São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO DO FILÓSOFO E ATIVISTA FRANCÊS, MORTO HÁ 20 ANOS, TENTA ENCONTRAR EM SUAS IDÉIAS UMA COERÊNCIA E UMA SÍNTESE QUE ELE SEMPRE SE ESFORÇOU EM REFUTAR

A HERANÇA DIFÍCIL DE FOUCAULT

Reprodução
O filósofo Michel Foucault, cujos 20 anos da morte foram completados anteontem


por Jacques Rancière

Anteontem completaram-se 20 anos da morte de Michel Foucault [1926-1984]. É uma nova ocasião de comemoração, como gostam de fazer na França. Esse aniversário, porém, é mais problemático que o de Sartre, há quatro anos. Houve então uma grande operação de reconciliação, separando o filósofo provocador das causas "extremistas" com as quais se comprometera para o instalar no panteão nacional dos escritores e pensadores amigos da liberdade. O caso de Foucault é mais complexo. Não há excesso que seja preciso perdoar ao filósofo ou ao ativista em nome de suas virtudes. Pois, justamente, não se sabe muito bem nem o que se deve reprovar ao ativista nem que mérito reconhecer ao filósofo. Mais radicalmente, não se sabe exatamente como compreender a relação entre uma coisa e outra. Essa incerteza se traduz nos debates sobre a herança de Foucault. Um deles diz respeito à sua relação com a causa das minorias sexuais. "A Vontade de Saber" sustentava, com efeito, uma tese provocadora: a pretensa "repressão sexual" fora a máscara de uma operação inversa em que o poder se exercia ao fazer falar sobre o sexo, ao obrigar os indivíduos a superinvestirem os segredos e as promessas das quais ele era o detentor. Disso se deduziu facilmente, em particular nos Estados Unidos, a não-validade das políticas identitárias conduzidas pelas minorias sexuais. Com o "Saint Foucault" [Oxford University Press] de David Halperin, ao contrário, o filósofo se viu entronizado como santo padroeiro do movimento "queer", denunciando o jogo das identidades construídas pela tradição homófoba. Na França a polêmica elevou-se num outro terreno. Um dos dois editores dos "Ditos e Escritos" de Foucault, François Ewald, é hoje o teórico titular do sindicato dos patrões, engajado, em nome da moral do risco, na luta contra o sistema de proteção social francês. Donde a questão que agita os polemistas: pode-se deduzir da crítica foucaultiana da "sociedade de controle" um programa de luta contra a Previdência Social?

Filosofia da vida
Alguns querem ultrapassar esses debates, colocando no plano propriamente filosófico a questão dos fundamentos da política de Foucault. Buscam seu princípio geralmente na análise do biopoder, durante um tempo esboçada por Foucault. Uns, com Hardt e Negri, dão-lhe o substrato de uma filosofia da vida que ele próprio nunca se preocupou em elaborar, para assimilar a biopolítica ao movimento das multidões que rompem os grilhões do "império". Outros, como Giorgio Agamben, assimilam o "poder sobre a vida" descrito por Foucault a um regime generalizado do Estado de exceção, comum às democracias e aos totalitarismos. Outros ainda fazem de Foucault um teórico da ética e nos convidam a descobrir, entre seus eruditos estudos sobre o ascetismo antigo e suas pequenas confidências sobre os prazeres contemporâneos das saunas, os princípios de uma nova moral do sujeito. Todos esses debates têm um ponto em comum. Eles querem definir no percurso de Foucault um princípio de finalidade, que asseguraria sua coerência de conjunto e permitiria dar uma base sólida a uma nova política ou a uma ética inédita. Querem vê-lo confirmar uma idéia do filósofo como aquele que sintetiza o saber para ensinar as regras da ação. Ora, são precisamente essa idéia de filósofo e essa concepção da concordância entre o saber, o pensamento e a vida que Foucault pôs em questão, mais ainda por sua atitude do que por suas afirmações. O que ele inventou, antes de mais nada, foi uma maneira inédita de fazer filosofia. Enquanto a fenomenologia nos prometia, ao cabo de suas abstrações, o acesso às "coisas mesmas" e ao "mundo da vida", e alguns sonhavam fazer coincidir esse mundo prometido com aquele que o marxismo prometia aos trabalhadores, Foucault praticava um desvio máximo. Ele não prometia a vida. Estava inteiramente nela, nas decisões de polícia, nos gritos dos encarcerados ou no exame do corpo dos doentes. Mas não nos dizia o que podíamos fazer dessa "vida" e de seu saber. Sobretudo, ele via nisso a refutação em ato dos discursos sobre a consciência e sobre o humano que sustentavam então a esperança de amanhãs liberados. Mais que qualquer outro teórico "estruturalista", Foucault foi acusado de ser um pensador do tecnocratismo, que fazia da sociedade e de nosso pensamento uma máquina definida por funcionamentos anônimos inelutáveis.

