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Karen Armstrong
faz biografia da Bíblia
Especialista analisa como a interpretação dos textos sagrados evoluiu na história, mas ficaram faltando relatos menos homogêneos
Pouco se fala ainda sobre as narrativas duplicadas
e os efeitos da instrumenta-lização da Bíblia
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
Da exegese alegórica
e reformulação à
interpretação literal da Escritura, as
distintas formas de
leitura da Bíblia refletem as
tradições interpretativas das
circunstâncias históricas às
quais se vinculam. A literalidade da abordagem fundamentalista é produto do ethos moderno e da tendência científica desse pensamento que demanda que a verdade seja regida pelas leis do mundo externo e demonstrada empírica e objetivamente; destarte, implica uma
ruptura com a tradição, ao contrário do que proclamam as suposições contemporâneas que
sustentam a idéia de uma
atemporal conformidade servil
ao texto sagrado.
Para corroborar essa tese da
literalidade como um desenvolvimento recente e da análise rigorosa que inviabiliza o
sistema simbólico da filosofia
perene, na "biografia" que redige da Bíblia, de sua concepção à
idade madura, Karen Armstrong afirma que, "até o século
19, muito pouca gente imaginava que o primeiro capítulo do
Gênesis era uma descrição factual das origens da vida... No
mundo antigo, a cosmogonia
era um gênero terapêutico, não
factual".
Com o intuito de expor a diversidade de interpretações bíblicas, cita-se o relato de que o
rei Salomão usara 3.000 parábolas para ilustrar cada versículo da Torá e podia apresentar
1.005 interpretações para cada
uma dessas parábolas, o que resultava em mais de 3 milhões
de explicações possíveis para
cada unidade da Escritura.
Uma diferença que se ressalta na obra é aquela entre a importância sagrada conferida à
tradição herdada e a ênfase na
doutrina (luterana e calvinista)
da Escritura apenas ("sola
scriptura"). Embora compreendesse que o Evangelho
havia sido pregado em sua origem oralmente, Lutero argumentava que ele havia sido registrado por escrito devido ao perigo da heresia -ainda que
se distanciasse do ideal e da intensidade do chamado vocal.
A autora acredita que a familiarização com a Bíblia compeliu reformadores a inventar
novas hermenêuticas e a entender cristologicamente exortações à justiça de Deus, que,
de acordo com Lutero, revelaria-se a misericórdia divina que
investe o pecador da bondade
do próprio Deus.
Na tentativa de simplificar a
compreensão da Bíblia e de seu
papel no norteamento de tantas vidas, sente-se falta de análises mais fundamentadas e relatos menos homogêneos.
Ressalte-se a importância de
popularizar o acesso a essa
obra revista, traduzida e interpretada ao longo de séculos,
mas parecem hiperbólicas algumas imagens como a de uma
"atmosfera de carnaval" para
descrever o Sucot [festa que recorda os 40 anos que o povo judeu viveu no deserto após a fuga do Egito].
Após uma simplificação extrema e de apelo confuso, segue uma caracterização
quase cifrada. A discrepância
no registro aparece na mesma
página do livro, onde se citam
"objetos sagrados conhecidos
como urim e tumim mânticos"
sem nenhuma explicação.
Pouco se fala ainda sobre as
narrativas duplicadas e os efeitos da instrumentalização da
Bíblia. O mesmo texto sagrado
foi objeto de uma exegese à
qual recorreram latino-americanos para acolher a Teologia
da Libertação, fanáticos da Ku
Klux Klan para justificar o linchamento de negros ou movimentos fundamentalistas cristãos, que crêem na infalibilidade da Bíblia, para legitimar atos
de violência.
Na opinião de Armstrong, a
sacralização da escrita e a leitura da Bíblia de maneira anistórica e literal na contemporaneidade fizeram-se acompanhar de uma "crueldade niilista no coração da cultura moderna" e no desenvolvimento
de ideologias baseadas na Escritura que "haviam absorvido
a violência da modernidade".
Em um momento em que o
escrutínio crítico procura entender os mecanismos que levam ao seqüestro de Escrituras
por ditos crentes de religiões
diversas e em que a conciliação
ecumênica e inter-religiosa enfrenta adversidades crescentes,
registre-se o exemplo da "Biblia Pentapla", que reuniu no
século 18 cinco traduções distintas para propiciar uma leitura transdenominacional. Impressas lado a lado, permitiam que católicos, luteranos e calvinistas, entre outros, buscassem
a versão de sua escolha com a
consciência de que havia outras possibilidades de consulta
ao alcance e no mesmo espaço.
A conclusão exorta à autocrítica e ao desenvolvimento de
uma hermenêutica mais compassiva inspirada pela regra da
fé de santo Agostinho: um exegeta deve adotar a interpretação mais caridosa de um texto.
Esta obra integra a coleção
"Livros que Mudaram o Mundo", que inclui "O Príncipe" de
Maquiavel, "A Origem das Espécies" de Darwin, "A República" de Platão e "O Capital" de
Marx, entre outros. Marx dizia
que toda a crítica começa com a
crítica religiosa. Ao abrir essa
porta, permanece a convicção
da relevância de reler as fontes
primárias sob novos prismas.
PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e autor de "Deleite do Estrangeiro em Tudo
o que é Espantoso e Maravilhoso" (BibliASPA).
A BÍBLIA
Autora: Karen Armstrong
Editora: Zahar
(tel. 0/xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 39,90 (276 págs.)
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