São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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+ cultura

O sociólogo fala de seu livro "Amor Líquido", que está saindo no Brasil e no qual discute as perdas e ganhos das relações afetivas na sociedade contemporânea

As novas guerras do prazer - Zygmunt Bauman

Gerry McCarthy
do "The Social Edge"

Zygmunt Bauman é considerado hoje um dos sociólogos mais influentes do mundo. Professor emérito de sociologia na Universidade de Leeds e na Universidade de Varsóvia, seu livro mais recente é "Amor Líquido - Sobre a Fragilidade das Relações Humanas" [que está sendo lançado nesta semana no Brasil pela editora Jorge Zahar]. Na entrevista a seguir, o autor polonês fala sobre a obra.
 
Em "Amor Líquido" o senhor escreve que, em vez de relatar sua experiência e expectativas em termos de "relacionar-se" e "relacionamentos", as pessoas falam com freqüência cada vez maior (ajudadas por conselheiros cultos) em ligações, em "ligar-se" e "estar ligado". Em vez de falar em parceiros, elas preferem falar em "redes". Que tipo de reações o senhor teve a essa análise?
Não ouvi a opinião de todos os leitores, mas aqueles que se manifestaram reconheceram suas preocupações na descrição que você cita. Acredito que a descrição não seja mais "desconfortável" do que a dificuldade que ela tenta transmitir. Encontramo-nos diariamente em uma verdadeira situação de "laço duplo". Diante do ritmo surpreendente das mudanças em praticamente todos os detalhes do ambiente em que vivemos, da aguda incerteza sobre a vida futura e curta -as expectativas de cada "projeto" em que estamos atualmente envolvidos-, precisamos muito de um ponto de referência estável e confiável que possa suportar as correntes transversais. E onde seria melhor procurá-lo do que em amigos leais sempre prontos a segurar nossas mãos, parcerias inquebrantáveis e uniões que durariam "até que a morte nos separe"?
Por outro lado, no mesmo "mundo de fluxos" em que nada consegue manter sua forma por muito tempo, é preciso muita ousadia (e hesitação e bater no peito e remorsos) para assumir compromissos de longo prazo e, assim, hipotecar futuras oportunidades das quais ainda não podemos saber, mas podemos ter certeza de que surgirão. Quanto mais próximo é um relacionamento, mais ele parece ao mesmo tempo uma promessa e uma ameaça. Não admira que uma "rede" possa parecer uma alternativa sedutora aos laços. Em uma rede, como você sabe, desligar-se é tão fácil quanto ligar-se.

No centro da vida moderna líquida (que inclui "casais semi-separados", o medo da dependência, de laços familiares e do casamento "até que a morte nos separe") está a soberania da "racionalidade do consumidor", acima dos motivos e estratégias da política de vida humana. É isso?
Exatamente! Na verdade, parecemos ter adotado em todas as esferas de nossa "política de vida" uma série de atitudes que chamo de "síndrome de consumismo" e que consistem sobretudo em uma negação enfática da virtude da procrastinação, do preceito da "espera da satisfação" -os princípios fundamentais do "moderno sólido", da "sociedade de produtores" ou "sociedade produtivista".
Entre os valores da vida, a "síndrome de consumismo" destronou a duração e enalteceu a transitoriedade. Ela dá maior valor à novidade que à duração. Isso encurtou acentuadamente o período de tempo que separa não apenas o desejo de sua realização, mas também a utilidade e desejabilidade das posses de sua inutilidade e rejeição. Entre os objetos de desejo humano, ela coloca a apropriação (rapidamente seguida do descarte) no lugar das posses.
Entre as preocupações humanas, ela coloca as precauções contra coisas que "duram mais do que são desejadas" no lugar da técnica de "segurar firme", de manter a posição e do compromisso de longo prazo (para não falar no interminável). Também encurtou radicalmente a expectativa de vida do desejo, a distância no tempo entre o desejo e sua gratificação e da gratificação ao descarte final. A "síndrome de consumismo" tem tudo a ver com excesso de velocidade e lixo.

