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+ História
Impérios em agonia
Livros recém-lançados sobre os incas e a Inglaterra expõem os problemas que os historiadores de hoje enfrentam para entender como os impérios nascem, funcionam e morrem
Como construtores de impérios os britânicos e os incas tiveram semelhanças surpreendentes
FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO
Recentemente, em
um jantar em Cambridge, Massachusetts, quatro dos
mais importantes
historiadores dos impérios
concordaram em apenas uma
coisa: nenhum deles sabia o
que é um império.
Trata-se de um nome vago,
aplicado a Estados ou aglomerações políticas de tipos tão diversos que provavelmente deveríamos admitir que as entidades que chamamos de impérios não têm mais em comum
que as mulheres que chamamos de Jane ou as roupas que
chamamos de casacos.
Mas os impérios dominaram
a história política do mundo na
maior parte dos últimos 3.000
anos, aproximadamente; e agora que mais ou menos concordamos em classificar os Estados Unidos da América como
um império -e o presidente da
Comissão Européia até levantou a idéia de que a União Européia poderia se qualificar ao
mesmo nome-, as questões
imperiais reafirmaram sua
pertinência. As perguntas que
mais precisamos responder
continuam sendo aquelas que
sempre confundiram os historiadores: por que os impérios
acontecem? Como eles funcionam? O que os faz subir ou
-para tomar a pergunta colocada nos novos livros de Kim
Macquarrie ("The Last Days of
the Incas", Portrait, 522 págs.,
US$ 30, R$ 54) e Peter Clarke
("The Last Thousand Days of
the British Empire", Penguin
Press, 560 págs., US$ 35, R$
63)- o que os faz cair?
Embora o império resista a
uma definição, é possível delinear casos típicos. Nem todos
os impérios são extensos, mas
eles tendem a ter uma escala
notável e ser maiores que os
outros Estados de sua época.
Nem todos incluem etnias diferentes, mas em todo império
deve haver mais que uma comunidade historicamente distinta. Nem todos são formados
por meio da conquista, mas
uma certa medida de coerção é
típica. Nem todos têm governos fortes ou identidades
transcendentes, mas sempre
há um enfoque de fidelidade ou
alegações de fidelidade.
Muitos países correspondem
ao tipo sem receber o nome:
Índia, Brasil, Reino Unido e Israel foram propostos para inclusão sem que o uso fosse adotado. Mas a tipologia não precisa se aplicar universalmente
para ser válida na qualificação
dos casos. Graças aos historiadores que tentaram pensar nos
impérios em geral, as grandes
lições da historiografia imperial dos últimos 50 ou 60 anos
foram que os impérios podem
ser estudados isoladamente ou
comparativamente, com vantagem; e em todos eles os povos
indígenas são participantes cujas histórias devem ser incluídas para podermos entender o
que aconteceu.
Clarke e Macquarrie não entenderam essas lições. Os impérios que eles escolheram para estudar parecem díspares. O
Tawantinsuyu dos incas ocupou territórios contíguos em
uma parte relativamente pequena de um único continente
por um breve período, no final
do século 15 e início do 16, com
tecnologia militar rudimentar
-não havia roda nem aço, nem
cavalaria ou mecanização, nem
qualquer coisa que normalmente classificamos como escrita para fins de comunicação.
O Império Britânico foi um
vasto caldeirão de âmbito global, criado com as vantagens da
industrialização: rifles e metralhadoras, ferrovias, navios a vapor, mecanismos para encontrar a longitude, remédios produzidos em massa, comida
enlatada e o tipo de "kit" tropical que se podia comprar em
Piccadilly ou na Turl Street.
Mas como construtores de
impérios os britânicos e os incas tiveram semelhanças surpreendentes. Ambos eram populações relativamente pequenas, que partiram de lugares
considerados marginais em
seus respectivos mundos. Ambos encontraram maneiras de
compensar suas deficiências
em número mobilizando em
seu favor populações submetidas e elites colaboracionistas.
Ambos usaram a força política para criar redes de troca de
bens através de vastas distâncias. Ambos criaram o que foram provavelmente, em suas
épocas, os impérios ecologicamente mais diversificados do
mundo, abrangendo quase todos os ambientes habitáveis -
do gelo às florestas tórridas e
do deserto ao pântano. Ambos
sucumbiram principalmente
por causa dos efeitos perturbadores de invasores estrangeiros imprevistos: os espanhóis
no caso dos incas, os japoneses
no dos britânicos.
