UOL


São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Allen Ginsberg vive como marido e mulher com um outro barbudo e gostaria que Fernando Arrabal assistisse a seus amplexos entre barbudos


A BORDO
3.nov.59

O tédio agora tem para mim a imagem deste transatlântico. Mas por que não peguei um avião? Teria chegado à América impregnado do ritmo do mundo dos grandes negócios e da grande política, mas chegarei carregado de uma forte dose de tédio americano, de velhice americana, de pobreza de recursos vitais americana. Por sorte só me resta passar uma noite no vapor, depois de quatro noites de um tédio desesperador. O sabor da belle époque dos transatlânticos já não consegue ressuscitar nenhuma imagem. Aquele resto de lembrança do tempo passado que você poderia recuperar de Montecarlo ou de San Pellegrino Terme não existe aqui, porque o transatlântico é novo, uma coisa antiquada construída agora pretensiosamente, povoada de gente antiquada, velha e feia. A única coisa que se pode extrair desta experiência é a definição do tédio como uma defasagem em relação à história, um sentimento de ter sido cortado fora com a consciência de que todo o resto se move: o tédio de Recanati, assim como o das "Três Irmãs", não é diverso do tédio de uma viagem num transatlântico. Viva o Socialismo. Viva a Aviação.

OS MEUS COLEGAS DE VIAGEM
(young creative writers)

São três porque o alemão Gunther Grass não passou no exame médico e, por causa da lei bárbara que diz que, para entrar na América, é preciso ter os pulmões limpos, deve renunciar à bolsa. Depois há um quarto, que viaja em "tourist class" (a terceira), porque está trazendo consigo, por conta própria, a mulher e o filhinho, e por isso nos vimos apenas uma vez. É ALFRED TOMLINSON, poeta inglês, o tipo tradicional de universitário britânico. Tem 32 anos, mas bem poderia ter 52. Os outros três são:
CLAUDE OLLIER, francês, 37 anos, nouveau roman, até agora só escreveu um livro. Queria aproveitar a viagem para ler finalmente Proust, mas a biblioteca circulante do transatlântico não vai muito além de Cronin.
FERNANDO ARRABAL, espanhol, 27 anos, pequeno, cara de menino, barba redonda e franjinha. Vive há anos em Paris. Escreveu umas pièces teatrais que ninguém quis representar, além de um romance publicado por Julliard. Passa fome. Não conhece nenhum escritor espanhol e odeia a todos porque dizem que ele é um traidor e queriam que fizesse realismo socialista e escrevesse contra Franco, mas ele se recusa a escrever contra Franco, ele nem sabe quem é Franco, mas na Espanha, se não se está contra Franco, não é possível publicar nada nem ganhar prêmios literários, porque quem comanda tudo é Goytisolo, que impõe a todos o realismo socialista, isto é, Hemingway-Dos Passos, mas ele nunca leu Hemingway-Dos Passos nem leu Goytisolo porque não consegue ler o realismo socialista e, afora Ionesco e Ezra Pound, não aprecia muitas coisas. É extremamente agressivo, sarcástico de uma maneira obsessiva, lúgubre e não se cansa de me bombardear com perguntas sobre como posso me interessar por política e sobre o que se faz com as mulheres. Seus alvos polêmicos são dois: a política e o sexo. Ele e os blousons noirs por cinema (sobretudo cinemascope, technicolor e gângsteres) e fliperamas. Saído do seminário (estudava com jesuítas, na Espanha), nunca teve contatos sexuais, parece que nem mesmo com a sua mulher (se casou há três anos), e nunca teve desejo de tê-los, assim como com a política. Diz que os blousons noirs que estão em alta agora são ainda mais avessos que ele à política e ao sexo. Não fala uma palavra de inglês, escreve em franc.
HUGO CLAUS, belga flamengo, 32 anos, começou a publicar aos 19 e desde então escreveu uma quantidade enorme de coisas, sendo o mais famoso escritor, dramaturgo e poeta da área linguística flamengo-holandesa da nova geração. Ele diz que muitas dessas coisas não valem nada, inclusive o romance traduzido na França e nos Estados Unidos, mas é um tipo que não tem nada estúpido ou antipático, um homenzarrão louro com uma belíssima mulher, atriz de revista (que conheci enquanto o cumprimentava na partida), e é o único desses três que leu muitíssimo e cujas opiniões são confiáveis. Quatro horas depois do lançamento do primeiro Sputnik, já tinha escrito um poema sobre o feito, que saiu imediatamente na primeira página de um jornal belga. Meu novo endereço, creio que definitivo durante todo o período em que estarei em Nova York, ou seja, até por volta de 5 de janeiro, é: Grosvenor Hotel, 35 Fifth Avenue, Nova York.

DO DIÁRIO
DOS PRIMEIROS DIAS EM NY

9 de novembro de 1959

A CHEGADA

O tédio da viagem foi largamente compensado pela emoção da chegada a Nova York, a mais espetacular visão que se possa ter nesta terra. Os arranha-céus despontam cinzentos no céu semiclaro e parecem enormes ruínas de uma monstruosa Nova York abandonada daqui a 3.000 anos. Depois pouco a pouco se distinguem as cores diferentes de qualquer idéia que se pudesse ter dela, e um complicadíssimo desenho de formas. Tudo é silencioso e deserto, e então começamos a ver os carros a correr. O aspecto cinzento, maciço e finissecular das casas dá a NY, como logo nota Ollier, um ar de cidade alemã.
[...] "Não é ainda a América"
Esta frase que li em todos os livros sobre Nova York é repetida dez vezes ao dia e é verdadeira, mas e daí? Nova York é algo que não é inteiramente a América nem é a Europa, que te transmite uma carga de energia extraordinária, que te toma nas mãos como se você sempre tivesse vivido ali, em certos momentos, especialmente em uptown e onde mais se sente a vida de massa dos grandes escritórios e fábricas de roupas, ela parece cair sobre você e te esmagar. Naturalmente, basta desembarcar aqui e pensamos em tudo, menos em voltar.

O VILLAGE

Talvez eu esteja errado em ficar no Village. É bem pouco Nova York, mesmo estando no centro. É muito semelhante a Paris, mas no fundo se vê que é uma semelhança involuntária que faz de tudo para se crer voluntária. Três estratos sociais diversos no Village: a burguesia bem-pensante, sobretudo dos edifícios novos; os nativos italianos, que, diante da invasão dos artistas (iniciada nos anos 10, porque aqui era mais barato), resistem e frequentemente se desesperam (na primavera, brigas e prisões em massa por parte da polícia diminuíram o fluxo de turismo dominical dos nova-iorquinos de outros bairros), mas no entanto é com os boêmios e a atmosfera boêmia que suas lojas prosperam; e os boêmios que agora são todos chamados de beatniks, mais sujos e antipáticos, homens e mulheres, do que todos os confrades parisienses. Entretanto a fisionomia do bairro está ameaçada por especulações imobiliárias que estão construindo também aqui novos arranha-céus. Assinei um abaixo-assinado pela salvação do Village que uma jovem ativista me passou numa esquina da Sixth. Nós do Village somos muito ligados ao nosso bairro. Temos até dois jornais só para nós: "The Villager" e "The Village's Voice". [...]

MEU PRIMEIRO "NY TIMES"
DE DOMINGO


Por mais que tivesse lido e ouvido falar, ir ao jornaleiro e receber um maço de papel que você mal consegue carregar nos braços, tudo por US$ 0,25, é algo que te deixa tonto. Entre as várias seções e suplementos, encontro o "Book Review", que estávamos acostumados a pensar que era uma revista à parte, quando é um dos tantos encartes do número dominical. [...]

A BEAT GENERATION

Na festa de Rosset vejo Allen Ginsberg com uma barbona preta nojenta, uma malha branca sob um capote escuro e sapatos tipo tênis. Com ele há um séquito de beatniks ainda mais barbudos e sujos. Quase todos vieram de S. Francisco, inclusive Kerouac, que não veio nesta noite.
Naturalmente os beatniks fazem logo amizade com Arrabal, também ele barbudo (a barba redonda parisiense e a barba inculta dos beat), e o convidam à casa deles para ouvir e recitar versos. Ginsberg vive como marido e mulher com um outro barbudo e gostaria que Arrabal assistisse a seus amplexos entre barbudos. Encontro Arrabal voltando ao hotel espantado e escandalizado porque queriam seduzi-lo. O blouson noir, que veio à América escandalizar, está todo melindrado no primeiro encontro com a vanguarda americana e de repente se revela um pobre rapazinho espanhol que até poucos anos atrás estudava para padre. Ele diz que, na casa deles, os beatniks são muito limpos, têm uma bela casa com geladeira e televisão, vivem como num tranquilo ménage burguês e se vestem de roupas sujas só para sair.


Sofro muito porque esse mercado de ações de Nova York é a primeira coisa que sinto acima de minhas forças, que não conseguirei nunca dominar


UMA ESTRÉIA NA BROADWAY

Hugo Claus foi à estréia de uma nova comédia de Chayefski. Ele conta que, depois do espetáculo, foi jantar no Sardi's, onde jantam todos os autores e o pessoal de teatro. Com grande ansiedade, todos esperam a saída dos jornais, porque uma hora após o espetáculo, por volta de uma hora, já saem o "Times" e o "Herald" com a crítica (escrita na hora, e não sobre os ensaios). Os jornais chegam. Um dos atores lê a crítica em meio ao silêncio geral. Assim que percebem que o crítico elogiou o espetáculo, todos aplaudem, se abraçam, pedem champanhe. O play ficará em cartaz por dois anos; se a crítica fosse ruim, depois de poucos dias a peça sairia de cena. Logo aparecem empresários, agentes, os direitos do espetáculo são vendidos em todo o mundo, gente corre para os telefones, no arco de uma hora os destinos do espetáculo são decididos por anos, com um repentino giro de negócios de milhões.

A SITUAÇÃO

A minha ânsia de descobrir algo de novo que se forma na América saída da Guerra Fria até agora não achou nenhuma pista. Não parece que haja novos grupos tipo aquele newdealista despontando no horizonte, e a atmosfera -se bem que todos reconheçam que melhorou enormemente- não parece prenunciar nenhuma mudança nos grupos dirigentes. O bem-estar continua, e a distensão reforça o statu quo interno. [...]

ESCRITORES JOVENS

Segundo o sr. Dompier, crítico do "Herald Tribune", com quem tive ontem um almoço-entrevista organizado pela Orion, os principais escritores da nova geração -que segundo ele é uma grande geração- são (na ordem): Peter Fiebelman ("A Place without Twilights"), Philip Roth, William Humphrey, Bernard Malamud, Grace Paley, H.E. Humes, Herbert Gold, Harvey Swados [...]

UM PESADELO

Após quatro dias de Nova York, sonho que voltei de repente à Itália. Não lembro o motivo que me fez voltar: por alguma razão, tive vontade de voltar, uma inspiração momentânea, e eis-me de novo na Itália e não sei o que vim fazer. Mas sinto a necessidade urgente de voltar à América. Na Itália ninguém se importa que eu tenha estado na América, nem que eu tenha voltado. Sinto um desespero doido por não estar na América, uma angústia pavorosa, um desejo de América que não se liga a nenhuma imagem particular, mas como se eu tivesse sido arrancado da vida. Nunca senti um desespero tão absoluto. Acordo tremendo: reencontrar-me naquele esquálido quarto do meu primeiro hotel americano é como estar em casa. [...]

