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PRESENÇA INQUIETANTE
Escritor e obra guardam caráter excêntrico que assombra leitores há mais de século; novas interpretações podem permitir análises menos estanques
Multidão de críticos procurou entender esse fenômeno improvável
no acanhado ambiente cultural do Brasil
HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Às vésperas do centenário de morte, Machado de Assis continua a ser uma presença inquietante.
Embora ocupe lugar central e
mais ou menos indisputado na
história da literatura produzida no Brasil, o escritor e sua
obra ainda hoje guardam algo
do caráter excêntrico, inclassificável e surpreendente que assombrou seus primeiros críticos. Prova maior dessa vitalidade está nos giros verdadeiramente espetaculares que a interpretação de sua obra sofreu ao longo do tempo -e nas polêmicas que continua a provocar.
Quem era Machado de Assis
no século 19? Um grande poeta,
homem de teatro e crítico, que
também se dedicou à crônica,
ao conto e ao romance, mantendo em seus escritos uma
postura indiferente às grandes
questões do seu tempo. Fino
ironista que, do alto de sua torre de marfim, expedia escritos
em linguagem levemente arcaizante e estrangeirada, mais
condizente com a literatura de
outros séculos do que com o
que então se produzia nas capitais literárias do mundo.
Quem é Machado de Assis
hoje? O maior contista e romancista brasileiro do século
19, não só profundamente interessado pelas questões do seu
tempo e lugar, mas talvez o
mais agudo e radical crítico das
instituições sociais e políticas
do Brasil do Segundo Reinado.
Um escritor que nunca se
furtou ao corpo-a-corpo com
seus leitores, colaborando com
jornais e revistas e participando ativamente dos círculos literários. E que teria antecipado
na sua escrita procedimentos
das vanguardas do século 20, se
é que não foi um pós-moderno
"avant la lettre". Entre aquele
escritor alienado e retrógrado
do século 19 e o escritor engajado e quase "vanguardista" de
algumas leituras de hoje, uma
pequena multidão de críticos
procurou entender esse fenômeno improvável no acanhado
ambiente literário e cultural do
Brasil -tão improvável que até
os mais materialistas falaram
em milagre.
Três tríades
Na impossibilidade de tratar
de todos os estudos fundamentais, tão numerosa, variada e
complexa é a fortuna crítica
acumulada até hoje, pode-se
pensar que a recepção da obra
esteja organizada, grosso modo, em torno de três momentos
e três tríades, formadas por críticos que se dedicaram de modo mais constante e sistemático ao estudo do caso Machado
de Assis.
Entre os contemporâneos de
Machado, o desnorteamento
que provocou teve muito a ver
com sua independência em relação às escolas e modelos.
Num ambiente ávido por "ismos" -realismo, naturalismo,
positivismo, evolucionismo- ,
o escritor manteve distância de
qualquer sistema totalizante e
de qualquer coisa que cheirasse
a dogma.
Em vez de fazer eco ao último
grito de Paris, como se esperava, buscou matéria em tradições muito variadas.
Nas "Memórias Póstumas de
Brás Cubas", por exemplo, lançou mão de fontes da Antigüidade e da tradição satírica em
língua inglesa, instituindo como referências autores e modos narrativos até então praticamente ausentes do horizonte
literário no Brasil. Com isso,
afirmava sua autonomia, provocando perplexidade e deixando exposta a estreiteza dos
padrões e expectativas locais.
A crítica não demorou a acusar o golpe e chamou a atenção
para o tom estrangeirado de
Machado de Assis: "macaqueador de Sterne", acusou Sílvio
Romero; escritor recatado,
quase vitoriano, deu a entender
Araripe Júnior.
Até José Veríssimo, que da
tríade inicial foi quem melhor o
compreendeu, precisou criar
para ele um lugar à parte do que
até então se entendia como literatura brasileira, para poder
absorvê-lo melhor.
Pêndulo
Às discussões iniciais em torno da pertença de Machado
-se mais nacional que estrangeiro, se mais atual ou anacrônico- sucedeu um período
marcado por tentativas de
compreensão mais sistemática
da obra. Também aí o pêndulo
oscilou fortemente entre a tentativa de integrá-la ao contexto
brasileiro e o esforço de filiá-la
à literatura universal.
Esse período, compreendido
entre as comemorações do centenário de nascimento, em
1939, e do cinqüentenário de
sua morte, em 1958, foi marcado pela atuação de uma notável
geração de críticos, que deram
início às interpretações modernas da obra machadiana. Entre
eles, a tríade formada por Astrojildo Pereira, Lúcia Miguel-Pereira e Augusto Meyer.
Astrojildo Pereira enfatizou
a inserção de Machado e sua
obra na vida social brasileira.