Nem Clarke nem Macquarrie faz essa comparação. Mas o
que é imperdoável é que nenhum deles pense em fazer
uma comparação com casos
pertinentes. Peter Clarke teria
achado útil situar o que chama
de "os últimos mil dias" do Império Britânico -com o que
quer dizer os cerca de três anos
antes da independência indiana - no contexto de outras
derrocadas na Ásia nessa época: da França na Indochina, da
Holanda nas Índias Orientais,
dos EUA nas Filipinas e do Japão na China e na Coréia.
Mas o leitor de seu livro não
teria a menor pista de que esses
impérios nem sequer existiram, ou de que eles cresceram
ou caíram no período que ele
cobre. Em conseqüência, ele
perde a que pode ter sido a característica mais curiosa do
Império Britânico na região:
sua sobrevivência na Malásia,
onde a conquista japonesa deixou de registrar o impacto fatal
que teve na Indochina, Indonésia, Birmânia e Filipinas.
De modo semelhante, Macquarrie demonstra não saber
que o destino dos incas foi parecido com o de outros povos
confrontados com invasores
europeus mais ou menos na
mesma época, especialmente
nas Américas. O caso da hegemonia asteca no centro do México é tão evidentemente relevante -na verdade, o líder dos
conquistadores no Peru moldou conscientemente sua estratégia na aventura mexicana
- que parece incrível que um
autor não tente examinar as semelhanças e diferenças ou vasculhe o resto das Américas em
busca de pistas de por que os
espanhóis tiveram êxito em
certos lugares e não em outros.
É igualmente lamentável
que os dois escritores tentem
explicar, ou pelo menos narrar,
os "últimos dias" dos impérios
escolhidos sem fazer uma pausa para se perguntar como eles
funcionavam. As complexidades do mundo inca escapam a
Macquarrie. Foi um caso de
"imperialismo ecológico" entremeado por complexas relações tributárias e trocas coercitivas de mão-de-obra e bens
entre biomas contrastantes,
para alimentar aliados importantes e as elites. Também foi
um mecanismo delicado, mantido por obrigações mútuas entre interesses poderosos e rivais, simbolizadas e de certa
maneira cimentadas por rituais que eram preciosos para
uns e dispendiosos para outros.
Quando crises demográficas
e invasões estrangeiras perturbaram os intercâmbios críticos, interromperam os ritos e
abalaram o equilíbrio, o sistema desmoronou. Macquarrie
não percebe nada disso, porque
só lê as fontes tradicionalmente supervalorizadas, ignorando
o trabalho de historiadores sobre as estruturas de poder locais. Macquarrie pode ser desculpado como um amador com
poucas pretensões, mas Peter
Clarke -um de nossos historiadores mais eminentes- comete o mesmo erro.
Seu livro é quase todo alta
política. A conhecida história
das relações de Churchill com
Stálin e Roosevelt ocupa a
maior parte de seu espaço.
Quando uma vox populi se intromete, vem da avaliação de
pesquisas feitas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Embora a Índia seja crucial para o
argumento do autor, quase não
ouvimos falar dela nas primeiras 450 páginas, e quando finalmente conseguimos visitá-la, encontramos Gandhi, Neru
e Jinnah, mas ninguém do Serviço Público Indiano, ou dos
estados nativos ou das fileiras
partidárias, nem das ruas, campos ou bazares: em suma, nenhuma das pessoas que realmente moldaram o império.
Na maior parte do tempo, o livro de Clarke quase não parece
ser sobre o império, como o entendemos comumente, e sim
sobre o que ele chama de "premissa do poder imperial", que
define como um "papel determinante" no mundo, e que, ele
alega, tornou-se insustentável
quando a Grã-Bretanha empreendeu uma guerra caríssima e decidiu levá-la adiante "a
qualquer preço". A independência da Índia -resultado direto, segundo Clarke, do empobrecimento da Grã-Bretanha
durante a guerra- significou a
perda para o império de sua
grande base de recursos e fonte
de mão-de-obra.
Vejo quatro problemas nesse
argumento. Primeiro, a perda
de um "papel determinante"
não significou o fim do império. Os impérios holandês, espanhol e português não tiveram "papéis determinantes".
Embora Clarke considere a
África britânica apenas uma
"fazenda por hobby", era um
território imenso: foi necessária a crise de Suez para tirá-lo
do domínio britânico.
