São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

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Karen Armstrong faz biografia da Bíblia

Especialista analisa como a interpretação dos textos sagrados evoluiu na história, mas ficaram faltando relatos menos homogêneos

Pouco se fala ainda sobre as narrativas duplicadas e os efeitos da instrumenta-lização da Bíblia

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Da exegese alegórica e reformulação à interpretação literal da Escritura, as distintas formas de leitura da Bíblia refletem as tradições interpretativas das circunstâncias históricas às quais se vinculam. A literalidade da abordagem fundamentalista é produto do ethos moderno e da tendência científica desse pensamento que demanda que a verdade seja regida pelas leis do mundo externo e demonstrada empírica e objetivamente; destarte, implica uma ruptura com a tradição, ao contrário do que proclamam as suposições contemporâneas que sustentam a idéia de uma atemporal conformidade servil ao texto sagrado.
Para corroborar essa tese da literalidade como um desenvolvimento recente e da análise rigorosa que inviabiliza o sistema simbólico da filosofia perene, na "biografia" que redige da Bíblia, de sua concepção à idade madura, Karen Armstrong afirma que, "até o século 19, muito pouca gente imaginava que o primeiro capítulo do Gênesis era uma descrição factual das origens da vida... No mundo antigo, a cosmogonia era um gênero terapêutico, não factual".
Com o intuito de expor a diversidade de interpretações bíblicas, cita-se o relato de que o rei Salomão usara 3.000 parábolas para ilustrar cada versículo da Torá e podia apresentar 1.005 interpretações para cada uma dessas parábolas, o que resultava em mais de 3 milhões de explicações possíveis para cada unidade da Escritura.
Uma diferença que se ressalta na obra é aquela entre a importância sagrada conferida à tradição herdada e a ênfase na doutrina (luterana e calvinista) da Escritura apenas ("sola scriptura"). Embora compreendesse que o Evangelho havia sido pregado em sua origem oralmente, Lutero argumentava que ele havia sido registrado por escrito devido ao perigo da heresia -ainda que se distanciasse do ideal e da intensidade do chamado vocal.
A autora acredita que a familiarização com a Bíblia compeliu reformadores a inventar novas hermenêuticas e a entender cristologicamente exortações à justiça de Deus, que, de acordo com Lutero, revelaria-se a misericórdia divina que investe o pecador da bondade do próprio Deus.
Na tentativa de simplificar a compreensão da Bíblia e de seu papel no norteamento de tantas vidas, sente-se falta de análises mais fundamentadas e relatos menos homogêneos.
Ressalte-se a importância de popularizar o acesso a essa obra revista, traduzida e interpretada ao longo de séculos, mas parecem hiperbólicas algumas imagens como a de uma "atmosfera de carnaval" para descrever o Sucot [festa que recorda os 40 anos que o povo judeu viveu no deserto após a fuga do Egito].
Após uma simplificação extrema e de apelo confuso, segue uma caracterização quase cifrada. A discrepância no registro aparece na mesma página do livro, onde se citam "objetos sagrados conhecidos como urim e tumim mânticos" sem nenhuma explicação.
Pouco se fala ainda sobre as narrativas duplicadas e os efeitos da instrumentalização da Bíblia. O mesmo texto sagrado foi objeto de uma exegese à qual recorreram latino-americanos para acolher a Teologia da Libertação, fanáticos da Ku Klux Klan para justificar o linchamento de negros ou movimentos fundamentalistas cristãos, que crêem na infalibilidade da Bíblia, para legitimar atos de violência.
Na opinião de Armstrong, a sacralização da escrita e a leitura da Bíblia de maneira anistórica e literal na contemporaneidade fizeram-se acompanhar de uma "crueldade niilista no coração da cultura moderna" e no desenvolvimento de ideologias baseadas na Escritura que "haviam absorvido a violência da modernidade".
Em um momento em que o escrutínio crítico procura entender os mecanismos que levam ao seqüestro de Escrituras por ditos crentes de religiões diversas e em que a conciliação ecumênica e inter-religiosa enfrenta adversidades crescentes, registre-se o exemplo da "Biblia Pentapla", que reuniu no século 18 cinco traduções distintas para propiciar uma leitura transdenominacional. Impressas lado a lado, permitiam que católicos, luteranos e calvinistas, entre outros, buscassem a versão de sua escolha com a consciência de que havia outras possibilidades de consulta ao alcance e no mesmo espaço.
A conclusão exorta à autocrítica e ao desenvolvimento de uma hermenêutica mais compassiva inspirada pela regra da fé de santo Agostinho: um exegeta deve adotar a interpretação mais caridosa de um texto. Esta obra integra a coleção "Livros que Mudaram o Mundo", que inclui "O Príncipe" de Maquiavel, "A Origem das Espécies" de Darwin, "A República" de Platão e "O Capital" de Marx, entre outros. Marx dizia que toda a crítica começa com a crítica religiosa. Ao abrir essa porta, permanece a convicção da relevância de reler as fontes primárias sob novos prismas.


PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso" (BibliASPA).

A BÍBLIA
Autora:
Karen Armstrong
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 39,90 (276 págs.)


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