Já se sugeriu que existe uma obsessão neurótica generalizada pela juventude na cultura ocidental. Onde isso se encaixa no mundo líquido moderno que o senhor descreve?
A adulação da juventude combina bem com a síndrome de consumismo, não é? Os objetos de consumo são considerados para usar uma vez ou pelo menos por curto tempo; seu poder de sedução está em não terem sido experimentados antes, por isso sua atração se desgasta rapidamente -eles só podem ser "não experimentados" até a primeira experiência. Isso também se aplica cada vez mais aos chamados "bens duradouros" (carros, computadores, telefones celulares, vestidos, móveis, locais de entretenimento, música, leituras -ou parceiros sexuais). A juventude é celebrada porque os jovens, por definição, cumprem esse quesito em ambos os papéis: como consumidores e como objetos de consumo! Os velhos, por outro lado, são o exemplo de algo que está por aí há muito tempo e não encerra surpresas.

No livro o senhor escreve que "ligações íntimas de sexo com amor, segurança, permanência, imortalidade por meio da continuidade da família não foram afinal tão inúteis e restritivas quanto se considerava e criticava. Os antigos e supostamente antiquados companheiros de sexo talvez fossem seus suportes necessários (não para a perfeição técnica do desempenho, mas por seu potencial gratificante)". O senhor pode falar sobre as dificuldades e os problemas associados ao afrouxamento das relações sexuais (amor líquido) -ou ao que o senhor se refere como a vitória do sexo na grande guerra da independência?
Uma vitória parcial, eu diria. A independência duramente conquistada se mostrou -e continua se mostrando diariamente- um incômodo. O sexo por si só, com os arcabouços sociais desmantelados ou desmoronando, agora está livre para se concentrar em apenas um objetivo, e espera-se que seja medido apenas por um padrão: o prazer que dá.
Mas como medir o prazer? Quando você pode dizer que foi tão bom quanto poderia ser? Qualquer coisa que se faça, os outros parecem fazer melhor. Para a sensação de prazer (assim como para o "condicionamento físico", outra obsessão de nosso tempo) não há limite máximo. E assim os prazeres do sexo vitorioso vêm num pacote com a suspeita mordaz, atormentadora, de nossa própria inadequação. Eu não sou capaz dessa tarefa. Faltam-me capacidades. Preciso buscar ajuda -de "gadgets", do último best-seller "aprenda sozinho", de um psiquiatra, de um grupo de terapia. Essa idéia é degradante, e a baixa estima é seu efeito menos suportável.
Felizmente, o sexo é um "ato duplo", um assunto de dois atores, uma troca de serviços, um serviço recíproco. E assim a culpa sempre pode ser, confortavelmente, atribuída ao outro lado. É ele/ela quem falhou no teste e que precisa de ajuda (não minha, é claro, mas de "gadgets", analistas etc.). Até então, ela/ele é um caso perdido. E como nenhum outro compromisso, direito ou dever me ligam ao parceiro fracassado, vou passar um traço e seguir adiante; é exatamente o que os políticos fazem quando seus eleitores se sentem frustrados pelas promessas não-cumpridas ou o que eu faço quando um produto comprado na última escapada ao shopping "deixou de satisfazer" ou perdeu o brilho.
Certamente haverá em algum lugar um "objeto-sexo" que me dará a experiência que busquei até agora em vão? E certamente o encontrarei um dia, se me esforçar bastante?
Um círculo vicioso, se é que já houve um. Quanto mais eu tento, mais preciso tentar. O sexo se tornou uma espécie de encontro do convés de um navio que passa -mas, por ser assim, somos impelidos a fazer o navio navegar mais depressa. Depois da vitória, não há tempo para descansar, contar os feridos e desfrutar os despojos. Isso não é necessariamente uma condenação geral do "sexo livre". É apenas um lembrete de que não há almoços de graça e de que você não deve esperar alguma coisa em troca de nada. Sempre há um preço a pagar por conquistar a liberdade de não pagar o preço!


Gerry McCarthy é editor de "The Social Edge", publicação em que a entrevista acima originalmente apareceu.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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