São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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Decifrando o Código Da Vinci

Fabio Herrmann
especial para a Folha

O grande romance desvenda alguma dimensão da realidade. E o pequeno, o best-seller divertido, algo também nos poderá informar acerca do mundo em que vivemos? Diria que sim, que pode, mas a título de sintoma da realidade, não de reflexão, não de informação, mas enquanto informante.
"O Código Da Vinci" é um tremendo sucesso de público e tipicamente sintomático. O autor, Dan Brown, não perde tempo com sutilezas psicológicas e introduz em poucas páginas o casal simpático da aventura. Robert Langdon é um professor de simbologia religiosa da Universidade Harvard, agora na França -ao que parece, já teve uma aventura anterior no Vaticano-, apresentado numa conferência em certa Universidade Americana de Paris como dono de uma voz de barítono, que soa a "chocolate ao ouvido das alunas", um "Harrison Ford em Harris tweed". A mocinha chama-se Sophie, é criptógrafa da polícia parisiense e neta do curador do Museu do Louvre, o qual, descobre-se depois, é também o "Grande Mestre do Priorado de Sião". Jacques Saunière, presumivelmente o único personagem mais complexo e promissor, é contudo assassinado logo à página três, em plena Grande Galeria. As 450 páginas seguintes estão ocupadas por uma desenfreada gincana, que mistura investigação do crime, fuga da arrogante polícia francesa, fuga dos bandidos -quem seriam? Não necessariamente a Igreja Católica, incriminada putativamente-, solução de charadas (em inglês) e caça ao tesouro, este nada menos que o Santo Graal.
Nada de mais, à primeira vista. De James Bond a Indiana Jones a fórmula do sucesso pouco mudou. Em "O Código Da Vinci", os capítulos encolheram, as cenas paralelas convergem mais depressa, a leitura proporciona alguma interatividade, desafiando o leitor a sacar os trocadilhos. A bem da verdade, como se diz, sugerindo que a verdade, além de nua e crua, é pobre também, devo confessar o ridículo momento de orgulho que experimentei ao decifrar, em "in london lies a knight a pope interred", o nome de Alexandre Pope onde "enterrado por um papa" não fazia mesmo o menor sentido. É claro que o "assustadoramente inteligente" com que é saudada a solução do enigma uma vintena de capítulos depois fez-me corar de vergonha retrospectiva. Em compensação, o transparente Amon e Ísis ("L'Isa", em italiano), para Mona Lisa, não me proporcionou prazer nenhum, antes o vexame de quem suplica interiormente "isto não, isto não por favor, ai! Isto sim", levando-me a querer retrucar ao autor que o par de Ísis seria antes Osíris, no caso, e não Amon. Detalhes. Jogando um videogame, não se pode ser demasiado exigente. O livro é superficial, mas diverte.
O segredo do sucesso é difícil de precisar. Best-sellers são como avalanches. A condição predisponente mais ou menos se conhece, porém, uma vez começadas, engrossam por si mesmas, rolando a encosta da montanha e acumulando propaganda. O tema religião está na moda. Oferece pelo menos uma interpretação fácil para as últimas incursões imperiais. História conspirativa da Igreja Católica, cruzados e templários, heresias e heresiarcas, tudo isso tem sido popular por décadas. Só de Umberto Eco, além de "O Nome da Rosa", há "O Pêndulo de Foucault" e "Baudolino". O desmascaramento de uma conspiração para eliminar o "Sagrado Feminino", na pessoa da Madalena, não tem como falhar em atrativos. Principalmente sendo ela o próprio Graal, o vaso sagrado, em que pese a conotação, nem sequer blasfema, mas algo obscena. Levar-nos a passear por obras de arte e referências culturais um tanto óbvias, de Da Vinci a Newton, entra no espírito da fast food intelectual sem grandes problemas. Quanto a tudo dizer em inglês, isso é usual e internético. Certo, um professor de simbologia religiosa que não entende francês e necessita recorrer à constelação de Taurus para traduzir "taureau" é muito pouco plausível. Primeiro, por óbvias exigências profissionais, em que línguas teria estudado a Idade Média? Segundo, porque de "taureau" (como se sabe, pronuncia-se "torrô") para "taurus" a semelhança só está na escrita, não na fala. Mas isso já nos leva ao centro da questão, à realidade cifrada.
A meu ver, o que há de verdadeiramente sintomático em "O Código Da Vinci" é o rebaixamento do mistério a enigma. Pondo as coisas em termos simples, enigmas têm solução, enquanto mistérios não a têm. Indo de um a outro livro de sucesso atual, mas de diferente envergadura, quando, no "Ensaio sobre a Lucidez", de Saramago (continuação do "Ensaio sobre a Cegueira"), que, entre muitas outras coisas, é uma deliciosa piada de agente secreto português, o Comissário muda de lado ao recordar uma frase -"Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos, Quem assinou isto por mim"-, estamos diante do mistério do próprio nome, não como designação, mas como assinatura da existência. Não há resposta para tal mistério, salvo a vida, salvo a ação e a morte conseqüente. Todavia, de "san graal" para "sang real", de "Amon, L'Isa" para "Mona Lisa" e para outras dezenas de charadas de inspiração ainda mais rasa, a solução é clara, mata-se a charada, ou melhor, esta se suicida de vergonha.
A realidade como texto cifrado -e muito mal cifrado no caso presente- corresponde a uma visão do mundo em franca difusão. Dir-se-ia que nos cansamos de lutar contra sermos enganados e passamos a desejar o engano, a querer dele participar ativamente. Afinal, um texto cifrado é uma comunicação entre dois especialistas, o que a cifrou e o que a decifrou. No meio, estamos nós, os que não compreendem a realidade cifrada. As armas de destruição em massa que Bush procura no Iraque estão, ao que consta, estocadas entre os arbustos do seu jardim; mas a hipótese terrorista é suficiente para que se aceitem invasão, assassínio e torturas. As promessas eleitorais não se vão cumprir, é notório, mas circularam e voltarão a circular dentro em pouco, dando seguimento ao processo de recompra de bilhetes corridos. O crime da semana é solucionado, explicam-se os motivos inconscientes e as razões sociais; depois a solução é desmentida e o interesse morre. Não fazendo mais sentido do que um papa na Inglaterra, decerto a realidade deve conter alguma mensagem cifrada. Resta-nos esperar que alguém a decifre.
Potencializando a suspeita de uma realidade cifrada da terra para os céus, não é de estranhar que a religião correspondente decaia do mistério do humano para a hipótese conspirativa e, desta, à simples charada. Aliás, "O Código Da Vinci" não versa sobre o cristianismo, fique descansado, mas sobre os projetos de terceirização corporativa da divindade. E, convenhamos, um professor de simbologia religiosa guiado por uma criptógrafa policial constitui uma poderosa imagem de nossa época, versão contemporânea do "Cego Guiando Outros Cegos", do velho Brueghel. Leia e constate.


Fabio Herrmann é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e analista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É autor de "A Infância de Adão" (ed. Casa do Psicólogo).


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