São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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A depuração do século

Em um ensaio violento, o filósofo Alain Badiou coloca a "paixão pelo real" e a vontade absoluta de ruptura como condições centrais de todo heroísmo

JEAN BIRBAUM

Ele não mudou. Único, ou quase, entre os soldados perdidos do maoísmo francês, Alain Badiou continuou fiel ao posto, em "Le Siècle" [O Século]. Integralmente, ferozmente fiel. É claro, com aqueles que chama de "renegados", ainda compartilha alguma coisa: a memória de uma breve aventura, algumas referências definitivas (Bossuet e Balzac, Heidegger e Lacan), a abominação pelo tempo presente e uma repugnância disciplinada pela felicidade.
Um texto, enfim, que mistura sem cessar confidências autobiográficas e interpretações de doutrina. Um estilo ao mesmo tempo pretensioso e sufocado, magnífico e maligno, onde o real fornece matéria-prima para uma experimentação histérica da verdade: eles dizem "eu", eles dizem "a mim", e a história inteira é instada a se submeter.

Juventude perdida
No horizonte de tudo isso, a nostalgia de uma juventude perdida e uma interminável busca de pureza. Pureza do messianismo judeu, para Benny Lévy. Pureza do islã espiritual, em Christian Jambet. Pureza de uma Europa predestinada ao crime, sob a pena escorchante de Jean-Claude Milner.
Mas o que choca em Badiou é a implacável serenidade com que reivindica essa mesma juventude, sem que para ele a cena tenha se deslocado minimamente: seu ideal de pureza não se afastou do objetivo principal -a revolução com gola mao. Simplesmente ele se transformou em lógica de depuração permanente.
Comecemos pelos anos jovens. Quando Alain Badiou cita a "Fenomenologia do Espírito", de Hegel, é sempre na tradução clássica de Jean Hyppolite: "Porque é a de minha juventude", admite.
E, se o professor da Escola Normal Superior faz a exegese dos textos assinados por Mao Tse-tung, é para lamentar que eles não estejam hoje "inseridos em algum programa de mestrado". Contra todos os arrependidos, ele afirma que o maoísmo à francesa foi "a única corrente política inovadora e conseqüente do pós-Maio de 68".

Desejo de pureza
Quanto ao essencial, isto é, o desejo de pureza, ele é levado por Badiou à mais extrema intensidade. Em seu livro, não afirma ele que do século passado, século de terror e atrocidades, a depuração teria constituído a máxima secreta?
Pois, ao contrário de uma idéia corrente, diz ele, não foi na promessa de amanhãs encantados que os atores revolucionários encontraram força para se mobilizar, para morrer. Não, a verdadeira fonte de sua coragem foi sobretudo "a paixão pelo real": o que o século 19 prometeu e sonhou, o século 20 quer realizar forçosamente.
Quer dizer, provocar uma ruptura decisiva. Custe o que custar, acabar com o "velho mundo" e criar um homem novo, para valer, aqui e agora.
Mas essa obsessão pela tábula rasa -que foi compartilhada pelos "militantes do século, sejam da política ou da arte, da ciência ou de qualquer outra paixão"- não ocorre sem uma ampla proliferação de suspeita: pois o apagamento dos velhos dias deve ser constantemente retomado, a "lealdade" deve ser verificada repetidamente e, a "virtude", autenticada a cada instante.

Brecht e Malevitch
Em suma, "é preciso sempre recomeçar a depuração", insiste o filósofo, que mobiliza os manifestos de André Breton, o teatro didático de Brecht ou a pintura de Malevitch (o "Quadrado Branco sobre Fundo Branco" representa "o auge da depuração") para designar a utilização dos expurgos e da exclusão como "prática fundamental de todos os grupos um pouco inventivos deste século".
Alain Badiou não é do tipo que apresenta garantias. Ele não tem palavras duras o bastante para os "restauradores do servilismo imperial e capitalista" e ataca aqueles que querem condenar as políticas do absoluto, chamando-as de "totalitarismo" -palavra que ele nunca escreve sem aspas nem desconfiança, assim como "democracia" ou "direitos humanos".
São meros conceitos, que, segundo o filósofo, servem de disfarce para esse "capital-parlamentarismo" cujo espírito ele vomita -"choramingação humanista", "barbárie" anônima e "crime asseptizado". Construindo a verdade como conseqüência somente de seu discurso, como um avatar de sua própria subjetividade, o filósofo, assim, dispõe o século ao sabor de um humor devastado, transformando a depuração em fonte de todo heroísmo, de toda grandeza. Daí o claro-escuro desse ensaio violento, que muitas vezes causa frio nas costas.
Leremos neste livro de Badiou belas páginas dedicadas ao "axioma da fraternidade" e algumas linhas perturbadoras, em que a energia poética de Paul Celan converge com a dos ferroviários grevistas de 1995, opondo um imenso "Todos unidos! Todos unidos!" ao inverno glacial do cálculo egoísta. Mas, imediatamente, trespassa o gosto pela violência pura e desenfreada e até, além do bem do mal, o fascínio pelo "niilismo ativo, violento -ou mesmo terrorista- do século".


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Le Siècle
164 págs., 22 euros (R$ 77) de Alain Badiou. Ed. Seuil.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, na livraria Francesa (0/xx/ 11/ 3231-4555) e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (0/xx/21/2533-2237) ou no site www.alapage.com



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