Em ensaio famoso, cunhou o
epíteto "romancista do Segundo Reinado", refutando qualquer idéia de indiferença à vida
local. Já Lúcia Miguel-Pereira
tratou de engastar a obra na
tradição literária brasileira, e a
partir de dados biográficos detectou temas comuns aos vários romances, que no seu conjunto acompanhariam a ascensão social do homem Joaquim
Maria Machado de Assis.
Em outro campo, Augusto
Meyer enfatizou o autor em detrimento do homem, com estudos comparativos que teriam
desdobramentos importantes
nas gerações posteriores. Nos
ensaios que produziu entre
1935 e 1958, Meyer identificou
e caracterizou a profundidade e
a radicalidade do projeto machadiano a partir de comparações com escritores como Pirandello e Dostoiévski.
Esse momento extraordinário da crítica coincidiu com o
mapeamento mais completo da
obra, reunido por José Galante
de Sousa em trabalho monumental. Coincidiu também
com a consolidação da imagem
de um Machado de Assis oficial,
em grande parte patrocinada
pelo Estado Novo, que enfatizou no escritor seus traços de
homem do povo, mestiço e funcionário público exemplar.
Machado era alçado à condição de "patrimônio cultural
brasileiro".
A patrimonialização, no entanto, não foi capaz de imobilizar a obra, que a partir da década de 1960 passou por uma verdadeira revolução. Marco importante é a publicação, justamente em 1960, do livro de Helen Caldwell; nele, a crítica norte-americana defende que a
traição de Capitu, dada como
certa por várias gerações de leitores, não passava de calúnia de
um homem enlouquecido pelo
ciúme. O livro de Caldwell é o
primeiro dos estudos de fôlego
produzidos fora do Brasil, entre os quais se destacam a melhor biografia da juventude de
Machado de Assis, publicada
por Jean-Michel Massa no início dos anos 70, e mais recentemente os estudos do crítico
português Abel Barros Baptista, nos quais se contrapõe às
leituras que enfatizam os aspectos nacionais.
O livro de Caldwell também
marcou o início de uma série de
leituras baseadas na não-confiabilidade dos narradores machadianos, com desdobramentos importantes nas décadas seguintes, inclusive no trabalho de outro estrangeiro, o crítico inglês John Gledson.
Com inspiração confessa na
obra de Roberto Schwarz, que
deriva sua interpretação de
Machado de Assis do projeto
crítico de Antonio Candido,
Gledson também problematizou e recaracterizou os narradores machadianos, principalmente dos romances da chamada segunda fase. Na crítica
de Roberto Schwarz, as formas
dos grandes romances machadianos imitam processos históricos e sociais, rompendo o
quadro local na medida em que
as contradições vividas na periferia do capitalismo e condensadas na fatura dos narradores
são entendidas como a expressão talvez mais desconjuntada,
se não monstruosa, das contradições e falsas promessas do capital, que é internacional. Gledson, por sua vez, tem desentranhado dos romances e das crônicas do escritor uma interpretação sistemática e conseqüente da história brasileira, que o
escritor teria intencionalmente cifrado em sua ficção.
No outro vértice da tríade
mais recente está a obra de Alfredo Bosi. Sem desconsiderar
o contexto histórico-social, em
seus ensaios Bosi põe ênfase
nas implicações filosóficas, psicológicas e existenciais da obra
e propõe a relativização das interpretações de orientação sociológica.
Em meio às divergências de
pontos de vistas e perspectivas,
as interpretações de Schwarz,
Gledson e Bosi têm estimulado
a leitura e a releitura da obra de
Machado de Assis, como se nota no número crescente de estudos acadêmicos sobre o escritor, que também seguem sugestões e frentes de interpretação abertas pelos estudos de
Raymundo Faoro, Silviano
Santiago, José Guilherme Merquior, Alexandre Eulálio, Gilberto Pinheiros Passos, Marta
de Senna e Alcides Villaça, ainda para ficar em alguns poucos
críticos.
Perspectivas
E apesar do consenso que se
formou ao longo do século 20
sobre sua importância, Machado de Assis e sua obra parecem
estar ainda muito longe da paz
dos cemitérios, como o leitor
terá a oportunidade de ver em
2008. A publicação da correspondência e de várias séries de
crônicas em edições prefaciadas, revistas e anotadas certamente trará novidades sobre o
processo de criação do escritor,
e até sobre o homem Joaquim
Maria. Isso permitirá uma visão menos estanque da obra,
tradicionalmente estudada por
gêneros (romance, conto, crônica, poesia etc.), o que talvez
seja um passo crítico possível e
necessário nesta altura dos estudos machadianos. Se há alguma coisa a se esperar de uma
efeméride, é que traga novos
materiais e idéias, que ofereçam uma visão mais inteira da
obra e do escritor, que de fato
criou com seus escritos um pequeno universo de densidade,
coerência e lucidez espantosas.
HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES é professor de
literatura brasileira da Universidade de São Paulo, autor de "Os Leitores de Machado de Assis -O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19" (Nankin/Edusp, 2004).
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