|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A depuração do século
Em um ensaio violento, o filósofo Alain Badiou coloca a "paixão pelo real"
e a vontade absoluta de ruptura como condições centrais de todo heroísmo
JEAN BIRBAUM
Ele não mudou. Único, ou quase, entre os soldados perdidos
do maoísmo francês, Alain
Badiou continuou fiel ao posto, em "Le Siècle" [O Século]. Integralmente, ferozmente fiel. É claro,
com aqueles que chama de "renegados", ainda compartilha alguma coisa: a memória de uma breve aventura, algumas referências definitivas
(Bossuet e Balzac, Heidegger e Lacan), a abominação pelo tempo presente e uma repugnância disciplinada pela felicidade.
Um texto, enfim, que mistura sem
cessar confidências autobiográficas
e interpretações de doutrina. Um estilo ao mesmo tempo pretensioso e
sufocado, magnífico e maligno, onde o real fornece matéria-prima para
uma experimentação histérica da
verdade: eles dizem "eu", eles dizem
"a mim", e a história inteira é instada
a se submeter.
Juventude perdida
No horizonte de tudo isso, a nostalgia de uma juventude perdida e
uma interminável busca de pureza.
Pureza do messianismo judeu, para
Benny Lévy. Pureza do islã espiritual, em Christian Jambet. Pureza de
uma Europa predestinada ao crime,
sob a pena escorchante de Jean-Claude Milner.
Mas o que choca em Badiou é a implacável serenidade com que reivindica essa mesma juventude, sem que
para ele a cena tenha se deslocado
minimamente: seu ideal de pureza
não se afastou do objetivo principal
-a revolução com gola mao. Simplesmente ele se transformou em lógica de depuração permanente.
Comecemos pelos anos jovens.
Quando Alain Badiou cita a "Fenomenologia do Espírito", de Hegel, é
sempre na tradução clássica de Jean
Hyppolite: "Porque é a de minha juventude", admite.
E, se o professor da Escola Normal
Superior faz a exegese dos textos assinados por Mao Tse-tung, é para lamentar que eles não estejam hoje
"inseridos em algum programa de
mestrado". Contra todos os arrependidos, ele afirma que o maoísmo
à francesa foi "a única corrente política inovadora e conseqüente do
pós-Maio de 68".
Desejo de pureza
Quanto ao essencial, isto é, o desejo de pureza, ele é levado por Badiou
à mais extrema intensidade. Em seu
livro, não afirma ele que do século
passado, século de terror e atrocidades, a depuração teria constituído a
máxima secreta?
Pois, ao contrário de uma idéia
corrente, diz ele, não foi na promessa de amanhãs encantados que os
atores revolucionários encontraram
força para se mobilizar, para morrer.
Não, a verdadeira fonte de sua coragem foi sobretudo "a paixão pelo
real": o que o século 19 prometeu e
sonhou, o século 20 quer realizar
forçosamente.
Quer dizer, provocar uma ruptura
decisiva. Custe o que custar, acabar
com o "velho mundo" e criar um homem novo, para valer, aqui e agora.
Mas essa obsessão pela tábula rasa
-que foi compartilhada pelos "militantes do século, sejam da política
ou da arte, da ciência ou de qualquer
outra paixão"- não ocorre sem
uma ampla proliferação de suspeita:
pois o apagamento dos velhos dias
deve ser constantemente retomado,
a "lealdade" deve ser verificada repetidamente e, a "virtude", autenticada a cada instante.
Brecht e Malevitch
Em suma, "é preciso sempre recomeçar a depuração", insiste o filósofo, que mobiliza os manifestos de
André Breton, o teatro didático de
Brecht ou a pintura de Malevitch (o
"Quadrado Branco sobre Fundo
Branco" representa "o auge da depuração") para designar a utilização
dos expurgos e da exclusão como
"prática fundamental de todos os
grupos um pouco inventivos deste
século".
Alain Badiou não é do tipo que
apresenta garantias. Ele não tem palavras duras o bastante para os "restauradores do servilismo imperial e
capitalista" e ataca aqueles que querem condenar as políticas do absoluto, chamando-as de "totalitarismo"
-palavra que ele nunca escreve sem
aspas nem desconfiança, assim como "democracia" ou "direitos humanos".
São meros conceitos, que, segundo
o filósofo, servem de disfarce para
esse "capital-parlamentarismo" cujo espírito ele vomita -"choramingação humanista", "barbárie" anônima e "crime asseptizado". Construindo a verdade como conseqüência somente de seu discurso, como
um avatar de sua própria subjetividade, o filósofo, assim, dispõe o século ao sabor de um humor devastado, transformando a depuração em
fonte de todo heroísmo, de toda
grandeza. Daí o claro-escuro desse
ensaio violento, que muitas vezes
causa frio nas costas.
Leremos neste livro de Badiou belas páginas dedicadas ao "axioma da
fraternidade" e algumas linhas perturbadoras, em que a energia poética de Paul Celan converge com a dos
ferroviários grevistas de 1995, opondo um imenso "Todos unidos! Todos unidos!" ao inverno glacial do
cálculo egoísta. Mas, imediatamente, trespassa o gosto pela violência
pura e desenfreada e até, além do
bem do mal, o fascínio pelo "niilismo ativo, violento -ou mesmo terrorista- do século".
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Le Siècle
164 págs., 22 euros (R$ 77)
de Alain Badiou. Ed. Seuil.
Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, na livraria Francesa (0/xx/ 11/
3231-4555) e, no RJ, na livraria Leonardo da
Vinci (0/xx/21/2533-2237) ou no site
www.alapage.com
Texto Anterior: O guardião das massas Próximo Texto: Lançamentos Índice
|