São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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Ponto de fuga

A volúpia do fim

Jorge Coli
especial par Folha

O poeta grego Konstantinos Kaváfis, que morreu em 1933, deixou uma página intitulada "À Espera dos Bárbaros" [em "Poemas", ed. Nova Fronteira]. Num império não nomeado, anuncia-se que os bárbaros se aproximam. Os cônsules e pretores vestem-se com as togas mais finas e com as jóias mais ricas para deslumbrar os invasores. Os senadores deixaram de legislar; não vale a pena. O imperador se posta à porta da cidade, solene, coroa na cabeça, quer ser o primeiro a recebê-los. De repente, uma inquietação. As pessoas se recolhem com ar sombrio. O que teria ocorrido? "É que a noite caiu", responde alguém, "e os bárbaros não chegam. Pessoas vieram das fronteiras e dizem que não há bárbaros...". O poema conclui: "E agora, que será de nós sem bárbaros? Essa gente, apesar de tudo, era uma solução".
O filme "O Dia Depois de Amanhã", de Roland Emmerich, cria uma decadente sensação de saciedade um pouco assim. A trama do pai buscando salvar o filho é gasta, inerte, apenas um pretexto. Nesse pai e nesse filho, porém, há algo de resignado, de cansado. O jovem e seus companheiros vão ser salvos, está claro, e isso não parece importar muito. Políticos mostram-se mesquinhos e estúpidos, como sempre. A militância ecológica é bem menos presente do que os maravilhosos estragos provocados pela natureza, de beleza grandiosa.
Pela primeira vez num filme, o povo americano tem que imigrar para países subdesenvolvidos. Há um desejo surdo: ah, como seria bom uma catástrofe universal para fazer o mundo sair da estreiteza cruenta e descorçoada em que se encontra! Essa nova era glacial, apesar de tudo, seria uma solução...

Psiu - "Kovadloff (...) é dos que procuram exprimir, através das palavras, intuições obscuras e obsessivas", escreveu Ernesto Sabato. Através, termo justo, já que algo se desenha por trás da transparência, clara ou embaçada, de suas frases. Algo que o leitor vislumbra, aproxima, captura quase, ou vê escapar.
A editora José Olympio publicou "O Silêncio Primordial", ensaios de Santiago Kovadloff, pensador argentino. O estilo é admirável e, a tradução, excelente. Kovadloff expõe o pressuposto silencioso por trás da poesia, da psicanálise, da música, da matemática, da religião, da pintura e do amor. Pode-se nem sempre estar de acordo com alguns procedimentos de sua compreensão, mas não importa. O modo como isso é dito é o estimulante. Muito belo também.
Veja-se esta passagem sobre a carícia: "É em virtude da sua constituição que o silêncio amoroso encontra na carícia o meio adequado para a manifestação de sua melhor eloqüência. A carícia se estende sobre a amada. Na tranqüilidade inigualável de seu lento desdobramento podemos reconhecer que, com ela, se celebra uma presença sem que se caia na cega ilusão possessiva. (...) A carícia é a incomparável voz elementar do silêncio amoroso: com ela se acata e exalta o que há de inalcançável na beleza da amada. Mediante a delicadeza incomparável de sua forma, a carícia desliza sobre a pele sem confundir o que se brinda ao tato com o que se pode apreender".

Winners - "Tudo sobre o Oscar - uma Visão do Cinema Sonoro Americano" (editora Zit) é livro grande, de 700 páginas. Sai publicado agora em segunda edição. Obra brasileira de Fernando Albagli, erudito sem falhas e amoroso do cinema, firma-se como verdadeira suma de referências incontáveis. É preciso o investimento de uma vida para conseguir resultado assim. Melhor do que isso, só se saísse em CD-ROM, o que facilitaria em muito as pesquisas e cruzamentos de dados.

Aquecimento - "Os Gênios da Pelota", dirigido por Norman McLeod, com os irmãos Marx, mostra Harpo que alimenta uma lareira com enormes pás de livros, numa alegria anárquica e destrutora. Em "O Dia Depois de Amanhã", os livros da Biblioteca Pública de Nova York são também queimados para que um pequeno grupo possa sobreviver ao frio extremo. A cultura vira cinzas em benefício de necessidades primárias, para que a humanidade possa renascer e novos futuros se desenhem. Salva-se, apenas, na melancolia, um exemplar da Bíblia de Gutemberg.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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