São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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+ sociedade

O filósofo Jean Baudrillard defende que o tsunami ocorrido no fim de 2004 no Sudeste Asiático foi associado pela opinião pública à naturalização do terror e, em um nível simbólico, passou a integrar o "eixo do mal"

O apocalipse da razão

Kim Kyung-Hoon - 20.jan.2005/Reuters
Muçulmanos rezam em mesquita danificada pelo tsunami na ilha de Sumatra


JEAN BAUDRILLARD

O 11 de Setembro constituiu uma ruptura radical. Tornou-se evidente, com a chegada do terror e do combate generalizado ao terrorismo, que todas as grandes mitologias do futuro -progresso, tecnociência e história, que até ali haviam constituído o imaginário de toda cultura ocidental e, portanto, mundial- haviam se provado errôneas. Desse colapso, vimos surgir inumeráveis pequenas lendas, religiosas, étnicas, políticas ou a grande e falsa lenda planetária da informática.
Mas tudo isso não basta, e a globalização não será suficiente, em longo prazo, sem um ponto de fuga. Já que não podemos mais projetar um porvir radiante, será necessário que produzamos uma outra forma de coesão simbólica, algo distinto da política, da economia ou dos valores morais: um mito original, de fundação. Qualquer coisa que una a comunidade humana, não importa a que preço.
Diferentemente das grandes narrativas que embasam a fundação da história, o mito se funda em um passado quase atemporal. E mesmo se, com o correr do tempo, viéssemos a acreditar que fosse possível a invenção de uma nova visão, prospectiva e histórica, uma visão final das coisas, seria forçoso constatar hoje que nossa perspectiva, a do bem, se inverteu para se tornar, de acordo com a lógica mesma do progresso, "progressivamente monstruosa".
Mas é preciso mobilizar a consciência universal, e, já que é aparentemente impossível acreditar no triunfo final do bem, a referência absoluta terá de ser encontrada no mal, e na finalidade do mal. Nada além de um crime original poderia nos assegurar quanto a um ponto de referência definitivo e quanto ao fato de que a irreversibilidade do mal tem a capacidade de promover a comunidade dos homens. O crime original tem outra vantagem, porquanto já ocorreu, ou seja, o pior já aconteceu e nos poupa da angústia quanto a um apocalipse futuro, do qual temos um pressentimento implacável.
Essa construção mítica do mal absoluto se reflete na recente celebração do aniversário dos 60 anos do Holocausto.
Paradoxalmente, a celebração hiperbólica constitui novidade em relação ao que tivemos no 50º aniversário, como se o acontecido tivesse aflorado pela primeira vez à consciência universal. Mas essa diferença perceptível é sinal de outra coisa: não é o evento histórico ou a paixão da memória que estão em causa.
No intervalo entre as duas efemérides, o ataque terrorista ao World Trade Center deu início a uma nova era, de terror difuso e onipresente, desnudando todas as defesas simbólicas -um evento "criminoso" total que é preciso contrabalançar miticamente com outro evento mítico total, ou seja, o Holocausto.
É dessa forma que o extermínio e o Holocausto estão mudando sutilmente de sentido e passando, com o acúmulo de testemunhos e de provas, do estatuto de eventos históricos com responsabilidade limitada, objetiva, a um estado irreal de partilha mundial: um evento tornado culto, um evento fetiche.

Virtuais responsáveis
É como se todas as consciências viessem a se aglutinar em torno da mesma vitimização -somos todos judeus deportados e massacrados- mas também somos todos (virtualmente) responsáveis pela mesma culpabilidade, somos todos membros da SS.
Uma espécie de virtualidade toma conta do evento para torná-lo mito universal. E eis o pior: para que se torne universal, é preciso que se torne virtual. A celebração se opõe à lembrança: ela se realiza em tempo real, e de imediato o evento se torna menos e menos real e histórico, mais e mais irreal e mítico... Ao se tornar mito fundador, o Holocausto se irrealiza. A proposição negativa reflete esse estado de coisas de maneira vil e absurda, porque ela se prende, contra todas as indicações, à realidade histórica do Holocausto, enquanto o ponto crucial é o deslizamento em direção ao mito, à obsessão mítica pelo mal absoluto.
Um mal que se disputa hoje, em um mesmo movimento de denúncia e exacerbação coletiva, na forma de luta antiterrorista contra o "eixo do mal" [denominação atribuída pelos EUA a Iraque, Irã e Coréia do Norte] e na forma da epidemia de solidariedade que se seguiu ao desastre do tsunami -o ato terrorista se confundindo com a irrupção maléfica das forças naturais (o tsunami faz parte, literalmente, do "eixo do mal"). Equivalência providencial (aquela "oportunidade maravilhosa" de que fala [a secretária de Estado dos EUA] Condoleezza Rice), que permite à ordem mundial congregar, voluntária ou forçosamente, todas as suas energias e se instalar em forma de consenso ou de chantagem universal.
A equivalência das formas de terror na mesma figura emblemática do mal. Tudo é respondido secretamente: o vagalhão humanitário depois do tsunami e o vagalhão antiterrorista depois do 11 de Setembro.
Os mesmos tipos de conseqüência, eles mesmos partes integrantes do evento do mal: o antiterrorismo completa o reino do terror, o movimento humanitário faz parte da onda do abalo sísmico, acrescentando uma dimensão obscena à dimensão trágica.

