São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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+ memória

Gérard Lebrun, um filósofo sem aspas


Pensador francês, encontrado morto no dia 10 deste mês em seu apartamento, em Paris, deu aulas no Brasil por mais de 30 anos


Hélio Schwartsman
especial para a Folha



O necrológio é o mais difícil dos gêneros jornalísticos, porque é essencialmente parcial e, por isso, indisfarçavelmente dissimulado: as qualidades do homenageado são enaltecidas, seus defeitos, ignorados ou, pelo menos, diminuídos. Não há como escapar à armadilha. Fazê-lo implicaria trair o gênero, resvalar na reportagem ou na denúncia. No caso de Gérard Lebrun, pelo menos, não é preciso faltar com a verdade ou edulcorá-la ao se descreverem suas qualidades.
Para começar, ele é um dos poucos que fazem jus ao título de filósofo, sem aspas e com toda a carga da palavra. Suas duas principais obras, "Kant e o Fim da Metafísica" (Martins Fontes) e "A Paciência do Conceito" (Gallimard), são clássicos da história da filosofia. A primeira, sua tese de doutorado, é um catatau de 800 páginas em que ele esmiúça a crítica do juízo kantiana. Na segunda, o autor analisado é Hegel, e o tema abordado, a dialética. Escrita na esteira dos acontecimentos de 68, Lebrun chocou intelectuais de esquerda ao afirmar que não havia propriamente uma filosofia hegeliana, que a dialética hegeliana seria uma espécie de jogo de discurso que sub-repticiamente antecipa e absorve todas as objeções de seus críticos como se fossem apenas momentos dela mesma.

Liberdade intelectual Lebrun não tinha medo de chocar, principalmente em política. Acho que era algo entre a afirmação da liberdade intelectual e o simples prazer de "épater". Era capaz, por exemplo, de fazer a defesa pública dos testes nucleares franceses no Pacífico e aplaudir as expedições punitivas do Exército israelense no sul do Líbano. Orgulhava-se de nunca ter acreditado nas boas intenções de Gorbatchov e considerava as posições de Ronald Reagan em política externa moderadas. Adorava a expressão "Império do Mal" para referir-se aos países do Leste Europeu. É quase desnecessário dizer que militou no PC francês em sua juventude.
De sua produção "brasileira" (textos escritos em francês, mas destinados à publicação aqui), destacam-se "O Que É Poder" (Brasiliense) e "Pascal" (Brasiliense). São duas pequenas obras-primas, um encontro feliz da didática do professor com a erudição do historiador. Os outros textos são "Passeios ao Léu" (Brasiliense), uma coletânea de artigos para a imprensa, em especial para o "Jornal da Tarde", e "O Avesso da Dialética" (Companhia das Letras).
Lebrun conhecia bem o português, bem o suficiente para apreciar autores difíceis como Guimarães Rosa, mas jamais se arriscou a escrever qualquer coisa que não em francês. Para ele, um domínio menos do que absoluto sobre o idioma impossibilitava a escrita. Daí a prosa sempre precisa, matizada e frequentemente saborosa de seus textos. O "estilo" que todos da Faculdade de Filosofia deveriam imitar.
O bom conhecimento do português e os mais de 30 anos em que dividiu seu tempo entre o Brasil e a França, entre a École Normale Supérieure e as caipirinhas nos mais discutíveis bares do largo do Arouche, não bastaram, porém, para que ele perdesse o forte sotaque. Desconfio até de que ele secretamente treinava para não perder esse sotaque, que tinha o seu charme e, nas aulas, servia a propósitos pedagógicos.

