São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ contraponto Esportes radicais do destino
"Menina de Ouro" e "Garrincha", e m cartaz em SP e no RJ, tematizam
o boxe e o futebol como formas de ascensão social e de busca da imortalidade
Mas aqui se trata não da "hibris" gloriosa, mas de bebida e libido desmedidos. O problema mais grave, porém, é a própria fita, colonizada pelos padrões novelescos da TV Globo -nenhuma personagem possui dignidade ou grandeza, Elza Soares é uma mulata tropicalizada segundo a fórmula da indústria cultural. Não obstante "Garrincha - Estrela Solitária" toca em uma das circunstâncias mais pungentes da vida do jogador: a amizade com Newton Santos. Derivas da fortuna Consangüinidade espiritual, esta vence o clichê do desfile carnavalesco das escolas de samba do Rio de Janeiro. É ela que resguarda a integridade de Garrincha em meio às derivas do destino e da fortuna -essa temporalidade caprihosa e incerta, que o colocou no apogeu e também o lançou na abjeção. A fortuna, dispensadora de bens e de males, fez de Garrincha seu joguete. É um amor comum pelo futebol-poesia que os reúne -à distância do pragmatismo do "futebol em prosa"-, pois em "Garrincha" o lúdico suplanta o elemento da competição. Pode-se, aqui, pensar no que escreveu Otto Rank, em "O Duplo", sobre o herói. O discípulo de Freud já notara que os heróis não têm progenitura, como se nascessem de si mesmos. Por isso, talvez, Garrincha tenha iniciado e concluído um gênero de futebol, como Proust o fez com "Em Busca do Tempo Perdido". Já "Menina de Ouro" é de outra natureza. Não porque desrealiza o real para compreendê-lo, ficcionalizando-o, mas por transfigurar papéis e valores. Morte metafísica O boxe -entretenimento tradicionalmente masculino- transfere-se para uma jovem que deve vencer um mundo adverso e hostil -desde a história familiar de uma pobreza que é também a de sentimentos, sem nenhum rastro de solidariedade ou ternura, passando pelo "avançado da idade" em seus 30 e poucos anos, até a busca do treinador competente. Este, encenado pelo próprio diretor, Clint Eastwood, produz, por uma empatia amorosa, um herói -a menina de ouro. Diferentemente de "Garrincha", "Menina de Ouro" trata a morte de maneira "metafísica", uma morte da metafísica do "encontro". Na fita, o "impossível" é a personagem central. E, aqui, o gesto que dá a morte é o mesmo que salva, conferindo à "menina de ouro" heroísmo, gesto que -à semelhança da épica antiga- a transporta para o repouso no céu dos heróis -e tanto mais por ser ela um herói anônimo, cujo brilho é o de um astro em um firmamento sem atmosfera. Malgrado "Garrincha - Estrela Solitária" trazer as marcas do padrão televisivo e "Menina de Ouro" ser cinema em sentido enfático, ambos nos deixam diante da questão de sermos ou não senhores de nosso próprio destino -como no verso "navegar é preciso, viver não é preciso". Se a arte da navegação pode se valer de sextantes, octantes e diferentes formas tecnológicas de orientação nos caminhos traçados, viver, ao contrário, é "impreciso", a vida não é, nos dois filmes, senão o instante antes do qual nada ainda aconteceu e depois do qual tudo já foi perdido. Olgária Matos é professora no departamento de filosofia da USP. Texto Anterior: + poema Próximo Texto: + sociedade: O apocalipse da razão Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |