São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Temor à desordem pode impedir abertura política na China e consolidar nova forma de capitalismo autoritário

O shopping de restrições democráticas

Boris Fausto

Com suas imensas transformações, com o invejável crescimento do PIB por anos seguidos, a China é um dos pólos de referência das questões econômicas globais. Ao mesmo tempo, não são muitas as análises do regime político chinês, não obstante a óbvia interpenetração entre política e economia. As razões para esse fato talvez possam ser assim resumidas: de um lado, o pragmatismo das façanhas e fracassos econômicos, considerados isoladamente, concentra a atenção dos analistas; de outro, o regime político suscita muito mais dúvidas do que certezas, desafiando as previsões. Algumas coisas são certas. Para manter-se no poder, o Partido Comunista da China beneficiou-se da posição geográfica do país, distante do "contágio" democrático, que atingiu a União Soviética. A burocracia partidária chinesa beneficiou-se também do exemplo do processo de liquidação do regime comunista daquele país e dos países-satélites, cujos riscos desintegradores deveriam ser evitados a qualquer preço. Sem emitir aqui um juízo de valor, esse é aliás um exemplo de que a história ensina, como ensinou os sucessivos governos americanos, em suas relações com a América Latina, após o trauma provocado pela Revolução Cubana. A China de hoje, como se sabe, combina uma clara e agressiva opção pelo capitalismo, na esfera da economia, com uma autocracia de partido único e dura restrição às liberdades democráticas, no plano político. A pergunta maior é a seguinte: os comunistas chineses criaram um regime estável, nessa combinação que impropriamente se chama de "caminho chinês para o capitalismo", ou estamos diante de uma longa transição que acabará desembocando no par, visto como tradicional, constituído por capitalismo e democracia?

Otimistas e pessimistas
Depois do inesperado desfecho do caso soviético, a maioria das análises, com boas razões, tem se caracterizado pela prudência. Ainda assim, é possível constatar uma divisão esquemática, entre "otimistas" e "pessimistas". Os primeiros prestam algum tributo a uma teoria corrente, em meados do século passado, de que o avanço do sistema econômico capitalista traria consigo a formação de uma ampla classe média e levaria, dessa forma, a um processo de democratização de países de regime autoritário. Em abono não propriamente dessa tese, hoje ultrapassada, mas de uma versão otimista do que vem ocorrendo na China nos últimos anos, alguns fatos devem ser assinalados. Os delírios da Revolução Cultural pertencem ao passado, o culto da personalidade dos dirigentes se reduziu muito, a inscrição no Partido Comunista se abriu aos empreendedores capitalistas e surgiu um leque de associações, com objetivos bastante diversos. Entretanto os pessimistas não negam que a China de hoje tenha um regime menos repressivo, quando comparado com o dos tempos de Mao Tse-tung e sucessores. A pergunta não é essa, e sim se a relativa descompressão corresponde a passos importantes no caminho pacífico rumo à instalação de uma democracia capitalista, ou se estamos apenas diante de uma reformulação do regime autoritário, com o objetivo de perpetuá-lo em seus componentes essenciais. Há um conjunto de razões para nos inclinarmos pela versão pessimista. Em primeiro lugar -e há aí, em parte, um reflexo do caso soviético-, é muito difundida não só interna, como externamente, a versão de que a tentativa de efetuar uma efetiva democratização da China levaria o país ao "caos" -uma situação temida, mais do que qualquer coisa, por investidores "vermelhos" ou estrangeiros, pelo governo chinês e por todos os demais governos que contam no cenário internacional.

Tensões estruturais
Esse temor é um dos fatores que faz com que sejam minoritários e destituídos de significativo apoio externo os setores da sociedade chinesa que lutam pela democracia. Entre eles, certamente não se incluem os novos capitalistas, acomodados na companhia da burocracia partidária, de quem recebem não poucos favores.
Por outro lado, seria errôneo tomar o florescimento associativo -em si mesmo um fato positivo- como uma clara afirmação da sociedade civil. Tais associações, formadas por igrejas, escritores ou cientistas, estão sob a dependência do Estado, que continua perseguindo duramente os organizadores de partidos democráticos, a parte majoritária da Igreja Católica que não compactua com os ditames do regime e os movimentos espirituais, como o Falun Gong. No plano externo, o Tibete ocupado é submetido a uma dura repressão e qualquer sugestão de independência de Taiwan recebe como resposta os mais violentos ataques nos meios oficiais chineses.
É certo que a China sofre grandes tensões, como aponta um autor situado entre os pessimistas, Bruce J. Dickson, em um livro recente -"Red Capitalists in China - The Party, Private Entrepreneurs, and Prospects of Political Change" (Cambridge University Press). Tais tensões têm a ver com os problemas gerados pelas profundas transformações estruturais: crescente desigualdade, especialmente entre o setor urbano da costa e o rural, corrupção generalizada, desemprego, degradação do ambiente.
Mas seriam esses fatores -que apontam para um quadro diverso da progressiva passagem ao regime democrático, sob pressão dos novos capitalistas e da classe média- capazes de gerar as condições para a implantação da democracia? Ou seriam eles propiciadores de revoltas que poderiam acabar conduzindo ao temível caos?
É difícil responder a essas questões. Mas é visível o fato de que, depois de terem se diversificado, os caminhos da China e da Rússia de Putin, guardadas as diferenças, parecem se aproximar. Num e noutro país há um processo -formal na China, mais informal na Rússia- de negação das liberdades, de controle da mídia, de associação do Estado e dos grandes empresários, em que o poder estatal é determinante em última instância. Tudo isso justificado e amparado socialmente pelo temor à desordem. Desse modo, estariam os dois grandes centros da "revolução proletária" do século 20 se encaminhando para formas novas e estáveis de um capitalismo autoritário?


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.


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