WALL STREET

Naturalmente a primeira coisa que quero ver é Wall Street e o Stock Exchange, isto é, a Bolsa de Nova York. Peço uma visita à Merril Lynch, Pierce, Fenner & Smith, que é a maior agência da bolsa. Há jovens guias que acompanham os visitantes e aspirantes a investidor por todos os escritórios, explicando todo o funcionamento. Uma garota graciosa me explica tudo minuciosamente. Não entendo nada, mas mesmo assim estou muito admirado e sofro muito porque esse mercado de ações de Nova York é a primeira coisa que sinto acima de minhas forças, que não conseguirei nunca dominar. [...] Há um monte de propaganda sobre investimentos com opúsculos baseados no princípio de que o dinheiro produz dinheiro, com máximas de grandes filósofos sobre o dinheiro, e essa propaganda do culto ao dinheiro é contínua na América, se por um momento surgir uma geração que não puser o dinheiro acima de tudo, a América vai pelos ares. [...]

O MUSEU GUGGENHEIM

Nestas semanas o assunto obrigatório de todas as conversas nova-iorquinas é o novo museu desenhado por Frank Lloyd Wright para abrigar a coleção Solomon Guggenheim, inaugurado há pouco. Todos o criticam; eu sou um defensor fanático, mas me vejo quase sempre isolado. É uma espécie de torre em espiral, uma rampa contínua de escada sem degraus, com uma cúpula de vidro. [...] De fato a coleção Guggenheim não é uma maravilha, afora o formidável acervo de Kandinski que já tínhamos visto em Roma, com várias obras de segunda categoria (não como o Museum of Modern Art, onde só há obras-primas de tirar o fôlego, ou mesmo as belíssimas salas de pintura moderna do Metropolitan, infelizmente arruinada por um horrendo Dalí que a gente faz fila para ver). Todos no entanto estão de acordo em criticar o exterior do museu Guggenheim, mas até isso me agrada nele: é uma espécie de rosca ou eixo de torno, perfeitamente em harmonia com o interior. [...] COMO FUNCIONA UMA GRANDE LIVRARIA

(De uma conversa com a diretora da Brentano's.) A livraria americana é mais complicada que a nossa pelo fato de que se publica tanta coisa que ninguém do setor de vendas pensa que seja possível acompanhar tudo. A Brentano's é muito bem organizada, uma livraria imensa, com diversos balcões para as novidades de ficção, de história, de poesia e assim por diante, e ainda as seções de paperbacks (que habitualmente não ficam com os livreiros, mas com jornaleiros e as drugstores) e de periódicos e naturalmente de infanto-juvenis, que nunca faltam em nenhuma livraria. [...] As encomendas são recolhidas pelo inspetor da editora todos os meses, como na Itália.
Os vendedores são como vendedores de lojas de gravata e nem sonham em entender de livros. O público não sabe frequentar livrarias; se uma mãe por exemplo lê a resenha de um livro sobre a educação das crianças, talvez telefone ou escreva ao editor, perguntando como deve fazer para comprá-lo, mas não está habituada a ir ao livreiro.

Pode-se fazer um estudo da alma americana observando-se a variedade de formas dos faróis posteriores, que parecem exprimir todos os mitos da sociedade americana


Em suma, nada de interessante; como com a gente. Agora as livrarias estão cheias de pequenas reproduções de estátuas, clássicas ou modernas, famosas, que devem ser o novo achado da reprodução artística em massa, após as repr. de pintura. Tudo coisa feia.

OS FARÓIS POSTERIORES

Pode-se fazer um estudo da alma americana sobretudo observando-se as enormes traseiras dos automóveis e a grande variedade e felicidade de formas dos faróis posteriores, que parecem exprimir todos os mitos da sociedade americana. Além das enormes luzes dos faróis redondos, que frequentemente se vêem entre nós e evocam perseguições de polícia e bandido, há formatos de míssil, de torre de arranha-céu, de olhos de diva e o mais completo catálogo de simbologias freudianas.

JAMES PURDY

[...] A boa literatura da América é clandestina, está nas gavetas de autores desconhecidos, e só por acaso algum deles vem à luz, rompendo a capa de chumbo da produção comercial. Gostaria de fazer discursos sobre o capitalismo e o socialismo, mas Purdy certamente não me entenderia, ninguém aqui sabe ou suspeita da existência do socialismo, o capitalismo envolve e permeia tudo, a antítese a isso é uma esquálida e infantil reivindicação espiritual, sem diretriz nem perspectiva; à diferença da sociedade soviética, em que a unidade totalitária da sociedade é toda baseada sobre a consciência permanente do adversário, da antítese, ao contrário estamos numa estrutura totalitária de tipo medieval, baseada no fato de que não existe nenhuma antítese ou consciência de uma possível antítese a não ser como evasão individualista. De resto, estão todos bem com o sistema das Foundations. A todos pergunto de Sallinger e todos me falam desse caso doloroso do mais importante escritor da geração do meio, que não escreve mais, está internado em um manicômio e as últimas coisas que escreveu são contos para a "New Yorker", um pouco como um Fitzgerald da segunda metade do século. Acho que deveríamos editar rapidamente o outro livro de Sallinger, isto é, as "Nine Stories" (Little Brown, reeditado pela Modern Library). Sallinger já é para mim uma espécie de clássico. Todos têm a possibilidade de dizer que devem fazer um livro e ficar em casa por um ano, gozando de uma bolsa de estudos.[...]