Toda forma de poder
Sabemos de que maneira as coisas se inverteram desde 1968. Entre a criação da Universidade de Vincennes e a do Grupo de Informação sobre as Prisões, o "tecnocrata" estruturalista passaria a ser visto na primeira fila dos intelectuais nos quais se reconhecia o movimento antiautoritário.
A coisa parecia então evidente: aquele que analisara o nascimento do poder médico e o encerramento dos loucos e dos marginais estava predisposto a simbolizar um movimento que não atacava apenas as relações de produção e as instituições visíveis do Estado, mas todas as formas de poder disseminadas no corpo social.
Uma foto resumiu essa lógica: nela se via Foucault, empunhando um microfone, discursar, ao lado de seu ex-inimigo Sartre, a manifestantes reunidos para denunciar um crime racista. A foto intitulava-se "Os Filósofos Estão na Rua". Mas não basta um filósofo estar na rua para que sua filosofia funde um movimentoi.


O pensamento não se transmite à ação; um pensamento transmite-se a um pensamento, e uma ação provoca uma outra


O deslocamento filosófico operado por Foucault implicava justamente o desregramento das relações entre saber positivo, consciência filosófica e ação. Ao mergulhar no exame dos funcionamentos reais pelos quais o pensamento efetivo age sobre os corpos, a filosofia abdica de sua posição central. Mas o saber que ela então produz não define nenhuma arma das massas à maneira marxista. É simplesmente um novo mapa no terreno desse pensamento efetivo e descentrado. Ele não fornece à revolta nenhuma consciência. Mas torna possível que a rede de suas razões casualmente se junte à rede das razões daqueles que, aqui ou ali, se valem de seu próprio saber e de suas próprias razões para introduzir o grão de areia que emperra a máquina. Assim, a arqueologia das relações de poder e dos funcionamentos do pensar não funda mais a revolta do que a submissão. Simplesmente redistribui os territórios e os mapas. Ao subtrair o pensamento de sua posição central, ela reconhece o de cada um e o de todos, especialmente o dos "homens infames" de quem Foucault empreendeu escrever a vida. Mas ao mesmo tempo ela impede que esse pensamento, restituído a todos, se instale na centralidade de um confronto do saber e do poder.

Sentimento do intolerável
Isso não quer dizer que a política se perca na multiplicidade das relações de poder disseminadas por toda parte, mas sim que ela é sempre um salto que nenhum saber justifica e do qual nenhum saber isenta. De qualquer saber a qualquer intervenção, a passagem supõe um intermediário singular, o sentimento de um intolerável.
"A situação nas prisões é intolerável", declarou Foucault ao fundar, em 1971, o Grupo de Informação sobre as Prisões. Esse "intolerável" não resulta da evidência do saber e não se dirige a nenhuma consciência universal que seria assim forçada a concordar. É apenas um "sentimento", o mesmo certamente que levara o filósofo a envolver-se no território desconhecido dos arquivos, sem saber aonde este o levaria e muito menos aonde poderia levar os outros.
Alguns meses mais tarde, porém, o intolerável do filósofo haveria de juntar-se àquele que os prisioneiros em revolta de várias prisões francesas declarariam com as próprias armas e apoiados em seu próprio saber. O pensamento não se transmite à ação. Um pensamento transmite-se a um pensamento, e uma ação provoca uma outra. O pensamento age na medida em que aceita não saber exatamente o que o impele e em que abre mão do controle de seus efeitos.
Parece que o próprio Foucault teve dificuldade de assumir esse paradoxo inteiramente. Sabe-se que por um longo momento ele parou de escrever. Foi justamente depois de "A Vontade de Saber", livro em torno do qual se batem hoje os exegetas. Esse livro introduzia em princípio uma "História da Sexualidade" cuja significação ele resumia antecipadamente. Parece que Foucault teve medo desse caminho traçado de antemão.
Antes que a iminência da morte o levasse a publicar "O Uso dos Prazeres" e "O Cuidado de Si", nada mais publicou a não ser entrevistas. Nestas, é claro, era sempre solicitado a dizer o que ligava suas pacientes investigações nos arquivos com suas intervenções sobre a repressão na Polônia, seu mergulho nas técnicas gregas da subjetividade e seu trabalho com uma confederação sindical. Todas essas respostas, percebemos bem, são outros tantos engodos que reintroduzem uma posição de mestre que seu trabalho mesmo arruinara.
Acontece a mesma coisa com todas as racionalizações que deduzem de seus escritos o princípio da revolução "queer", da emancipação das multidões ou de uma nova ética do indivíduo. Não há pensamento de Foucault que fundamente uma política ou uma ética novas. Há livros que produzem efeito na medida mesmo em que não nos dizem o que devemos fazer. Os embalsamadores terão dificuldades.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.


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