De todos os combatentes cujos impérios se dissolveram depois da Segunda Guerra Mundial ou caíram sob os "ventos de mudança", o britânico parece ter sido o mais robusto: mesmo potências não-combatentes, como a Espanha e Portugal, cujos impérios eram negócios relativamente frágeis,
mostraram um poder de permanência pouco maior.
Segundo, o próprio Clarke
mostra, na parte mais interessante, em que examina as dívidas e os prejuízos de guerra da
Grã-Bretanha, que os EUA foram um credor notavelmente
generoso, e o Canadá ainda
mais. As perdas de mão-de-obra britânica foram modestas
pelos padrões do combate.
É claro que a guerra foi, como
todas as guerras, uma aposta
cara, que um governo prudente
poderia ter evitado, mas a crise
econômica que deixou a Grã-Bretanha incapaz de cumprir
suas obrigações internacionais
no final dos anos 1940 surgiu
mais da imprevista força do dólar do que apenas do peso da dívida de guerra.
Ao longo da reconstrução feita por Clarke das relações entre
os governos britânicos e seus
homólogos americanos, a implicação é que a hostilidade dos
EUA ao imperialismo tornava
inatingível um acordo financeiro satisfatório; mas Clarke não
aborda o argumento de que os
governos americanos do pós-guerra foram seletivos ao alimentar o Império Britânico em
seu próprio interesse.
Além disso, Clarke parece
desprezar a grande força do império: os domínios da comunidade britânica, que demonstraram uma surpreendente lealdade e arcaram com muitos
meios para a guerra da Grã-Bretanha. A Índia pré-independência forneceu efetivos vitais, mas não parece ter representado lucro para o império.
Como Clarke prefere os horizontes reluzentes da história
metropolitana às paisagens urbanas e rurais pujantes do império em si, ele não vê o que
acontecia na Índia antes mesmo de a guerra começar: a indianização do serviço público, o
compromisso com um futuro
democrático, o gradativo desmanche da aliança entre o império e os marajás.
Embora a guerra tenha acelerado a independência, a dinâmica já estava implantada.
Finalmente, o argumento de
Clarke parece viciado por sua
desatenção ao Japão. O Império Britânico podia sobreviver,
como sobreviveu, à guerra com
a Alemanha; assim, Clarke parece errado ao culpar pela derrota a promessa de Churchill
de vitória a qualquer preço.
Mas a guerra com o Japão infligiu alguns danos realmente
irreparáveis. O erro fatal da política britânica não foi, portanto, desafiar a Alemanha, mas
romper com o Japão.
Sem sacrifício de interesses
vitais, os britânicos poderiam
ter apoiado o Japão na China e
feito um acordo para garantir o
suprimento de petróleo ao Japão. Por que não o fizeram talvez seja o maior problema não-solucionado e pouco explorado
da história internacional nos
anos entre guerras.
Apesar das omissões, o livro
de Peter Clarke é impressionante pelo que cobre. A história
diplomática é destra e a história econômica, meticulosa. Ele
usa a língua com eficácia e economia, com toques sutis de humor e opiniões precisas sobre
os participantes do drama. Em
contraste, o livro de Macquarrie é indolente e irritante, escrito com mão pesada no estilo
mais colegial americano. Começa com um estudo promissor da conquista do reduto inca
de Vilcabamba, na planície,
mas desperdiça a maior parte
de suas páginas em uma narrativa enfadonha de eventos de
uma geração anterior à campanha de Vilcabamba.
Cortes tornam difícil acompanhar a história. Quando finalmente chegamos ao assunto, o tratamento é superficial.
Macquarrie se concentra nas
teorias malucas de um profeta
autoproclamado e um amador
inconfiável, e despreza as contribuições de acadêmicos que
realmente demonstraram a localização da "cidade perdida".
Juntos, porém, os dois livros
têm um efeito curiosamente
estimulante, expondo por meio
de suas falhas o valor de uma
abordagem comparativa da
história do império. E lembrando-nos, por omissão da
importância de se estudar as
periferias imperiais, as fronteiras cheias de falhas que geram
efeitos sísmicos.
FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO é professor de
história na Universidade Tufts, em Massachusetts; autor de "Milênio" (RCB), entre outros livros.
Este texto foi publicado originalmente pelo "Times Literary Suplement".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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