NATAL

Poupo-lhes a descrição da coisa fantasmagórica que é o Natal nesta cidade, porque vocês já leram isso cem mil vezes, e eu não poderia acrescentar muito além da confirmação de que é muito maior do que se possa imaginar, nunca se viu uma festa permear de tal modo a vida de uma cidade; não é mais uma cidade: é Natal. O Natal na civilização do consumo se tornou a grande festa do consumo; o onipresente Santa Claus (Papai Noel) que se vê em carne e osso na soleira de todas as lojas, com o sino na mão, representado em todos os cartazes, em cada vitrina, em cada porta, é o inexorável deus do Consumo que impõe a alegria e o bem-estar a qualquer custo.

A ÚLTIMA PIADA AMERICANA

Qual a diferença entre um otimista e um pessimista? O otimista está estudando russo; o pessimista está estudando chinês.[...]

THE ACTOR'S STUDIO

Nas terças ou sextas, pela manhã, vou frequentemente ao Actor's Studio, que fica numa espécie de barracão na zona do porto, e há sempre muitos atores, alguns até famosos, e diretores que se sentam em círculo, com Lee Strasberg no meio, e todas as vezes os atores encenam um breve play ou um quadro, para estudar alguns problemas, e depois explicam aos colegas os problemas que encontraram na representação, e os outros discutem e criticam, e Strasberg faz seu comentário e muitas vezes dá uma verdadeira aula. Tudo isso é naturalmente gratuito, trata-se de um clube de experiências e discussões entre atores. Também há exercícios inventados por Strasberg que se chamam A Private Moment, ou seja, um ator, sem ter nada escrito, representa um problema pessoal seu, isto é, você vê alguém na cama, ele se ergue lentamente e depois é tomado de desespero, pragueja, tenta dormir mais uma vez, se levanta e vai até a janela, está desesperado, põe um disco, está um pouco menos desesperado etc. Depois discutem etc. É uma coisa muito engraçada, esse Strasberg (que era daquele grupo de teatro dos Thirties em que também atuavam Clifford Odets e companhia) é fixado na idéia da sinceridade interior, que o autor deve "feel", o que me parece uma grande bobagem. [...] Em suma, uma enésima prova da fraqueza de pensamento dos americanos; mas é um lugar onde se respira uma atmosfera limpa, de paixão pelo aperfeiçoamento, e é também um local que simboliza melhor do que qualquer outro as componentes do espírito nova-iorquino: a componente russa (stanislavskiana, nesse caso), chegada aqui por intermédio dos judeus, misturada com a componente freudiana da sinceridade interior, radicada na velha componente protestante de confissão pública, tudo ligado por uma fundamental componente pedagógica anglo-saxã, segundo a qual se acredita que tudo pode ser ensinado. [...]

OS CÉREBROS ELETRÔNICOS

Entrei em contato com a direção da maior fábrica de máquinas calculadoras, a IBM. Public relations de grande classe, receberam-me como se eu fosse o presidente da República e puseram toda a empresa à minha disposição. Quando souberam que eu iria a Washington, organizaram uma visita ao Space Computing Center, ou seja, à estação que recebe todos os dados e faz todos os cálculos do Vanguard e dos vários foguetes. Eu estava todo contente, achava que ia ver coisas quase secretas, mas esse Space Computing Center fica numa vitrina de uma rua central de Washington, feito sobretudo para exposição. [...]

SAUDADE DE NOVA YORK

De Washington não digo nada porque é exatamente tudo aquilo que se imagina quando se lê sobre ela, artificial, tediosa e muito nobre, no fundo posso até dizer que me agrada e não gostaria que ela fosse diferente, mas certamente não fiquei nem três dias e já não aguentava de saudade de Nova York e corri logo de volta para cá.

O CINEMA

Naturalmente nunca vou ao cinema, porque à noite prefiro ver gente, mas o que me espanta é que ninguém vá ao cinema, que eu nunca encontre gente que esteve no cinema ou que fale de filmes. Essa é uma característica de Manhattan, é claro que, ao girar pela América, verei o outro lado da moeda, esta ilha é um caso único no mundo de uma sociedade do nosso tempo em que o cinema não importa nada, muito estranho para quem vem da Itália. [...]

DIÁRIO DO MIDDLE WEST
Chicago, 21 de janeiro

Passei uns dez dias entre Cleveland, Detroit, Chicago e em poucos dias senti mais a América do que nos dois meses passados em Nova York. Mais a América no sentido de ser continuamente levado a dizer: esta, sim, é a América. A imagem mais típica das cidades americanas é a de estradas margeadas por feiras de carros usados, grandes espaços com carros brancos, celestes ou esverdeados, alinhados sob fileiras de bandeirinhas coloridas, cartazes indicando não o preço, mas o desconto (por US$ 100, e até por US$ 50, é possível comprar um carro), e essas feiras às vezes se estendem por quilômetros, com um ar de exposição de cavalos.

ONDE ESTÁ A CIDADE?

