São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

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PRESENÇA INQUIETANTE

Escritor e obra guardam caráter excêntrico que assombra leitores há mais de século; novas interpretações podem permitir análises menos estanques

Multidão de críticos procurou entender esse fenômeno improvável no acanhado ambiente cultural do Brasil

HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Às vésperas do centenário de morte, Machado de Assis continua a ser uma presença inquietante. Embora ocupe lugar central e mais ou menos indisputado na história da literatura produzida no Brasil, o escritor e sua obra ainda hoje guardam algo do caráter excêntrico, inclassificável e surpreendente que assombrou seus primeiros críticos. Prova maior dessa vitalidade está nos giros verdadeiramente espetaculares que a interpretação de sua obra sofreu ao longo do tempo -e nas polêmicas que continua a provocar.
Quem era Machado de Assis no século 19? Um grande poeta, homem de teatro e crítico, que também se dedicou à crônica, ao conto e ao romance, mantendo em seus escritos uma postura indiferente às grandes questões do seu tempo. Fino ironista que, do alto de sua torre de marfim, expedia escritos em linguagem levemente arcaizante e estrangeirada, mais condizente com a literatura de outros séculos do que com o que então se produzia nas capitais literárias do mundo.
Quem é Machado de Assis hoje? O maior contista e romancista brasileiro do século 19, não só profundamente interessado pelas questões do seu tempo e lugar, mas talvez o mais agudo e radical crítico das instituições sociais e políticas do Brasil do Segundo Reinado.
Um escritor que nunca se furtou ao corpo-a-corpo com seus leitores, colaborando com jornais e revistas e participando ativamente dos círculos literários. E que teria antecipado na sua escrita procedimentos das vanguardas do século 20, se é que não foi um pós-moderno "avant la lettre". Entre aquele escritor alienado e retrógrado do século 19 e o escritor engajado e quase "vanguardista" de algumas leituras de hoje, uma pequena multidão de críticos procurou entender esse fenômeno improvável no acanhado ambiente literário e cultural do Brasil -tão improvável que até os mais materialistas falaram em milagre.

Três tríades
Na impossibilidade de tratar de todos os estudos fundamentais, tão numerosa, variada e complexa é a fortuna crítica acumulada até hoje, pode-se pensar que a recepção da obra esteja organizada, grosso modo, em torno de três momentos e três tríades, formadas por críticos que se dedicaram de modo mais constante e sistemático ao estudo do caso Machado de Assis.
Entre os contemporâneos de Machado, o desnorteamento que provocou teve muito a ver com sua independência em relação às escolas e modelos.
Num ambiente ávido por "ismos" -realismo, naturalismo, positivismo, evolucionismo- , o escritor manteve distância de qualquer sistema totalizante e de qualquer coisa que cheirasse a dogma.
Em vez de fazer eco ao último grito de Paris, como se esperava, buscou matéria em tradições muito variadas. Nas "Memórias Póstumas de Brás Cubas", por exemplo, lançou mão de fontes da Antigüidade e da tradição satírica em língua inglesa, instituindo como referências autores e modos narrativos até então praticamente ausentes do horizonte literário no Brasil. Com isso, afirmava sua autonomia, provocando perplexidade e deixando exposta a estreiteza dos padrões e expectativas locais.
A crítica não demorou a acusar o golpe e chamou a atenção para o tom estrangeirado de Machado de Assis: "macaqueador de Sterne", acusou Sílvio Romero; escritor recatado, quase vitoriano, deu a entender Araripe Júnior.
Até José Veríssimo, que da tríade inicial foi quem melhor o compreendeu, precisou criar para ele um lugar à parte do que até então se entendia como literatura brasileira, para poder absorvê-lo melhor.

