São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005 |
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+ livros Em "O Cosmopolitismo do Pobre", o crítico Silviano Santiago reúne ensaios que abordam a relação entre literatura, política e comportamento em autores como Machado de Assis, Caio Prado Jr. e Susan Sontag Incômodo intelectual
MARCELO COELHO
Há mais. A calcinha "serve para ali, ao sol de uma nova manhã, estabelecer um reduto clandestino de luta contra a ditadura militar". As figuras de Foucault, Derrida e Deleuze serão invocadas logo a seguir nesse texto, que sem dúvida exemplifica o empenho do autor em manter-se sintonizado com as correntes teóricas mais sofisticadas do cenário pós-moderno -termo, aliás, que ele não evita. Organizador, em 1975, de um pioneiro "Glossário de Derrida" (ed. Francisco Alves), Santiago é igualmente capaz de reexaminar com gosto, embora não necessariamente com acerto, as idéias clássicas de autores como Machado de Assis, Mário de Andrade e Caio Prado Jr. com relação à identidade nacional e à produção literária num país periférico. Este último tema, que já em 1971 havia rendido ao autor um ensaio provocativo no seu livro "Uma Literatura nos Trópicos" (ed. Rocco), conhece agora desdobramentos ainda polêmicos, mas expressos com bem menos nitidez. Desde as primeiras páginas do livro -no ensaio "Atração do Mundo - Políticas de Globalização e Identidade na Moderna Cultura Brasileira"-, o leitor se defronta com um pensamento bastante enovelado no jargão acadêmico. É assim que, já no segundo parágrafo do texto, lemos que "a riqueza exploratória da escrita memorialista de [Joaquim] Nabuco (...) pode nos servir hoje para estabelecer um paradigma inicial que recobre e explica as políticas de globalização e identidade que configuraram o primeiro século da autonomia nacional". Uma página adiante e o desajeitamento sintático do texto chega a incomodar: Nabuco manifesta a "preferência pela crise da representação por que passa a modernidade, e não pela busca de identidade nacional que a jovem nação busca". O recurso à linguagem coloquial, em outras passagens do livro, tampouco contribui para o esclarecimento do leitor. Assim, comentando uma questão em voga no universo gay brasileiro nas décadas de 60 e 70, Santiago afirma: "O verbo "assumir" entronizava várias barras". No esforço de dissipar a nebulosidade predominante no texto, o autor subitamente recorre a formulações enfáticas, quando não francamente discutíveis. O matizado texto de Machado de Assis sobre o "instinto de nacionalidade" na literatura brasileira se transforma, aos olhos de Santiago, num libelo veemente, graças ao qual o nativismo é "rechaçado" como uma "farsa ridícula". Classe média ausente Com a crítica feminista, diz o autor a respeito de Susan Sontag, é a "instituição literária ocidental, ou melhor, é a Literatura (com "l" maiúsculo) que está sendo posta em xeque". Sobre Paulo Coelho, irrompe uma frase descuidada, a que mesmo seu mais crédulo admirador reagiria com espanto: o autor de "O Alquimista" "transformou o português na língua hegemônica da globalização cultural". Em outro rompante, Santiago afirma que, se a obra literária vai perdendo "o seu caráter instigante de objeto de conhecimento para ser apenas objeto de entretenimento para o seu leitor", isto é exigência da "combinação de política e economia dominante no Brasil de Fernando Henrique Cardoso". Logo retornamos, contudo, a uma fraseologia atravancada, ainda que do ponto de vista teórico nada se perca em suposto teor transgressivo: "A desmetaforização da linguagem ficcional é a maneira eficiente e o modo não-violento de combater tanto a doença mortal quanto os problemas da atual conjuntura mundial", assevera o autor, comentando "A Doença como Metáfora", de Susan Sontag. Já a literatura de Borges teria surpreendentemente oferecido "ao latino-americano a forma mais instigante e mais arregimentadora do seu poder bélico na luta contra o racismo hierarquizante do metropolitano". Menos surpresa teremos ao ler que "a absorção política do texto artístico pelo imaginário do leitor-cidadão por meio da atividade da leitura é sempre contextualizável politicamente, queira ele ou não". Que não se percam, em todo caso, as várias sugestões interessantes deste volume. Podemos destacar, por exemplo, a idéia de que no século 20 brasileiro configurou-se uma literatura "anfíbia", oscilando entre o retrato dos miseráveis e a autocrítica dos privilegiados, sem espaço para tratar da classe média. Outro ensaio delineia a proposta de um "homossexualismo astucioso", à brasileira, liberado do exibicionismo militante que vigora nos países de tradição protestante. No texto que dá título à coletânea, Santiago identifica um novo cosmopolitismo, não mais associado às elites tradicionais da velha economia exportadora, mas que tem como protagonistas os grupos da população pobre ligados aos movimentos internacionais antiglobalização e às políticas de afirmação da cultura negra. A função da crítica literária num mercado dominado pelas listas de best-sellers, a voga das biografias e a hipótese de uma progressiva "desliteraturização do jornalismo", também são assuntos a que Santiago dedica extensa reflexão. O Cosmopolitismo do Pobre 260 págs., R$ 35,00 de Silviano Santiago. Ed. UFMG (av. Antônio Carlos, 6.627, campus Pampulha, CEP 31270-901, Belo Horizonte, MG, tel.0/xx/31/ 3499-4650). Texto Anterior: Correspondência com Goethe é marco da reflexão estética Próximo Texto: João Alexandre Barbosa também reúne ensaios Índice |
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