A verdade é que você pode andar de carro por horas a fio sem encontrar aquilo que corresponde ao centro da cidade; em lugares como Cleveland a cidade tende a desaparecer, a espalhar-se por uma superfície tão grande quanto a nossa Província [o Piemonte]. Ainda há um downtown, isto é, um centro, mas é só um centro de escritórios. A middle class vive em alamedas de casinhas de dois andares, todas iguais ainda que diferentes, com poucos metros de área verde na frente e uma garagem para três ou quatro carros, a depender do número de adultos na família. Não se pode dar um passo sem carro, porque não há nenhum lugar para onde ir. De tanto em tanto, num cruzamento dessas alamedas, há um shopping center onde são feitas as compras. A middle class nunca sai daí, as crianças crescem sem saber nada sobre o que está fora de um mundo povoado de familiazinhas bem postas como a delas, que devem trocar de carro todo ano, porque, se tiverem um carro do ano passado, ficarão mal perante os vizinhos. O homem vai trabalhar todas as manhãs e volta às cinco e mete uns chinelos e vê a TV. Os bairros pobres são exatamente a mesma coisa, as casinhas são as mesmas, só que, em vez de uma família, elas abrigam duas ou três, e a construção, em geral de madeira, se deteriora em poucos anos. Aquilo que há quatro ou cinco anos era um subúrbio elegante agora passa para a burguesia negra abastada. Os judeus abandonaram o seu bairro pobre porque agora, em Cleveland, estão todos mais ou menos ricos, e suas casinhas agora se tornaram slums [cortiços] negros. As igrejas continuam ali -os edifícios, digo-, as sinagogas dos antigos bairros judeus agora abrigam igrejas batistas dos negros, mas conservam os candelabros nos vitrais e nas portadas. As mudanças de nacionalidade de um bairro a outro dessas supercidades são contínuas: lá onde antes havia italianos agora estão os húngaros e assim por diante. Os porto-riquenhos ainda não chegaram ao Middle West, estão ainda concentrados em Nova York, mas nos últimos anos houve aqui uma imensa imigração mexicana. Mas o fato mais característico é que agora, na última escala da imigração, figuram os migrantes internos, os poor whites da Virginia que vêm trabalhar nas fábricas; e, como eles foram os últimos a chegar, se encontram abaixo dos negros, e o racismo e o ódio que nutrem pelos ianques anti-segregacionistas vão aumentando. [...]

Chicago é a grande e verdadeira cidade americana, produtiva, violenta; aqui as classes se confrontam como exércitos inimigos e sente-se que o sangue encharcou as calçadas


CHICAGO

É a grande e verdadeira cidade americana, produtiva, violenta, tough. Aqui as classes se confrontam como exércitos inimigos, o wealthy people na faixa de edifícios ricos à beira do estupendo lago, e logo em frente o imenso inferno dos bairros pobres. Sente-se que aqui o sangue encharcou as calçadas, os sangues dos mártires de Haymarket (os anarquistas alemães aos quais é dedicado um velho e belíssimo livro ilustrado, obra do chefe da polícia de então), sangue dos acidentes no trabalho com que se construiu a indústria de Chicago, sangue dos gângsteres. [...] Gostaria de ficar mais tempo em Chicago, que merece ser entendida em sua feiúra e beleza, mas o frio lá é terrível, minha amiga local é banal e deselegante (portanto perfeita para Chicago), e eu parto num vôo para a Califórnia.

DIÁRIO DE SAN FRANCISCO
5 de fevereiro de 1960

Todos sabem que San Francisco é feita de colinas, com avenidas muito íngremes e um velho e pitoresco bonde que percorre certas ruas; o barulho rascante da cremalheira sob o piso da estrada é o sinal distintivo da cidade, assim como em Nova York a fumaça que sai das caldeiras da calefação. Moro perto de Chinatown, a maior comunidade chinesa fora da China, agora em plena festa com disparos de morteiro pelo Ano Novo chinês, que é nestes dias (estamos entrando no Year of the Mouse). Os objetos das lojas chinesas são quase todos fabricados no Japão. A colônia japonesa de SF também é muito numerosa, e a cidade mista de amarelos e brancos tem o aspecto de todas as cidades do mundo daqui a 50 ou cem anos. Os índios mexicanos são mais numerosos que os negros. Os italianos tinham um bairro perto de Chinatown, North Beach, mas agora a maior parte se mudou, embora os restaurantes e lojas continuem sendo de italianos; é o bairro beatnik. Os nomes e as inscrições das placas são em italiano: como vocês sabem, os italianos são da Ligúria ou da Toscana, a maior parte setentrionais, portanto a velha geração sabia a língua, ao contrário dos italianos de Nova York, que nunca souberam italiano nem aprenderam o inglês, ficando inarticulados pelos próximos séculos. Os daqui têm sobrenomes que correspondem aos sobrenomes italianos de hoje, ao passo que os sobrenomes dos italianos de NY não existem na Itália, fazem parte de uma Itália que nunca apareceu na história nacional; os rostos também são parecidos aos nossos, ao passo que os italianos de Nova York só se parecem a si mesmos. Nesta espécie de Bairro Latino sino-italiano-beatnik a noite é muito animada, cheia de gente nas ruas, coisa inusitada na América; um expresso-place pôs até cadeiras e mesinhas na calçada, como se estivéssemos em Paris ou Roma. Depois me dou conta de que essa animação é restrita às noites de sexta, sábado e domingo; nos outros dias está tudo apagado e deserto. [...]

UM CLUBE

Será que o segredo de San Francisco é ser uma cidade de aristocratas? Um velho escritor de livros de história local me leva para um almoço no Bohemian Club. É o primeiro clube de tipo inglês que vejo na América. Tudo -as paredes revestidas de madeira, as salas de jogo, os quadros estilo início do século, os retratos de sócios ilustres, a biblioteca- é como nos mais conservadores clubes de Londres, e eu sempre me comovo quando vejo qualquer vestígio de civilização anglo-saxã neste país que é, de longe, o mais distante da Inglaterra que se possa imaginar. E no entanto, como diz o nome, este era 80 anos atrás o clube dos artistas e escritores, cheio de relíquias de Jack London, Ambrose Bierce, Frank Norris e até Stevenson e Kipling, pois ambos viveram em SF, o primeiro por muito tempo, o segundo por alguns meses, e até de Mark Twain, que foi jornalista aqui quando ainda se chamava Samuel Clemens. [...]

