São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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O guardião das massas

"Representações do Intelectual" reúne conferências em que Edward Said afirma a necessidade da participação pública dos pensadores e alerta para o perigo da especialização e do autoritarismo

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Representações do Intelectual" traz seis conferências radiofônicas proferidas por Edward Said pela BBC em 1993. A questão que dá título ao volume sempre foi uma das principais preocupações do importante teórico da literatura, morto há dois anos, e, ao longo do livro, vai se acumulando uma série de definições do papel dessa controvertida figura.
Para Said, a luta central do intelectual é contra a "miséria humana e a opressão" e, para tanto, cabe a ele não se valer de estratégias que distorçam o seu desempenho público, como "floreios retóricos, o silêncio cauteloso, a jactância patriótica e a apostasia retrospectiva".
Nessa argumentação, a palavra-chave é "público", pois, partindo de Antonio Gramsci, ele defende com insistência a necessidade de o intelectual assumir a função de "representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete".

Representação não-unânime
A condição do exilado é também especial, segundo o autor. Ver e refletir "de fora" estando dentro ou teimar em não se adaptar às condições locais provocam uma "espécie de amargura ranzinza" que pode se tornar até um estilo de pensamento. O modelo por excelência dessa situação é certamente o filósofo alemão Theodor W. Adorno, que, levado pela devastadora política nazista a morar nos Estados Unidos, odiava "todos os sistemas (...) com igual aversão".
A profissionalização cria dificuldades, já que põe em xeque a autonomia do pensamento.
De acordo com Said, há pressões com as quais o intelectual precisa lidar: a especialização, o culto do técnico ou do perito credenciado, a tendência para o poder e a autoridade. A saída seria adotar a postura do amador e "levantar questões morais no âmago de qualquer atividade", dirigindo-se à autoridade não como um "bajulador profissional", e sim como a sua consciência crítica.
É claro que essa é uma redução bastante esquemática de algumas das idéias do autor. Vale mencionar que, ao discuti-las, com vagar e erudição, ele recorre com freqüência a exemplos biográficos e da causa palestina, pela qual lutou durante anos. O resumo é suficiente, contudo, para perceber que a "representação" do intelectual proposta por Edward Said não é unânime.
Um outro importante teórico da literatura, o alemão naturalizado norte-americano Hans Ulrich Gumbrecht, por exemplo, vem, em artigos e palestras, defendendo algo diferente.

Intelectual conselheiro
Para o professor da Universidade de Stanford (e aqui arrisca-se a esquematismo ainda maior), não faz sentido que um intelectual se posicione sobre assuntos variados publicamente, assumindo a função de um "conselheiro".
A ele, de modo muito mais modesto, cabe atuar como um "catalisador de complexidades", "pensar e imaginar o que ninguém mais pensa nem imagina (justamente por não ser nada "prático" fazê-lo), acumulando assim uma reserva de pensamentos, visões e desejos não pragmáticos, mas capazes de manter a sociedade receptiva a possíveis mudanças futuras, capazes de preservar a flexibilidade social" ("O Conselheiro Andrógino e o Intelectual Frio", Mais!, 2/5/2004).
Não é difícil perceber que no Brasil, pelo menos idealmente e por inúmeras contingências históricas impossíveis de mencionar, prevalece a idéia do intelectual público. Torna-se proveitoso, então, rememorar algumas das principais lições de Said: nunca colocar a solidariedade antes da crítica; universalizar de forma explícita os conflitos; recusar a lógica do convencional e aceitar o risco; discutir incessantemente com todos os guardiões de visões ou textos sagrados. Esta, a última, parece, como nunca, de especial relevância.


Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura do Brasil na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste. É autor de "O Abismo Invertido" (editora Globo).

Representações do Intelectual
128 págs., R$ 29,00 de Edward W. Said. Trad. Milton Hatoum. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/ 11/3707-3500).



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