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O guardião das massas
"Representações do Intelectual" reúne conferências em que Edward Said afirma a necessidade da
participação pública dos pensadores e alerta para o perigo da especialização e do autoritarismo
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Representações do Intelectual" traz seis conferências
radiofônicas proferidas por
Edward Said pela BBC em
1993. A questão que dá título ao volume sempre foi uma das principais
preocupações do importante teórico
da literatura, morto há dois anos, e,
ao longo do livro, vai se acumulando
uma série de definições do papel
dessa controvertida figura.
Para Said, a luta central do intelectual é contra a "miséria humana e a
opressão" e, para tanto, cabe a ele
não se valer de estratégias que distorçam o seu desempenho público,
como "floreios retóricos, o silêncio
cauteloso, a jactância patriótica e a
apostasia retrospectiva".
Nessa argumentação, a palavra-chave é "público", pois, partindo de
Antonio Gramsci, ele defende com
insistência a necessidade de o intelectual assumir a função de "representar todas as pessoas e todos os
problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete".
Representação não-unânime
A condição do exilado é também
especial, segundo o autor. Ver e refletir "de fora" estando dentro ou
teimar em não se adaptar às condições locais provocam uma "espécie
de amargura ranzinza" que pode se
tornar até um estilo de pensamento.
O modelo por excelência dessa situação é certamente o filósofo alemão Theodor W. Adorno, que, levado pela devastadora política nazista
a morar nos Estados Unidos, odiava
"todos os sistemas (...) com igual
aversão".
A profissionalização cria dificuldades, já que põe em xeque a autonomia do pensamento.
De acordo com Said, há pressões
com as quais o intelectual precisa lidar: a especialização, o culto do técnico ou do perito credenciado, a tendência para o poder e a autoridade.
A saída seria adotar a postura do
amador e "levantar questões morais
no âmago de qualquer atividade",
dirigindo-se à autoridade não como
um "bajulador profissional", e sim
como a sua consciência crítica.
É claro que essa é uma redução
bastante esquemática de algumas
das idéias do autor. Vale mencionar
que, ao discuti-las, com vagar e erudição, ele recorre com freqüência a
exemplos biográficos e da causa palestina, pela qual lutou durante anos.
O resumo é suficiente, contudo, para
perceber que a "representação" do
intelectual proposta por Edward
Said não é unânime.
Um outro importante teórico da literatura, o alemão naturalizado norte-americano Hans Ulrich Gumbrecht, por exemplo, vem, em artigos e palestras, defendendo algo diferente.
Intelectual conselheiro
Para o professor da Universidade
de Stanford (e aqui arrisca-se a esquematismo ainda maior), não faz
sentido que um intelectual se posicione sobre assuntos variados publicamente, assumindo a função de um
"conselheiro".
A ele, de modo muito mais modesto, cabe atuar como um "catalisador
de complexidades", "pensar e imaginar o que ninguém mais pensa
nem imagina (justamente por não
ser nada "prático" fazê-lo), acumulando assim uma reserva de pensamentos, visões e desejos não pragmáticos, mas capazes de manter a
sociedade receptiva a possíveis mudanças futuras, capazes de preservar
a flexibilidade social" ("O Conselheiro Andrógino e o Intelectual
Frio", Mais!, 2/5/2004).
Não é difícil perceber que no Brasil, pelo menos idealmente e por inúmeras contingências históricas impossíveis de mencionar, prevalece a
idéia do intelectual público. Torna-se proveitoso, então, rememorar algumas das principais lições de Said:
nunca colocar a solidariedade antes
da crítica; universalizar de forma explícita os conflitos; recusar a lógica
do convencional e aceitar o risco;
discutir incessantemente com todos
os guardiões de visões ou textos sagrados. Esta, a última, parece, como
nunca, de especial relevância.
Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura do Brasil na Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da USP-Leste. É autor de "O Abismo Invertido" (editora Globo).
Representações do Intelectual
128 págs., R$ 29,00
de Edward W. Said. Trad. Milton Hatoum.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/
xx/ 11/3707-3500).
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