FERLINGHETTI

Ferlinghetti (que, como vocês sabem, se chama Ferling, tendo tomado essa desinência por admiração pelos italianos, negros e outros povos vitais e primitivos) é o mais inteligente dos poetas beatniks (o único com um certo sense of humour; suas poesias têm um certo ar de Prévert) e não deixou SF por NY. Mas agora ele está em viagem pelo Chile, portanto perdi o guia mais autorizado aos segredos da cidade, assim como em Chicago perdi a companhia de Algren. Ferlinghetti tem uma livraria, The City Lights, que é a melhor da SFrancisco de vanguarda. [...]

O MONUMENTO

Sempre evito nestas notas qualquer descrição de paisagens, monumentos ou pontos turísticos da cidade. Mas preciso registrar isto. Passeando em um parque nas vizinhanças da Golden Gate, de repente nos deparamos com uma imensa construção neoclássica, toda em colunas, que é espelhada por um laguinho, uma coisa de proporções gigantescas; está em ruínas, com plantas que crescem por dentro, e essa imensa ruína é toda feita de papelão, trabalhado com extremo cuidado. É um efeito surrealista, de pesadelo, nem Borges poderia imaginar nada semelhante. Trata-se do Palace of Fine Arts, construído para a exposição pan-americana de 1915. Os guias turísticos, insensíveis ao grotesco, o descrevem como uma das mais belas arquiteturas neoclássicas da América -e talvez seja até verdade. Há sobretudo o sonho de cultura de uma América milionária em 1915, e o edifício em seu estado atual bem se presta a ilustrar a definição -não me lembro mais de quem- de uma América que passa diretamente da barbárie à decadência. Agora que o edifício está caindo aos pedaços, os san-franciscanos, que o apreciam muito, decidiram reconstruí-lo em pedra, com todas as métopas esculpidas em mármore. O Estado da Califórnia entra com US$ 5 milhões, a Prefeitura, com outros 5, a Câmara de Comércio, com mais 5, e 5 serão recolhidos entre a população. [...]

PUBLIC RELATIONS

Só agora leio o texto que mr. C., public relations man, me deu sobre sua agência. Estou no ônibus que me leva ao seu vinhedo no Vale da Lua (de jacklondoniana memória), onde ele me convidou a passar o domingo. Imaginem com que anfitrião eu fui topar: aqui está ele, fotografado com o cardeal Spellman, his good friend, que o cumprimenta por sua missão no Departamento de Estado para salvar o Brasil do comunismo (após a ação de public relations de mr. C., within a year the tide had turned against the communists). Em outra passagem, o texto define as public relations (que o staff de C. desenvolve sob ordem de várias corporações e ocasionalmente do Dep. de Estado): "Um ramo das relações públicas deve lidar com a criação de notícias e conseguir que sejam publicadas. Um outro ramo faz o oposto, ao impedir ou reduzir o impacto de notícias desfavoráveis" [original em inglês]. Estamos diante da face mais desavergonhada do americanismo, com uma ingenuidade em seu jogo de cartas abertas que só é comparável a certa ingenuidade propagandística soviética. [...]

UMA FESTA BEATNIK

Fui convidado a uma festa beatnik. Nestes dias houve batidas da polícia para combater o tráfico de maconha, e há sempre alguém de guarda na porta.
Houve também comícios beatnik na praça, para protestar contra os "sistemas fascistas" e reivindicar a liberação das drogas. Na casa, que não sei de quem é, só se bebe vinho, e péssimo, não há cadeiras, ninguém dança, há percussionistas negros, mas não há lugar, muitas garotas bonitas, mas as mais belas são lésbicas, e além disso não há mistura, não se consegue conversar; o indefectível drogado, que nas festas nova-iorquinas semelhantes é uma pessoa decente e limpa, aqui é imundo, carcomido e perambula propondo picos de heroína ou benzedrina. Conclusão: melhor as festas "burguesas" -pelo menos se bebe melhor (me esqueci de dizer que ali no meio também estava Graham Greene, que agora está em SFrancisco, mas nem nos vimos). [...]

RESUMO DE SAN FRANCISCO

Esperava tanto de SF, me falaram tanto dela, que agora que passei 15 dias aqui (inclusive esperando combinar com alguns colegas uma viagem de carro), agora que parto, bem, no fundo não posso dizer que a conheço muito mais do que antes, que fui capaz de compreendê-la de fato, e no fundo talvez ela nem me interesse muito. A vida é monótona, não conheci gente excepcional (exceto Kenneth Rexroth), não tive amores (não que a cidade não tenha suas jóias, simplesmente foi assim, talvez eu esteja entrando na parábola descendente). Desde que deixei Nova York só ouço falar mal de Nova York, um pouco no mesmo espírito com que nós falamos mal de Roma (é claro, tudo é diferente), e no entanto tudo é acertado, mas Nova York é talvez o único lugar da América onde nos sentimos no centro, e não na periferia, na província, por isso ainda prefiro o seu horror a uma beleza privilegiada, sua servidão às liberdades que continuam locais, privilegiadas e particularistas, que não constituem antíteses. [...]


