São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

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+ História

Impérios em agonia

Livros recém-lançados sobre os incas e a Inglaterra expõem os problemas que os historiadores de hoje enfrentam para entender como os impérios nascem, funcionam e morrem

Como construtores de impérios os britânicos e os incas tiveram semelhanças surpreendentes

FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO

Recentemente, em um jantar em Cambridge, Massachusetts, quatro dos mais importantes historiadores dos impérios concordaram em apenas uma coisa: nenhum deles sabia o que é um império.
Trata-se de um nome vago, aplicado a Estados ou aglomerações políticas de tipos tão diversos que provavelmente deveríamos admitir que as entidades que chamamos de impérios não têm mais em comum que as mulheres que chamamos de Jane ou as roupas que chamamos de casacos.
Mas os impérios dominaram a história política do mundo na maior parte dos últimos 3.000 anos, aproximadamente; e agora que mais ou menos concordamos em classificar os Estados Unidos da América como um império -e o presidente da Comissão Européia até levantou a idéia de que a União Européia poderia se qualificar ao mesmo nome-, as questões imperiais reafirmaram sua pertinência. As perguntas que mais precisamos responder continuam sendo aquelas que sempre confundiram os historiadores: por que os impérios acontecem? Como eles funcionam? O que os faz subir ou -para tomar a pergunta colocada nos novos livros de Kim Macquarrie ("The Last Days of the Incas", Portrait, 522 págs., US$ 30, R$ 54) e Peter Clarke ("The Last Thousand Days of the British Empire", Penguin Press, 560 págs., US$ 35, R$ 63)- o que os faz cair?
Embora o império resista a uma definição, é possível delinear casos típicos. Nem todos os impérios são extensos, mas eles tendem a ter uma escala notável e ser maiores que os outros Estados de sua época. Nem todos incluem etnias diferentes, mas em todo império deve haver mais que uma comunidade historicamente distinta. Nem todos são formados por meio da conquista, mas uma certa medida de coerção é típica. Nem todos têm governos fortes ou identidades transcendentes, mas sempre há um enfoque de fidelidade ou alegações de fidelidade.
Muitos países correspondem ao tipo sem receber o nome: Índia, Brasil, Reino Unido e Israel foram propostos para inclusão sem que o uso fosse adotado. Mas a tipologia não precisa se aplicar universalmente para ser válida na qualificação dos casos. Graças aos historiadores que tentaram pensar nos impérios em geral, as grandes lições da historiografia imperial dos últimos 50 ou 60 anos foram que os impérios podem ser estudados isoladamente ou comparativamente, com vantagem; e em todos eles os povos indígenas são participantes cujas histórias devem ser incluídas para podermos entender o que aconteceu.
Clarke e Macquarrie não entenderam essas lições. Os impérios que eles escolheram para estudar parecem díspares. O Tawantinsuyu dos incas ocupou territórios contíguos em uma parte relativamente pequena de um único continente por um breve período, no final do século 15 e início do 16, com tecnologia militar rudimentar -não havia roda nem aço, nem cavalaria ou mecanização, nem qualquer coisa que normalmente classificamos como escrita para fins de comunicação.
O Império Britânico foi um vasto caldeirão de âmbito global, criado com as vantagens da industrialização: rifles e metralhadoras, ferrovias, navios a vapor, mecanismos para encontrar a longitude, remédios produzidos em massa, comida enlatada e o tipo de "kit" tropical que se podia comprar em Piccadilly ou na Turl Street.
Mas como construtores de impérios os britânicos e os incas tiveram semelhanças surpreendentes. Ambos eram populações relativamente pequenas, que partiram de lugares considerados marginais em seus respectivos mundos. Ambos encontraram maneiras de compensar suas deficiências em número mobilizando em seu favor populações submetidas e elites colaboracionistas.
Ambos usaram a força política para criar redes de troca de bens através de vastas distâncias. Ambos criaram o que foram provavelmente, em suas épocas, os impérios ecologicamente mais diversificados do mundo, abrangendo quase todos os ambientes habitáveis - do gelo às florestas tórridas e do deserto ao pântano. Ambos sucumbiram principalmente por causa dos efeitos perturbadores de invasores estrangeiros imprevistos: os espanhóis no caso dos incas, os japoneses no dos britânicos.
