Pedro de ter iniciado a poluição do desditoso riacho).

Ocasião de gala O uniforme da guarda de honra também foi alterado. A ocasião merecia traje de gala, em vez do uniforme "pequeno". Finalmente, o Ipiranga teve que ser desviado de seu curso para facilitar a composição do quadro. O carreiro com seu carro de bois, segundo o pintor, entrou em cena para dar cor local, retratar a placidez usual daquelas paragens, perturbada pelo acontecimento. Não aceitou a sugestão de obter o mesmo efeito com uma tropa de asnos, bicho que definitivamente desprezava. O que não impediu que seu carreiro fosse mais tarde objeto da mordacidade de Eduardo Prado, que nele viu o símbolo do povo brasileiro assistindo espantado à cena insólita.
O que Pedro Américo não conta é que seu quadro lembrava muito a tela "1807, Friedland", de Ernest Meissonier, talvez para não reavivar acusação anterior de ter plagiado a "Batalha de Montebelo", de Appiani, em sua "Batalha de Avaí". O quadro de Meissonier, pintado em 1875, refere-se à batalha de Friedland, vencida por Napoleão em 1807.
A semelhança na composição dos dois quadros é muito grande. Em ambos, a figura central, d. Pedro e Napoleão, é colocada sobre uma elevação do terreno, cercada por seus estados-maiores. Ao seu redor, em movimento circular, soldados entusiasmados saúdam com as espadas desembainhadas. A dinâmica das figuras nos dois quadros aponta para o centro ocupado pelo príncipe e pelo imperador. Sobressai em primeiro plano o movimento dos cavalos, cujo desenho exato era obsessão de Meissonier. Nos dois casos, finalmente, nenhuma ambiguidade quanto ao objetivo dos pintores: a exaltação do herói guerreiro.
Pedro Américo também não menciona em seu texto outro quadro sobre o mesmo tema da Independência, executado em 1844, a pedido do Senado imperial, por François-René Moreaux, um pintor francês então residente no Rio. Não se sabe se conhecia o quadro de Moreaux, sem dúvida inferior ao seu em qualidade. O certo é que as duas telas são antitéticas, como observou Maria de Lourdes V. Lyra. Moreaux altera mais radicalmente as figuras e o cenário. D. Pedro monta um cavalo, mas ergue o chapéu em vez da espada. Não está em posição mais alta, cercado de soldados, mas no meio de gente do povo, de mulheres e de crianças descalças que ocupam a frente da cena. O clima é de alegria festiva e não de exaltação patriótica.
Nenhum dos dois pintores representou com exatidão os fatos, como, aliás, querendo ou não o artista, sempre acontece. Mas a distorção tinha finalidades distintas. Pedro Américo, atendendo à finalidade da encomenda, buscou construir a imagem de um herói guerreiro, criador de uma nação. Moreaux, talvez pensando nas revoluções de sua pátria, pintou um líder popular, instrumento de um movimento coletivo que fez a Independência. Duas maneiras de contar a história, duas maneiras de construir a memória nacional. Ironicamente, Pedro Américo, mais fiel do que Moreaux ao que acontecera à margem do Ipiranga, estava mais distante do que o francês do que foi o processo de Independência.
Embora não tivesse havido no Brasil prolongada guerra de independência como na América espanhola, houve sangue derramado na Bahia, Pará e Maranhão. No Rio de Janeiro, foi intensa a participação popular, manifestada sobretudo no episódio do Fico, quando um abaixo-assinado com 8.000 nomes foi entregue a dom Pedro solicitando que permanecesse no país. Para uma cidade de uns 150 mil habitantes, em sua maioria analfabetos, era um número extraordinário.
Desde 1820, data da revolta do Porto, a agitação na capital era constante. Travara-se o que o padre Perereca chamou de guerra literária: centenas de panfletos políticos foram escritos debatendo com paixão os temas do dia: volta de dom João, permanência de dom Pedro, Independência, Monarquia, Constituição. A aclamação de dom Pedro em 12 de outubro, ao voltar de São Paulo, e a sagração a 1º de dezembro contaram com a presença entusiástica de milhares de pessoas no campo de Santana (praça da República) e no largo do Paço (praça 15). O povo do Rio não foi o carreiro de Pedro Américo, esteve mais próximo do povo de Moreaux.

Duas histórias
D. Pedro ficou no Brasil por decisão e a pedido dos brasileiros, povo e elite. Moreaux alterou o grito do Ipiranga para contar essa história. Pedro Américo o alterou para contar outra história. Todos os brasileiros conhecem o quadro de Pedro Américo, guardado no Museu do Ipiranga. Só os especialistas conhecem o quadro de Moreaux, hoje no Museu Imperial de Petrópolis.
Parece útil falar dessas duas maneiras de contar a história do país nestes dias de celebrações, de construção de marcos e monumentos em busca dos esplendores de falsa imortalidade.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.


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