Fui convidado a uma festa beatnik; muitas garotas bonitas, mas as mais belas são lésbicas, e além disso não há mistura, não se consegue conversar; conclusão: melhor as festas "burguesas"


DIÁRIO DA CALIFÓRNIA
Los Angeles, 20 de fevereiro

Não é verdade o que se diz sempre que o único meio de ver a América é percorrê-la de carro. Além de ser impossível por suas dimensões enormes, é de um tédio mortal. Poucos trechos de auto-estrada bastam para dar uma idéia do que é a América média, das pequenas e minúsculas cidades, dos intermináveis vilarejos à beira das highways, uma visão de uma esqualidez desesperadora, com todas essas construções baixas, postos de gasolina ou outras lojas que parecem postos, com as mesmas cores nas placas, e você então entende que 95% do país é de uma absoluta falta de beleza, de respiro, de individualidade, em suma, de uma platitude sem saída. [...] Mas a coisa mais tediosa em viajar de carro é passar a noite numa dessas pequenas cidades anônimas onde não há absolutamente nada para fazer exceto constatar que o tédio da pequena cidade americana é igual ou talvez pior do que tudo o que já se disse sobre ele. A América mantém suas promessas: há o bar com a parede carregada de troféus de caça, cervos, renas; os farmers nos fundos das lojas, com chapéu de cowboy, jogam cartas; a prostituta gorda está seduzindo o salesman; o bêbado tenta puxar briga. Essa esqualidez não é exclusiva da pequena cidade anônima, mas também está presente nos famosos centros turísticos como Monterrey e Carmel. [...]

LOS ANGELES

Desde que cheguei à América ouço dizer que Los Angeles é horrível, que adorarei SFrancisco, mas odiarei Los Angeles, e isso me convenceu de que ela me agradaria. De fato, chego e já me deixo tomar pelo entusiasmo: esta sim é a cidade americana, a cidade impossível de tão gigantesca, e para mim, que só estou bem nas cidades enormes, é isso que importa. Ela é tão grande como se entre Milão e Turim houvesse uma só cidade, que chega no norte até Como e, no sul, até Vercelli. Mas o bom é que no meio, entre um bairro e outro (que se chamam cities e são imensas extensões de vilas e vilinhas), há enormes montanhas completamente desertas, que você precisa atravessar para ir de um ponto a outro da cidade, cheias de cervos e mountain lions, ou seja, de pumas, e do lado do mar, penínsulas e praias entre as mais belas do mundo. Afora isso, é uma cidade absolutamente vulgar, uniforme, sem pretensões de ter monumentos ou pontos característicos. [...] Mas depois de poucos dias percebo que a vida aqui é impossível, mais impossível do que em qualquer outro lugar da América, e para o visitante ocasional (que geralmente pode usufruir mais uma cidade do que um residente) chega a ser desesperadora. As enormes distâncias fazem com que a vida social seja praticamente impossível, exceto entre os moradores de Beverly Hills, entre os moradores de Santa Monica, entre os de Pasadena etc.; ou seja, é a mesma vida de província, só que dourada. [...]

PERIFERIA

Ao ver como vivem os professores deste paraíso terrestre, tanto os bons quanto os medíocres, ao ver os extraordinários meios que a universidade oferece à pesquisa, logo pensamos que tudo isso só pode ser pago com a morte da alma, e aqui até as almas robustas não tardariam a definhar. Cidade feita de mil periferias, Los Angeles é também a periferia do mundo, em tudo, até no cinema. Eu, que sempre tenho a mania de morar no centro das cidades, me hospedo em um hotel de downtown, mas aqui downtown é somente um centro de escritórios, ninguém vive aqui, e os amigos do departamento de italiano da UCLA (Universidade de Califórnia, em Los Angeles] me convencem a ficar num motel de Westwood, onde estarei mais perto deles. Eu me sinto tão bem nos motéis que passaria a vida neles, além disso este é um motel mórmon, em frente a um templo mórmon absurdamente grande, exclusivo aos velhos da seita, perto de um lindo bairro de japoneses (que trabalham cortando grama nos jardins particulares dos bairros vizinhos) e mexicanos. [...]

DO CINEMA, ENTÃO

Arthur Miller, que estava aqui quando saí de Nova York, agora não está mais, me diz sua secretária, e assim perco a ocasião de encontrar a mulher mais famosa da América (mas espero alcançá-los em NY); dos contatos com o mundo cinematográfico, apenas tediosas visitas aos estúdios de Walt Disney e da Fox, com os habituais vilarejos western construídos minuciosamente [...]. Em suma, tudo isso é para lhes dizer que infelizmente não fui convidado a nenhuma festa cheia de divas famosas, diretores e produtores. Aqui não é como em Nova York, aqui as festas importantes são preparadas com dois meses de antecedência, devido à dispersão geral. Além disso, desde que já não existem os Chaplins, a vida aqui não é mais a mesma etc. [...]