Pêndulo
Às discussões iniciais em torno da pertença de Machado -se mais nacional que estrangeiro, se mais atual ou anacrônico- sucedeu um período marcado por tentativas de compreensão mais sistemática da obra. Também aí o pêndulo oscilou fortemente entre a tentativa de integrá-la ao contexto brasileiro e o esforço de filiá-la à literatura universal.
Esse período, compreendido entre as comemorações do centenário de nascimento, em 1939, e do cinqüentenário de sua morte, em 1958, foi marcado pela atuação de uma notável geração de críticos, que deram início às interpretações modernas da obra machadiana. Entre eles, a tríade formada por Astrojildo Pereira, Lúcia Miguel-Pereira e Augusto Meyer. Astrojildo Pereira enfatizou a inserção de Machado e sua obra na vida social brasileira.
Em ensaio famoso, cunhou o epíteto "romancista do Segundo Reinado", refutando qualquer idéia de indiferença à vida local. Já Lúcia Miguel-Pereira tratou de engastar a obra na tradição literária brasileira, e a partir de dados biográficos detectou temas comuns aos vários romances, que no seu conjunto acompanhariam a ascensão social do homem Joaquim Maria Machado de Assis.
Em outro campo, Augusto Meyer enfatizou o autor em detrimento do homem, com estudos comparativos que teriam desdobramentos importantes nas gerações posteriores. Nos ensaios que produziu entre 1935 e 1958, Meyer identificou e caracterizou a profundidade e a radicalidade do projeto machadiano a partir de comparações com escritores como Pirandello e Dostoiévski.
Esse momento extraordinário da crítica coincidiu com o mapeamento mais completo da obra, reunido por José Galante de Sousa em trabalho monumental. Coincidiu também com a consolidação da imagem de um Machado de Assis oficial, em grande parte patrocinada pelo Estado Novo, que enfatizou no escritor seus traços de homem do povo, mestiço e funcionário público exemplar. Machado era alçado à condição de "patrimônio cultural brasileiro".
A patrimonialização, no entanto, não foi capaz de imobilizar a obra, que a partir da década de 1960 passou por uma verdadeira revolução. Marco importante é a publicação, justamente em 1960, do livro de Helen Caldwell; nele, a crítica norte-americana defende que a traição de Capitu, dada como certa por várias gerações de leitores, não passava de calúnia de um homem enlouquecido pelo ciúme. O livro de Caldwell é o primeiro dos estudos de fôlego produzidos fora do Brasil, entre os quais se destacam a melhor biografia da juventude de Machado de Assis, publicada por Jean-Michel Massa no início dos anos 70, e mais recentemente os estudos do crítico português Abel Barros Baptista, nos quais se contrapõe às leituras que enfatizam os aspectos nacionais.
O livro de Caldwell também marcou o início de uma série de leituras baseadas na não-confiabilidade dos narradores machadianos, com desdobramentos importantes nas décadas seguintes, inclusive no trabalho de outro estrangeiro, o crítico inglês John Gledson.
Com inspiração confessa na obra de Roberto Schwarz, que deriva sua interpretação de Machado de Assis do projeto crítico de Antonio Candido, Gledson também problematizou e recaracterizou os narradores machadianos, principalmente dos romances da chamada segunda fase. Na crítica de Roberto Schwarz, as formas dos grandes romances machadianos imitam processos históricos e sociais, rompendo o quadro local na medida em que as contradições vividas na periferia do capitalismo e condensadas na fatura dos narradores são entendidas como a expressão talvez mais desconjuntada, se não monstruosa, das contradições e falsas promessas do capital, que é internacional. Gledson, por sua vez, tem desentranhado dos romances e das crônicas do escritor uma interpretação sistemática e conseqüente da história brasileira, que o escritor teria intencionalmente cifrado em sua ficção.
No outro vértice da tríade mais recente está a obra de Alfredo Bosi. Sem desconsiderar o contexto histórico-social, em seus ensaios Bosi põe ênfase nas implicações filosóficas, psicológicas e existenciais da obra e propõe a relativização das interpretações de orientação sociológica.
Em meio às divergências de pontos de vistas e perspectivas, as interpretações de Schwarz, Gledson e Bosi têm estimulado a leitura e a releitura da obra de Machado de Assis, como se nota no número crescente de estudos acadêmicos sobre o escritor, que também seguem sugestões e frentes de interpretação abertas pelos estudos de Raymundo Faoro, Silviano Santiago, José Guilherme Merquior, Alexandre Eulálio, Gilberto Pinheiros Passos, Marta de Senna e Alcides Villaça, ainda para ficar em alguns poucos críticos.

Perspectivas
E apesar do consenso que se formou ao longo do século 20 sobre sua importância, Machado de Assis e sua obra parecem estar ainda muito longe da paz dos cemitérios, como o leitor terá a oportunidade de ver em 2008. A publicação da correspondência e de várias séries de crônicas em edições prefaciadas, revistas e anotadas certamente trará novidades sobre o processo de criação do escritor, e até sobre o homem Joaquim Maria. Isso permitirá uma visão menos estanque da obra, tradicionalmente estudada por gêneros (romance, conto, crônica, poesia etc.), o que talvez seja um passo crítico possível e necessário nesta altura dos estudos machadianos. Se há alguma coisa a se esperar de uma efeméride, é que traga novos materiais e idéias, que ofereçam uma visão mais inteira da obra e do escritor, que de fato criou com seus escritos um pequeno universo de densidade, coerência e lucidez espantosas.


HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES é professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, autor de "Os Leitores de Machado de Assis -O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19" (Nankin/Edusp, 2004).


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