São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

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(Ir)responsável Derrida

Kathrin Rosenfield
especial para a Folha

Quando Kafka publicou seus primeiros contos, um crítico (ninguém menos que Robert Musil) homenageou o novo estilo dessa narrativa. Assinalou, em primeiro lugar, as virtudes da atitude aparentemente irresponsável e lúdica do narrador, que mantém elos frouxos com as grandes temáticas e as preocupações éticas, de forma que a "gravidade das relações reais, repentinamente, escorrega pelo fio de uma associação". Musil viu bem as novas formas de pensar e escrever que estavam por vir, cujo aparente ludismo poderia redundar naquela riqueza moral que certos dias ociosos nos proporcionam, às vezes, quando a distração amolece as certezas. Elas nos fazem ver não mais as malhas das nossas convicções, mas os interstícios pelos quais aparecem outras possibilidades, imagens e tramas.
É bem conhecido que Derrida compartilha com Kafka aquele gosto pelos detalhes, na superfície insignificantes, que levam aos avessos e às margens de problemas centrais. Derrida leva a sério o poder da metáfora, que enreda contextos heterogêneos ao permitir passagens oblíquas entre ordens de raciocínio aparentemente incongruentes. Sua teoria da "escritura" e do "traço" como elementos autônomos e infinitamente re-contextualizáveis afasta a desconstrução derridiana das práticas acadêmicas circunscritas em disciplinas distintas. Em vez de definir e sistematizar, a "desconstrução" desdobra em modulações quase musicais os possíveis modos de entender conceitos como "ser" e "morte", "crueldade" e "mal", "ética", "pulsão" ou "responsabilidade". Sem dispensar o rigor e o virtuosismo técnico, as evoluções propostas e seguidas por Derrida fazem com que conceitos e nomes, imagens e temas se tornem conchas acústicas, caixas de ressonância que acolhem e moderam os ecos de inúmeras falas paralelas.
Apesar da grande diversidade temática dos livros publicados nos últimos anos, apesar das sinuosas passagens pelas mais diversas fronteiras entre a filosofia e a literatura, o cinema e as artes plásticas, a história, a psicanálise e a antropologia, podemos dizer que há um fio condutor que se tece nesse feixe de abordagens heterogêneas. Trata-se da morte nas suas mais diversas facetas, da morte como aquilo que escapa à atenção e ao pensamento até aquelas formas da crueldade e da atrocidade que tendem a parasitar nossa sensibilidade e nossa reflexão.
Em um dos seus mais recentes livros, "Donner la Mort" (Dar a Morte), Derrida retorna, mais uma vez, ao seu ofício de abrir seu leque de meandros e evoluções, gravitando em torno da genealogia do imaginário ético. Ponto de partida são diversas formas de entender a "responsabilidade" européia e sua relação com a morte, o "segredo" e um algo inominavelmente atroz. Inicialmente, ele segue a exposição do historiador polonês Ian Patocka, cujo ensaio destaca três momentos na genealogia da responsabilidade. Primeiro, o momento "orgiástico", isto é, a relação fusional com as forças "demoníacas", o que permite ao homem participar do "daimon", embora somente na orgia e no transe, perdendo-se ao ser arrastado por forças sub e sobre-humanas. Segundo, a incorporação platônica, que guarda como segredo o mistério orgiástico e reúne a alma, núcleo da responsabilidade, consigo mesma ao enfrentar a morte, voltando o olhar para a luminosa idéia do Bem, que surge para além da existência finita. O terceiro momento é o recalcamento cristão, que subtrai a visibilidade do Bem, mantendo-o presente tão-só como algo invisível e inacessível, que, doravante, nos olha, nos diz respeito e nos comanda.
A responsabilidade aparece num jogo de mediações ou seria melhor dizer num jogo de posições possíveis. Seja como for, não há perigo de engano. O movimento que poderia se encaminhar para uma dialética do conceito de responsabilidade, Derrida o deixa descarrilhar e descolar, saltar e desandar numa coreografia que leva a uma série de becos obscuros, que constituem, para todo o sempre, o mistério inominável dos nossos conceitos éticos (responsabilidade, decisão, liberdade). Onde a dialética hegeliana teria oferecido a efetuação do conceito e a conciliação dos termos opostos, a desconstrução ressalta algo que poderíamos chamar de vício-virtude originária. Ou seja, a responsabilidade surge de uma decisão que não respeita a lei, não permanecendo no âmbito da ordem ética, mas transbordando essa ordem ao se situar aquém e além dela. Derrida desdobra, multiplica e reproduz as reverberações desse paradoxo, partindo e retornando à história de Abraão e Isaac, à (ir)responsável decisão de um pai de obedecer à ordem divina de sacrificar seu filho preferido.
