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O nome do sujeito
Leia abaixo o prefácio do
livro "O Nome da Marca -
McDonald's, Fetichismo e
Cultura Descartável",
de Isleide Fontenelle,
a ser lançado pela editora
Boitempo nesta semana
por Paulo Eduardo Arantes
Nunca na vida experimentei um Big Mac. Na
minha filosófica inocência nominalista, sempre achei que um hambúrguer é apenas um
hambúrguer. E que uma marca é apenas um
nome, ou vice-versa. Quanto ao McDonald's, mera cadeia de fast-food. Até começar a ler este "O Nome da
Marca" (Boitempo), os surpreendentes capítulos de Isleide Fontenelle sobre a avassaladora máquina de moer
chamada McDonald's. Fiquei então sabendo como se
fabrica uma marca e no que consiste seu valor estratégico no capitalismo de imagens. E que, assim sendo, o sistema McDonald's não atua no prosaico ramo da restauração rápida, se trata pelo contrário de um outro negócio, um inédito e bilionário gênero de "show business".
No qual se vendem "experiências", no caso, a experiência total prometida por uma "simples" marca. A rigor,
vende-se o acesso (como vem dizendo Jeremy Rifkin),
acesso a um ritual, no qual se mesclam taylorismo alimentar, ordem unida e romance. Como jamais provei
nenhum desses sanduíches de fantasia -na excelente forma de nossa autora- não posso me considerar plenamente iniciado nos mistérios metafísicos de um Big
Mac e seus derivados. Sou, portanto, um profano.
Resta ver se os crentes, quer dizer os clientes dessa "vivência" altamente produzida, não sabem mesmo o que
comem, embora o façam assim mesmo, como diria algum nostálgico do materialismo histórico. Mas já não
se trata mais do que os indivíduos sabem ou desconhecem, mas do que efetivamente fazem ao entrar numa fila de fast-food. Se Isleide tem razão, agem como se acreditassem na onipotência da marca -que, no entanto,
sabem ser apenas um nome, afinal são indivíduos esclarecidos-, quando na verdade são levados a acreditar
porque já estão em fila. Como o crente de Pascal, acabam vendo a luz de tanto executar o gesto mecânico de
se benzer.
São esses novos crentes que interessam a Isleide, a seita multinacional dos comedores de Big Mac, e seus respectivos provedores de conteúdo, ditos também "manipuladores simbólicos", agentes inovadores etc.
A mente e o lugar da marca
Que sujeito é esse,
cuja mente é o lugar da marca? Não me atreveria a resumir. Gostaria mesmo assim de encaminhar o leitor para
um ou dois traços desse sujeito sem nome, marcado pelo ferro em brasa dessa psicanálise às avessas em que se
converteu o marketing na qualidade de facilitador de
uma assustadora passagem ao ato na demanda, algo como a encubadora da violência característica da fantasia
do consumo absoluto. Segundo Isleide, o sujeito
"mcdonaldizado" poderia se encontrar em algum ponto um pouco além do drogado e quem sabe mais próximo do depressivo, de qualquer modo, no centro de uma
mutação antropológica radical, que por certo não é de
hoje. Não se trata de psicologia. Mas da sociedade endemicamente depressiva que o novo capitalismo comportamental está gerando. Não sem paradoxo, como observa Isleide: se trata de afetar e pôr em movimento um indivíduo que parece não saber escolher nem mesmo a
cor de uma roupa e, no entanto, "o desejo da marca que
é, no final das contas, o do próprio capital, é o de criar
um estado de dependência absoluta do sujeito". Derradeiro desenvolvimento da forma-droga, a marca publicitária funcionaria como um antidepressivo de última
geração. Desnecessário lembrar que o argumento de Isleide vai na direção contrária à da nova apologética, que
vê, na dessubjetivação em curso, o prenúncio de uma
sociedade para além do conflito, seja ele psíquico ou social. Por certo eufemismo para um brutal deslocamento
da cena política, em que o controle do "acesso" é tudo e
o desconectado, um novo proletário, com o perdão da
má palavra. A propósito, relembro que franquia também é acesso e que não há "enclosure", ontem como
hoje, sem expropriação.
Mas esse é apenas um dos nomes do sujeito. Gosto
muito de uma outra observação de Isleide acerca desse
eclipse do sujeito em estado de mobilização total ao ingressar na rede imaginária de um fast-food. Na literatura especializada costuma-se arrolar entre os padrões
precursores da lanchonete fordista -é bom não esquecer que ela tem a idade industrial e ideológica do automóvel- as técnicas de alimentação e fornecimento de
rações para as tropas americanas em guerra na Europa.
(Robert Kurz acrescentaria que o mesmo princípio da
linha de montagem já poderia ser observado nas trincheiras da Primeira Guerra, lembrando a propósito como o potencial mecânico de agressão da indústria automobilística foi aos poucos se militarizando, convertendo-se à sua verdade de origem, a destruição em massa.)
Seja qual for o fundo de verdade daquela explicação, o
fato é que levou a nossa autora a uma observação preciosa acerca de algo que hoje nos parece a coisa mais natural do mundo, fazer fila para comer num restaurante
fast-food: "Até a inovação efetuada pelos dois irmãos
McDonald, Richard e Maurice, no drive-in, em 1948, a
existência da fila para adquirir comida só parecia estar
presente em guerras, prisões ou situações de privação
que levassem alguém a conseguir comida por meio de
atos de caridade".
Pois é. Num momento (setembro de 2001) em que o
McWorld (na expressão consagrada por Benjamin Barber) está em pé de guerra e o novo poder imperial se
prepara para enquadrar o mundo num estado de sítio
permanente (uma outra profecia de Robert Kurz), convenhamos que tal poder de enfileirar as pessoas e pô-las
para trabalhar de graça para a empresa é de meter medo. Noutra passagem, Isleide recorda que "o mínimo
eu" de Christopher Lasch é justamente a expressão de
uma "individualidade sitiada".
Derradeiro
desenvolvimento
da forma-droga, a marca
publicitária funcionaria
como um antidepressivo
de última geração
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Homens e mulheres em fila
Esses homens e mulheres em fila -sabe-se lá no rumo de que catástrofe-
são portanto crentes, como já sabemos. Slavoj Zizek,
uma das fontes diletas de Isleide, diria que são fetichistas na prática, pois "sua" crença lhes é totalmente externa, não reside nalguma falsa consciência (relíquia da finada Era Liberal), mas se encontra incorporada nos rituais que se cumprem efetivamente no mundo das mercadorias glamourizadas pelas grifes. Como na roda tibetana das orações, as marcas rezam por eles. Podem
assim se dar ao luxo de engolir os tais sanduíches de
fantasia sabendo muito bem que comandos idiotas como "You deserve a break today" não enchem a barriga
de ninguém. E, no entanto, tal crença no nome da marca parece sustentar a fantasia que regula o funcionamento libidinal da realidade social -segundo Isleide e
seus bons autores. O cartunista que redesenhou as torres gêmeas do World Trade Center encimadas por um
luminoso "Just do it" algo deve ter intuído do poder
pulsional exercido pelo "branding" global, sem falar na
apresentação surrealista do atentado terrorista como
resultado de uma interpretação literal da palavra de ordem da Nike.
A esta altura não seria demais acrescentar que meio
século atrás Adorno de certo modo não deixara de
anunciar tal desfecho: quando a ideologia já não é mais
um grande envoltório discursivo, mas a própria imagem ameaçadora do mundo, se converte em terror tão
logo realidade e propaganda formem um só bloco, acenando para o contragolpe cúmplice do terror contrário.
Nesse sentido -mas só nesse sentido, o que já é uma
enormidade-, tudo se passa como se o "skyline" de
Manhattan desde sempre pedisse dinamite, como no
poema de Drummond: sua implosão latente estaria
anunciada no simples fato de que o exibicionismo arquitetônico funcionaria ali como "mídia-real", na verdade uma espécie de auto-afirmação acachapante do
poder social enquanto tal, sem maiores mediações, como quem diz "é isso aí", e não há alternativa. Pelo menos era assim que Adorno entendia esse estágio terminal em que a realidade funcionaria como publicidade
de si mesma, como é justamente o caso do McWorld estudado por Isleide, e o seu tremendo paradoxo: se é verdade que os homens se adaptam à mentira desse mundo autista do faz-de-conta, não é menos verdade que
enxergam através do seu manto. Com efeito, nada mais
óbvio e transparente que as relações de poder nesse
"funny" capitalismo das marcas.
Isleide dá a entender que o desfecho cínico e violento,
próprio do desfecho narcísico, não é uma fatalidade. No
capítulo que ficou devendo, mas certamente irá escrever, sem dúvida algo terá a dizer sobre os novos "sujeitos" que há uma década pelo menos romperam o círculo mágico da fantasmagoria e andam dizendo com todas as letras: "No logo!".
Paulo Eduardo Arantes é professor de filosofia na USP e autor de,
entre outros, "Um Departamento Francês de Ultramar", "O Fio da
Meada" e "Sentimento da Dialética" (ed. Paz e Terra).
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