Terror ilimitado
Quanto à redenção espetacular do Holocausto, o vagalhão comemorativo faz parte, ele próprio, das metástases políticas do evento -ele existe como prolongamento da mesma forma que a radiatividade sucede a um acidente nuclear. Existe uma espécie de afinidade entre todos esses eventos -e que os aproxima. É o terrorismo internacional que assume o perfil imprevisível, irremediável de catástrofe natural ou é o tsunami, os acidentes em todas as suas formas, que são equivalentes a um ato terrorista?
A gripe do frango, a doença da vaca louca, a epidemia respiratória, o blecaute em Nova York, o sol inclemente, em meio a tantos eventos anormais e fenômenos "terroristas": a confusão termina sempre explorada, em um e outro sentido, de tal modo que determinado grupo possa reivindicar o acidente como ato terrorista ou que o poder possa camuflar um atentado como acidente.
É a ordem mesma que nos força a essa concepção ilimitada do terrorismo, porque a menor infração é denunciada como tal, até mesmo as convulsões naturais que sejam de ordem "terrorista": aquilo que não passa de um fenômeno físico se torna infração à ordem mundial. A própria natureza põe fim ao "contrato natural" e se vinga por ser violentamente explorada, controlada, "aterrorizada". Sua desordem adquire a aparência de uma reação vital ao excesso de positividade e de controle.
Será que os deuses se tornaram terroristas? Após o tsunami, podiam se ler frases como: "Os terroristas, que por desespero e terrorismo purificador sonham com mudar o mundo por meio da destruição gradual, podem se assegurar: os deuses decidiram a situação entre eles e estão a meio caminho de realizar os objetivos dessa empreitada".

O álibi perfeito
O mal está em todo lugar, e é preciso erradicá-lo. Todo fenômeno extremo compartilha da ordem do mal. É o álibi perfeito para a extensão totalitária do bem. Se Deus é responsável, cabe investigá-lo.
E esse inquérito sobre Deus é uma tarefa nobre, por muitas razões: abuso de informações privilegiadas (ele sempre sabe muito e jamais revela); detenção ilegal da verdade, falsificação ideológica, a ponto de fazer crer que não Ele existe de verdade (criação de emprego fictício), fuga (Ele não existe, mas ainda assim encontrou maneiras de desaparecer). E a melhor parte será, ao final do processo, sua incineração e a aspersão de suas cinzas na web.
Que fazer agora, na ausência de Deus e de toda forma de Providência? Tentar neutralizar todos os eventos, todas as desordens, todos os acidentes, ao submetê-los a um regime de prevenção draconiana, tendo por objetivo um mundo banalizado e pacífico, sem risco e sem violência: mas dessa forma estaremos no reino do terror preventivo, no novo equilíbrio do terror, aquele em que o mal compensa o mal.
Conjuração universal de vítimas e de carrascos, conjuração universal do mal pelo mal: vemos aí uma idéia do mal manipulada pelas potências do bem (Bush, o centauro), à sombra do terror como máximo denominador comum. Ao mesmo tempo que se instaura um novo regime de extermínio, mas dessa vez o extermínio das forças do mal.
O 11 de Setembro, o tsunami e o Holocausto se emaranham na mesma obsessão grandiosa de erradicação do Mal à qual se reduziu nossa idéia do Bem, duplicada por uma canonização da idéia do mal em um crime original que nos assegura de que estamos todos aquecidos, unidos, em um trabalho de luto impossível. Essa erradicação do mal está fadada, de qualquer forma, ao fracasso, porque da hegemonia expansionista das forças do bem (o eixo antiterrorista etc.) resulta um terror multiplicado: o contraterror, o "terror branco" que as forças do bem exercem.
E aí está a raiz do mal absoluto: o mal que temos entre nós e que pode vir a se repetir não é aquele que se opõe ao bem, mas aquele que foi produzido pelo excesso de bem. É a nossa forma moderna de tragédia que essa inversão diabólica, que tudo aquilo que tentamos fazer para conjurar o mal -incluídas todas as reações vitais ao excesso mortífero de positividade, todas as reações violentas àquela realidade integral do Bem-, nos encaminhe para um resultado ainda pior -o de um apocalipse do bem.

Este texto foi publicado no "Libération".
Tradução de Paulo Migliacci.


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