Nem Clarke nem Macquarrie faz essa comparação. Mas o que é imperdoável é que nenhum deles pense em fazer uma comparação com casos pertinentes. Peter Clarke teria achado útil situar o que chama de "os últimos mil dias" do Império Britânico -com o que quer dizer os cerca de três anos antes da independência indiana - no contexto de outras derrocadas na Ásia nessa época: da França na Indochina, da Holanda nas Índias Orientais, dos EUA nas Filipinas e do Japão na China e na Coréia.
Mas o leitor de seu livro não teria a menor pista de que esses impérios nem sequer existiram, ou de que eles cresceram ou caíram no período que ele cobre. Em conseqüência, ele perde a que pode ter sido a característica mais curiosa do Império Britânico na região: sua sobrevivência na Malásia, onde a conquista japonesa deixou de registrar o impacto fatal que teve na Indochina, Indonésia, Birmânia e Filipinas.
De modo semelhante, Macquarrie demonstra não saber que o destino dos incas foi parecido com o de outros povos confrontados com invasores europeus mais ou menos na mesma época, especialmente nas Américas. O caso da hegemonia asteca no centro do México é tão evidentemente relevante -na verdade, o líder dos conquistadores no Peru moldou conscientemente sua estratégia na aventura mexicana - que parece incrível que um autor não tente examinar as semelhanças e diferenças ou vasculhe o resto das Américas em busca de pistas de por que os espanhóis tiveram êxito em certos lugares e não em outros.
É igualmente lamentável que os dois escritores tentem explicar, ou pelo menos narrar, os "últimos dias" dos impérios escolhidos sem fazer uma pausa para se perguntar como eles funcionavam. As complexidades do mundo inca escapam a Macquarrie. Foi um caso de "imperialismo ecológico" entremeado por complexas relações tributárias e trocas coercitivas de mão-de-obra e bens entre biomas contrastantes, para alimentar aliados importantes e as elites. Também foi um mecanismo delicado, mantido por obrigações mútuas entre interesses poderosos e rivais, simbolizadas e de certa maneira cimentadas por rituais que eram preciosos para uns e dispendiosos para outros.
Quando crises demográficas e invasões estrangeiras perturbaram os intercâmbios críticos, interromperam os ritos e abalaram o equilíbrio, o sistema desmoronou. Macquarrie não percebe nada disso, porque só lê as fontes tradicionalmente supervalorizadas, ignorando o trabalho de historiadores sobre as estruturas de poder locais. Macquarrie pode ser desculpado como um amador com poucas pretensões, mas Peter Clarke -um de nossos historiadores mais eminentes- comete o mesmo erro.
Seu livro é quase todo alta política. A conhecida história das relações de Churchill com Stálin e Roosevelt ocupa a maior parte de seu espaço. Quando uma vox populi se intromete, vem da avaliação de pesquisas feitas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Embora a Índia seja crucial para o argumento do autor, quase não ouvimos falar dela nas primeiras 450 páginas, e quando finalmente conseguimos visitá-la, encontramos Gandhi, Neru e Jinnah, mas ninguém do Serviço Público Indiano, ou dos estados nativos ou das fileiras partidárias, nem das ruas, campos ou bazares: em suma, nenhuma das pessoas que realmente moldaram o império. Na maior parte do tempo, o livro de Clarke quase não parece ser sobre o império, como o entendemos comumente, e sim sobre o que ele chama de "premissa do poder imperial", que define como um "papel determinante" no mundo, e que, ele alega, tornou-se insustentável quando a Grã-Bretanha empreendeu uma guerra caríssima e decidiu levá-la adiante "a qualquer preço". A independência da Índia -resultado direto, segundo Clarke, do empobrecimento da Grã-Bretanha durante a guerra- significou a perda para o império de sua grande base de recursos e fonte de mão-de-obra.
Vejo quatro problemas nesse argumento. Primeiro, a perda de um "papel determinante" não significou o fim do império. Os impérios holandês, espanhol e português não tiveram "papéis determinantes". Embora Clarke considere a África britânica apenas uma "fazenda por hobby", era um território imenso: foi necessária a crise de Suez para tirá-lo do domínio britânico.
