São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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Os vivos governam os mortos

Abertura de arquivos, como na União Soviética ou no Paraguai, constrói novas interpretações da história

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Sabem os historiadores e as pessoas dedicadas às ciências humanas em geral que o passado não é um campo imóvel, de contornos definidos, possibilitando aos especialistas conhecer os fatos tal como eles realmente aconteceram. Esse foi um grande sonho positivista que quis aproximar as ciências humanas da objetividade das chamadas "ciências duras" -uma objetividade também relativa, como hoje se sabe- para daí extrair grandes leis explicativas da vida social.
Na verdade, o passado é movente, não por ser tecido apenas por diferentes discursos, como os pós-modernos pretendem, mas porque sua interpretação, em busca de graus crescentes de certeza, está sujeita à ampliação do conhecimento e às opções das construções históricas do presente.


As interpretações históricas não são ondas que vão e vêm


Fico aqui no terreno interpretativo, separando-o algo artificialmente dos avanços do conhecimento, pois estes e a renovação interpretativa muitas vezes se entrelaçam.
Vejam, por exemplo, o acesso a fontes antes consideradas segredo de Estado, como se deu com os arquivos soviéticos, felizmente bastante preservados. A análise mais aprofundada das decisões da burocracia soviética ou, personalizando, de Stálin e sua corte, do universo concentracionário, da liqüidação dos camponeses ou até mesmo da aventura insurrecional de novembro de 1935 no Brasil deveram-se ao mencionado avanço do conhecimento.
Longe de serem inocentes, as interpretações e reinterpretações dos historiadores têm muito a ver com sua visão do presente. No caso, invertendo uma conhecida expressão de [Auguste] Comte [1798-1857], são os vivos que governam os mortos. É esse, aliás, o sentido da conhecida expressão de Benedetto Croce [1866-1952], segundo a qual, toda história é história contemporânea.
Exemplos não faltam, e entre os mais significativos encontram-se as controvérsias interpretativas em torno de duas grandes balizas que marcaram o trabalho dos historiadores e a imaginação dos povos: a Revolução Francesa [1789] e a Revolução Russa [1917].
É curioso observar, por outra parte, que as reelaborações do passado, versando sobre processos históricos, instituições, acontecimentos ou personagens, ganharam uma popularidade que transcende os círculos acadêmicos. Matéria publicada nesta Folha em 6/2, com o sugestivo título "Revisionismo Histórico Vira Best Seller nos EUA", refere-se a esse fenômeno. Os exemplos aí citados, indo da revisão da Guerra da Secessão [1861-65] à da figura do presidente Roosevelt [1882-1945] e da implantação do "New Deal", são indicativos de um misto de ampliação do conhecimento histórico e, ao mesmo tempo, da irresponsabilidade que, em certos casos, acompanha o ímpeto interpretativo.
A que se deve a popularidade das revisões? Entre outras razões, ao prazer que o leitor encontra na desconstrução de figuras históricas, sobretudo quando convertidas em mitos, como ocorre com Churchill [1874-1965], Roosevelt e tantos outros. A busca de sensações novas, cada vez mais crescente no mundo urbano, desde as últimas décadas do século 19, permite sugerir que o revisionismo com ingredientes sensacionalistas é uma das vertentes desse contexto histórico.

Passado próximo
Do ponto de vista cronológico, um aspecto a ser notado é o de que as controvérsias interpretativas mais ardorosas dizem respeito, com freqüência, a instituições, episódios ou personagens de um passado próximo, e menos ao passado mais distante. Isso acontece porque tais controvérsias têm muito a ver com disputas políticas que fazem parte da memória das gerações mais velhas, incidindo, ao mesmo tempo, num quadro presente, conservando traços do passado.
Para ficar num exemplo nosso, vejam o caso do getulismo e da figura de Getúlio [Vargas, 1883-1954]. Getulismo e antigetulismo foram dois exércitos em combate, no âmbito da história do Brasil, a partir de 1930, com repercussão nas diferentes ideologias e, em certa medida, nas disputas do presente.
Se a crítica sem matizes ao getulismo foi superada pelo tempo, a mitificação da época e de seu ator principal vem sendo utilizada na defesa do nacionalismo, nas críticas à globalização, nas denúncias ao chamado desmonte da era Vargas. Não é por acaso que, nesse tipo de leitura, a dura repressão do primeiro e longo governo Vargas tende a ser ignorada.
Mas, em certos casos, e não só nos círculos acadêmicos, as interpretações de um passado mais distante são também objeto de disputas árduas, em que se espelham visões do presente. Dois exemplos, aqui apenas enunciados, são significativos. Vejam a revisão do escravismo, por meio da qual autores como João José Reis, Robert Slenes, Silvia Lara, entre outros, contrapõem-se às teses estruturalistas clássicas, que ressaltam a anomia das populações escravas.
Os revisionistas, em poucas palavras, enfatizam a relevância dos escravos como agentes históricos, manifestada no plano da resistência social e da cultura. Essa vertente, que tem muitos méritos e alguns exageros, guarda relação íntima com a crítica mais geral ao determinismo e com a emergência da sociedade civil, características dos dias que vivemos.
O outro exemplo é o da interpretação da Guerra do Paraguai [1864-70], que só recentemente, graças aos trabalhos de historiadores como Francisco Doratioto e Ricardo Salles, abriu-se a novos caminhos, rejeitando, de um lado, uma simplista historiografia antiimperialista, tendo como alvo exclusivo a Inglaterra, e, de outro, os fastos heróicos da versão militar.

Interpretação patrioteira
Isso foi possível porque muitos arquivos foram abertos, no Paraguai e em parte no Brasil, e porque os maniqueísmos de direita e de esquerda perderam muito de sua força. A constatação tem também a ver com a emergência do regime democrático que permitiu a revisão, sem temores, da interpretação patrioteira do conflito -uma "verdade inconteste", na época do regime militar e mesmo antes dele.
Tudo isso indica que as interpretações históricas não são ondas que vão e vêm, como discursos que se equivalem. Elas favorecem a ampliação do conhecimento e, mais do que isso, possibilitam ao cidadão letrado opções de análise do passado que não os obriga à ingestão de pratos feitos, quase sempre indigestos.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras).


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