Lebrun conhecia o português bem o suficiente para apreciar autores difíceis como Guimarães Rosa

Era nas aulas que Lebrun era o maior dos mestres e foi com elas que exerceu influência sobre várias gerações de intelectuais brasileiros, entre os quais o presidente Fernando Henrique Cardoso. A seus cursos, dos dois lados do Atlântico -ele costumava alternar um semestre de aulas no Brasil com um em Aix-en-Provence, no sul da França-, acorria uma multidão de alunos. A razão para isso é bastante simples. Avesso a todas as "modernices" do ensino, como seminários ou atividades em grupo, Lebrun preparava as suas aulas -a ponto de saber o que estaria dizendo, por exemplo, no 38º minuto da explanação.
A variedade dos temas impressiona. Se num ano era um autor difícil e relativamente pouco estudado como Plotino, no outro era um curso temático -tipo filosofia do direito-, no qual abordava dezenas de autores de todos os portes e extrações. Nunca repetiu um mesmo curso num outro ano e sempre resistiu aos insistentes pedidos dos alunos para transformar as aulas em textos publicados.
Ainda sobre didática, gostava de dizer que toda a pedagogia do mundo não valia uma aula de teatro. Ensinar era encenar. Ele era capaz de levar toda uma platéia ao riso quando ridicularizava, por exemplo, a homofobia kantiana, em latim e sem necessidade de tradução.
A palavra que melhor descreve seu caráter é "generosidade". Era generoso com todo o tipo de gente, material e espiritualmente, do pior ao melhor aluno, do presidente da República ao mais humilde gari. E foi por generosidade que se viu enredado nas denúncias que o levaram a se afastar definitivamente do Brasil. No final de 96, a polícia carioca flagrou o gari desempregado Argenil Pereira com fotos de garotas de 7 e 9 anos simulando relações sexuais. Argenil disse que Lebrun lhe havia encomendado o material.
A imprensa deu tratamento escandaloso para o caso, e a prisão preventiva do filósofo por pedofilia foi decretada no início de 97. Lebrun negou as acusações, assumiu sua homossexualidade e admitiu que recebera fotos, mas que jamais as encomendara. Em nenhum momento procurou desmerecer seu acusador, com quem tivera um caso amoroso vários anos antes e que nunca deixara de frequentar. Aparentemente não guardou rancor de Argenil. O que o aborreceu, e muito, foi o tom que a imprensa, particularmente a carioca, mas não só, deu ao caso. Não seria exagero afirmar que essa foi uma das maiores mágoas de sua vida. Para os que o conheceram, é inconcebível imaginá-lo pedindo fotos pornográficas de garotas. Non sequitur.

Inundação na cozinha
Como todo filósofo, Lebrun tinha o seu lado milésio: a contemplação da esfera celeste que podia levá-lo a cair no buraco. Isso é especialmente válido em relação à vida prática, mas não só. É o caso, por exemplo, do crítico dos tecnófobos, mas que odeia computadores e não distingue uma geladeira de um freezer (certa vez, inadvertidamente, congelou toda uma provisão dos sucos de frutas que adorava).
Não que vivesse no mundo das idéias. Mas tampouco estava sempre num ambiente sublunar. É o momento em que a imponência do autor dos livros hermenêuticos se confunde com o prosaico da vida de cada um. Não era de maneira nenhuma um comportamento afetado, a menos que ele fosse uma espécie de gênio maligno. Agora, remexendo em livros e papéis velhos para escrever este texto, encontro o bilhete singelo: "Juro que não sou o responsável pela inundação na sua cozinha G.L.".
Ele não só era o responsável como aquela não era uma inundação ordinária. Pelo menos meia caixa de sabão em pó conferia à água transbordada do tanque de lavar (ele se recusava a usar a máquina) uma viscosidade poucas vezes observada. Muitas horas de trabalho meu e de minha ex-mulher e inumeráveis baldes d'água depois, quando todas as coisas já estão no devido lugar, ele volta, apanha o par de meias causador daquilo tudo, as contempla e comenta para si mesmo, orgulhoso: "Eu sou um excelente dono-de-casa".
A marca da ironia, da auto-ironia inclusive, é uma constante não só em sua obra como em sua vida. A obra fica. É a pessoa que vai decididamente fazer falta.


Hélio Schwartsman é formado em filosofia pela USP.


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