De todos os combatentes cujos impérios se dissolveram depois da Segunda Guerra Mundial ou caíram sob os "ventos de mudança", o britânico parece ter sido o mais robusto: mesmo potências não-combatentes, como a Espanha e Portugal, cujos impérios eram negócios relativamente frágeis, mostraram um poder de permanência pouco maior.
Segundo, o próprio Clarke mostra, na parte mais interessante, em que examina as dívidas e os prejuízos de guerra da Grã-Bretanha, que os EUA foram um credor notavelmente generoso, e o Canadá ainda mais. As perdas de mão-de-obra britânica foram modestas pelos padrões do combate.
É claro que a guerra foi, como todas as guerras, uma aposta cara, que um governo prudente poderia ter evitado, mas a crise econômica que deixou a Grã-Bretanha incapaz de cumprir suas obrigações internacionais no final dos anos 1940 surgiu mais da imprevista força do dólar do que apenas do peso da dívida de guerra.
Ao longo da reconstrução feita por Clarke das relações entre os governos britânicos e seus homólogos americanos, a implicação é que a hostilidade dos
EUA ao imperialismo tornava inatingível um acordo financeiro satisfatório; mas Clarke não aborda o argumento de que os governos americanos do pós-guerra foram seletivos ao alimentar o Império Britânico em seu próprio interesse.
Além disso, Clarke parece desprezar a grande força do império: os domínios da comunidade britânica, que demonstraram uma surpreendente lealdade e arcaram com muitos meios para a guerra da Grã-Bretanha. A Índia pré-independência forneceu efetivos vitais, mas não parece ter representado lucro para o império.
Como Clarke prefere os horizontes reluzentes da história metropolitana às paisagens urbanas e rurais pujantes do império em si, ele não vê o que acontecia na Índia antes mesmo de a guerra começar: a indianização do serviço público, o compromisso com um futuro democrático, o gradativo desmanche da aliança entre o império e os marajás. Embora a guerra tenha acelerado a independência, a dinâmica já estava implantada.
Finalmente, o argumento de Clarke parece viciado por sua desatenção ao Japão. O Império Britânico podia sobreviver, como sobreviveu, à guerra com a Alemanha; assim, Clarke parece errado ao culpar pela derrota a promessa de Churchill de vitória a qualquer preço.
Mas a guerra com o Japão infligiu alguns danos realmente irreparáveis. O erro fatal da política britânica não foi, portanto, desafiar a Alemanha, mas romper com o Japão.
Sem sacrifício de interesses vitais, os britânicos poderiam ter apoiado o Japão na China e feito um acordo para garantir o suprimento de petróleo ao Japão. Por que não o fizeram talvez seja o maior problema não-solucionado e pouco explorado da história internacional nos anos entre guerras.
Apesar das omissões, o livro de Peter Clarke é impressionante pelo que cobre. A história diplomática é destra e a história econômica, meticulosa. Ele usa a língua com eficácia e economia, com toques sutis de humor e opiniões precisas sobre os participantes do drama. Em contraste, o livro de Macquarrie é indolente e irritante, escrito com mão pesada no estilo mais colegial americano. Começa com um estudo promissor da conquista do reduto inca de Vilcabamba, na planície, mas desperdiça a maior parte de suas páginas em uma narrativa enfadonha de eventos de uma geração anterior à campanha de Vilcabamba. Cortes tornam difícil acompanhar a história. Quando finalmente chegamos ao assunto, o tratamento é superficial.
Macquarrie se concentra nas teorias malucas de um profeta autoproclamado e um amador inconfiável, e despreza as contribuições de acadêmicos que realmente demonstraram a localização da "cidade perdida".
Juntos, porém, os dois livros têm um efeito curiosamente estimulante, expondo por meio de suas falhas o valor de uma abordagem comparativa da história do império. E lembrando-nos, por omissão da importância de se estudar as periferias imperiais, as fronteiras cheias de falhas que geram efeitos sísmicos.


FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO é professor de história na Universidade Tufts, em Massachusetts; autor de "Milênio" (RCB), entre outros livros. Este texto foi publicado originalmente pelo "Times Literary Suplement". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .

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