São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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DOIS ARTIGOS DISCUTEM O BEST-SELLER MUNDIAL DE DAN BROWN, AGORA LANÇADO NO BRASIL

Decifrando o Código Da Vinci

Jean Galard
especial para a Folha

Os elogios publicitários que acompanham, na capa, o quarto romance de Dan Brown não são enganosos: "O Código Da Vinci" é um livro "envolvente", que se lê "de arrancada", "não conseguimos largá-lo". No entanto até o leitor mais cativado encontra, de vez em quando, ocasião para recuperar o fôlego e se fazer duas ou três perguntas.
Por exemplo, quais são os motivos do sucesso extraordinário alcançado por esse best-seller em todo o mundo, em cerca de 40 línguas até hoje? Esse sucesso se deve às qualidades intrínsecas da obra? Ou é o efeito, automaticamente amplificado, de uma celebridade já conquistada? A mesma interrogação assalta, como sabemos, os visitantes que examinam "A Gioconda", guardadas as proporções.
Outra pergunta se impõe rapidamente. Como a ficção romanesca e a informação histórica estão aqui imbricadas? Ora trata-se ostensivamente de ficção, ora os fatos históricos citados são reais.
Mas, com maior freqüência, o romance se desenrola em um espaço intermediário indefinível. A grande habilidade de Dan Brown é evidentemente provocar a dúvida a todo momento sobre a verdade do que ele conta e, imediatamente, fornecer bons motivos para aceitar suas "revelações".
Aqui e ali há alguns erros manifestos. Na longa parte que se passa nos recintos do Museu do Louvre, a topografia é simplesmente falsa em vários pontos. Suponhamos caridosamente que o autor o tenha feito de propósito.
Provavelmente ele quis contribuir para a segurança do museu, enganando deliberadamente os intrusos que se insinuariam à noite com más intenções. Ou ele pretendeu, generosamente, aumentar a freqüência à Grande Galeria, incitando seus leitores a visitar em peregrinação o local do crime?
Enquanto isso, deixando de lado algumas inverossimilhanças que parecem destinadas a saltar aos olhos, há uma oscilação sistemática entre o provável e o impossível e, para o leitor, entre a dúvida e a aceitação. Mas as revelações maiores -principalmente sobre a família de Cristo- acabam por assumir um aspecto plausível. Segundo o humor do leitor e também segundo sua fé eventual, o equívoco pode parecer divertido ou escandaloso, e, o autor, admiravelmente hábil ou diabolicamente perverso.
Dan Brown conduz seu trabalho atribuindo-se certas facilidades que lhe são muito úteis. Por exemplo, recorre à alusão rápida a rituais do Antigo Egito, cujo esoterismo tem um valor popular garantido e cujo "mistério" sempre foi muito apreciado. Do mesmo modo, ao dar em seu relato um papel importante à Ordem dos Templários -cujas relações movimentadas com a realeza medieval e o papado conhecemos, mas ainda ignoramos em parte os motivos do ódio que eles provocaram-, o autor conta com uma vasta reserva de alegações tenebrosas e sulfurosas. Sobretudo, ele convoca uma série de símbolos que se prestam com folga a todos os significados que desejarmos: símbolos numéricos, signos astrológicos, emblemas gráficos. Alguns desses símbolos são tão simples formalmente (por exemplo, a letra "v", assim como o mesmo sinal invertido) que é inevitável encontrá-los em toda parte. Assim, tudo se parece com tudo. O autor ganha uma incontestável comodidade interpretativa. O leitor, por sua vez, terá garantida uma grande satisfação intelectual: a de descobrir sem cessar aproximações imprevistas e compreender de repente verdades prodigiosas. Tudo se encaixa e se ajusta muito bem. Tudo coincide. Os chifres do carneiro remetem aos do diabo assim como às cornucópias de abundância. O ângulo formado pelo "v" evoca tanto o cálice cristão quanto o ícone da feminilidade.
Deve-se notar, nesse sentido, que um trabalho engenhoso é exigido dos tradutores do livro, que devem inventar os equivalentes necessários para todo tipo de jogos de palavras, associações verbais e anagramas. Não ousamos pensar nas dificuldades enfrentadas pelos tradutores das edições em línguas que não utilizam caracteres latinos.
Dessa complexa mistura de verdades históricas, antigas lendas, narrativas recentes e invenções atuais, certos leitores terão vontade de rejeitar tudo como uma confusão de fabulações, outros de tudo aceitar como um novo evangelho. Entre essas duas categorias de público se situa o grupo, cujo número ninguém saberia avaliar, de leitores capazes de separar as coisas, isto é, apreciar a erudição do autor para o que é verídico e sua imaginação, assim como talvez seu humor, para o que é falacioso. Aí talvez esteja o perigo deste livro. O que ele contém de verificável está inextricavelmente misturado a asserções incontroláveis. Como nos documentos esotéricos, em suma, a verdade está muito bem escondida. Assim como se dizia outrora das obras ousadas, ele não deveria ser colocado em quaisquer mãos. Aparentemente, está conhecendo um destino contrário.
Não dramatizemos. "O Código Da Vinci" é um livro acima de tudo simpático. É divertido. Não tem nenhuma pretensão literária, mas sua técnica narrativa é eficaz. Por sua construção em forma de caça ao tesouro e jogo de pistas, tem as qualidades de um excelente livro para crianças. Sempre haverá tempo mais tarde, para elas, de examinar as coisas mais de perto.
Enfim, só podemos apreciar a boa vontade quase militante que Dan Brown testemunha a favor da causa feminista. Ele convida, de fato, a sonhar com o que poderia ter sido a história dos últimos 20 séculos se o cristianismo tivesse concebido de outra forma o papel e o estatuto das mulheres. No modo ambíguo que caracteriza todo o seu romance, ele celebra o "feminino sagrado" com uma surpreendente mistura de seriedade e humor.


Jean Galard é ex-diretor cultural do Museu do Louvre (Paris) e autor de "A Beleza do Gesto" (Edusp).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


O Código Da Vinci
480 págs., R$ 39,00 de Dan Brown. Trad. Celina Cavalcante Falck-Cook. Ed. Sextante (r. Voluntários da Pátria, 45, sala 1.404, CEP 22270-000, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2286-9944).



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