A decisão e a responsabilidade surgem juntas nessa história como algo totalmente alheio ao sujeito da ação (uma heteronomia, imposição atroz de um Deus -louco?, demoníaco?, irresponsável?- que exige uma fidelidade louca e maníaca). Ao mesmo tempo, nessa decisão se manifesta também a mais radical autonomia, pois Abraão age (ele ata seu filho, preparando-o como vítima do holocausto) sabendo que ele não sabe o que é, poderia ser, será a vontade divina. Esse "saber não saber" tem como corolário a inquietante estranheza do silêncio divino, à qual (cor)responde a resposta de Abraão -"resposta" esta que modula (engambela) o silêncio. Abraão, quando indagado por Isaac onde está a ovelha sacrificial, responde que "Deus proverá". Ele profere assim palavras que não dizem nada além do não-saber, ele fala sem revelar o que está por fazer, mas também não mente. Ele guarda o segredo da atrocidade que funda sua Aliança com Deus, aliança que o coloca secretamente acima e abaixo, além e aquém, fora e dentro da ordem ética.
Por mais que a história possa ser inominável e atroz, Derrida nos dá a entender que é desse abismo que surgem as virtudes e os vícios da responsabilidade européia. Aproximando-se do paradoxo, ele nos faz escutar os ecos e as repercussões que ela produz na reflexão e na imaginação de Kierkegaard. Este focaliza o segredo que Abraão mantém em torno de sua obediência incondicional. No segredo aparece não só o paradoxo de todo o ato de fundação e de todo o acordo (que pressupõe uma descontinuidade, a ruptura com uma ordem anterior), mas também a incomensurabilidade do sentido -não-sabido- com a palavra e o signo. Abraão assume a responsabilidade de fazer algo atroz, sabendo que não sabe o que é a vontade divina. Esse saber-não-saber transparece na sua resposta ao filho, resposta que vela (mantém secreto) o que ele é capaz de fazer em nome da responsabilidade.
Nessa história, a palavra não é meio de transparência, instrumento de uma comunicação capaz de dar conta publicamente da conformidade dos atos à lei moral (é nesse nível que o senso comum situaria a responsabilidade de uma ação universalizável e a veracidade da palavra). A palavra de Abraão é como um filhote do silêncio e do segredo, ela diz para não dizer, ela finge responder para velar, ela não diz o que sabe, dizendo apenas saber que não sabe. Essa palavra -Derrida a faz sentir e ouvir nos seus derradeiros ecos e nas suas mais sutis ressonâncias- é o rastro da "ficção legal", isto é, de uma palavra livre e responsável, precisamente porque não se origina num referente, num causador que lhe seria exterior, numa necessidade que a obrigue a dizer isto ou aquilo.
O que distingue a responsabilidade européia, é precisamente esse descompasso entre a decisão e o princípio, entre o signo e o sentido, descompasso que vela-desvela a responsabilidade absoluta como radical irresponsabilidade, deixando a Justiça "a ver navios" ao mesmo tempo em que lhe oferece a possibilidade de instaurar suas ficções legais, sacralizando (com base numa repentina decisão) coisas inteiramente laicas: a Pátria, a Liberdade, os Direitos Humanos... A literatura, diz Derrida, herda essa "história santa cujo momento abraâmico permanece o segredo essencial, mas ela também nega essa história, essa herança, esse vínculo. Ela renega essa filiação. Ela a trai no duplo sentido da palavra, ela lhe é infiel, ela rompe com ela no próprio momento em que manifesta a verdade e em que desvela o segredo. Isto é, o segredo de sua própria filiação".
É em torno desse segredo que Kafka elaborará as melancólicas evoluções e os lúdicos meandros de sua ficção. Desvela-se -e assim vela-se- o que há de mais inquietante e estranho na cultura ocidental, a incomensurabilidade entre a lei positiva e o princípio que se deixa entrever na reversibilidade ficcional da ordem da filiação, da relação de pai e filho. "A literatura começa lá onde não se pode mais dizer quem escreve e quem assina o relato do chamado e da resposta "Eis-me aqui", entre o Pai e o Filho absolutos."


Kathrin Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (Editora L&PM).



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