DIÁRIO DO SOUTH WEST

LAS VEGAS


Chego a Las Vegas de avião, tarde da noite de sexta. Na cidade toda feita de hotéis e motéis não há nenhum quarto livre. O feriado de três dias (segunda, 22 de fevereiro, é o Washington's Birthday) fez com que todos os lugares estivessem reservados com um mês de antecedência, não só por gente de Los Angeles, mas também de todas as partes do país, porque uma temporada na capital do jogo é obrigatória para cada americano, como uma viagem a Meca. [...]
O jogo segue ininterruptamente, 24 horas por dia e praticamente em todos os lugares, porque cada local público é um cassino e só há locais públicos; e, onde não há roletas ou mesas de bacará, há filas e filas daquelas famosas maquininhas a manivela, do tempo dos pioneiros, sobre as quais há filas de gente agitada e ansiosa, como operários numa fábrica (observação de Piovene que capta perfeitamente a idéia). Como vocês sabem, Nevada é o único Estado em que o jogo de azar é permitido, as prostitutas legalizadas, o divórcio possível após seis semanas de convivência, o casamento possível a qualquer momento, basta você jurar que não é casado.
Chego, subo num táxi com um senhor de Washington, empregado da Navy e fanático por shows, e o taxi driver nos leva por todos os motéis, mas em toda a parte se lê o letreiro luminoso No vacancy, e assim ele termina por nos alugar um quarto de sua casa, uma habitação modesta, que divido com o funcionário de Washington, e estou feliz pela rara ocasião de poder ver de perto a vida do americano médio. É uma pessoa séria e comedida, joga pouquíssimo e com prudência, evita sair com garotas que aqui custariam os olhos da cara, mas sua máxima aspiração é ver o maior número de [teatro de] revistas possível, veio de avião justamente para isso, passa praticamente três noites em claro para ver três espetáculos por noite, e sabemos como são chatos os shows tipo Folies Bergères, e de cada lugar manda um programa aos amigos e colegas de escritório para que eles vejam quantas coisas bonitas ele viu. [...] Devo dizer que Las Vegas me agrada -gosto de verdade. Nada a ver com as cidades-cassino européias; aliás, completamente diferentes, por sua natureza plebéia, western, nada a ver com lugares como Pigalle. Aqui há uma grande saúde física, uma sociedade produtiva, endinheirada e vulgar, que de fato se diverte coletivamente, entre um avião e outro, e aqui se sente que o pioneiro, o caçador de ouro etc. deram forma a esta absurda cidade do deserto. [...]


Em Las Vegas se sente que os pioneiros deram forma a esta absurda cidade do deserto


TEXAS

Como é possível criar uma imagem do Texas? É o que continuo a me perguntar nestes últimos meses, convencido de que este Estado tão peculiar em espírito e em vida econômica é na realidade difícil de capturar numa visita tão breve quanto a que eu pretendia dedicar-lhe; parando numa grande cidade, eu teria visto uma grande cidade como tantas outras, e não o "Texas", ao passo que, parando numa pequena cidade do campo, eu perderia muitos outros aspectos. Então, ao decidir ficar em Houston, que é a maior cidade do (ex) maior Estado dos EUA, eu não esperava ter fortes impressões locais. No entanto chego durante o Fat Stock Show, a exposição de gado, quando há os maiores rodeios de toda a América. Chego e a cidade está cheia de cowboys vindos de todo o Texas e de outros Estados pecuários; todos se vestem de cowboy, mesmo os que não o são -velhos, mulheres, crianças-, todo o espírito texano é exposto de um modo que torna este lugar ostensivamente diverso do resto dos EUA. Sobre o famoso autonomismo do Texas não é preciso fazer uma enquete especial: muitos carros trazem a inscrição Built in Texas by Texans, e as bandeiras texanas superam nitidamente as federais. Tem-se a impressão de um país uniformizado, com famílias burguesas que marcham compactas, todas de chapelões e jaquetas com franjas, uma ostentação da própria praticidade e antiintelectualismo que se transforma em mitologia, em fanatismo, numa belicosidade alarmante. [...]

DIÁRIO DO SOUTH

Contrariando o conselho de todos, chego a Nova Orleans sem nenhuma reserva de hotel, segunda, 29, em pleno Mardi Gras [...]. Mas no dia seguinte, que é o Mardi Gras propriamente dito, quando toda a cidade e mais meio milhão de pessoas vindas de fora enlouquecem por 24 horas, vejo que se trata de algo muito maior e exclusivo, mesmo em relação aos festejos europeus, porque o protagonista é o público, que exibe uma grande imaginação na criação de máscaras e na vitalidade. [...] O frio é intenso, mas muita gente está praticamente nua; pena que as meninas mais bonitas sejam os homossexuais em trajes femininos: Nova Orleans é um grande centro de travestis, os homossexuais vêm de todas as regiões do país, e o Carnaval é a ocasião ideal para exibirem sua particular genialidade nas fantasias. [...]

MONTGOMERY, ALABAMA
6 de março

Este é um dia que não esquecerei nunca. Vi o que é o racismo, o racismo de massa, aceitado como uma das regras fundamentais da sociedade. Assisti a um dos primeiros episódios de luta de massa dos negros do Sul -e foi uma derrota. Não sei se vocês sabem que após decênios de total imobilidade começaram precisamente aqui, no pior Estado segregacionista, as manifestações de negros, algumas inclusive vitoriosas, sob a liderança de Martin Luther King, ministro da Igreja Batista, defensor da não-violência. Por isso vim a Montgomery, onde estou desde anteontem, mas não esperava encontrar-me em dias cruciais de luta. [...] As calçadas estavam repletas de brancos, em grande parte de poor whites, que são os piores racistas, prontos a usar as mãos, jovens violentos que se moviam em bandos (organizados de forma semiclandestina na Ku Klux Klan), mas também pacatos burgueses, famílias com crianças, todos olhando e gritando insultos e ofensas contra os negros refugiados na igreja, e naturalmente dezenas de fotógrafos amadores que registravam os acontecimentos dominicais tão insólitos. A atitude da multidão variava do escárnio, como se vissem macacos que clamam por direitos civis (derrisão sincera, de gente que jamais supôs que os negros pudessem ter essa idéia), à atitude de ódio e provocação por parte dos jovens. Aqui e ali, sobre as calçadas, também há grupinhos de negros isolados, homens e mulheres vestidos com a domingueira, que olham parados e calados, compostos. [...] Então começa a cena mais penosa: os negros saem de fininho da igreja, parte envereda por uma rua lateral que não vejo, mas que a polícia deve ter isolado dos brancos, outra parte desce em grupinhos pela Dexter Avenue, pelas calçadas tomadas pela canalha branca; vão silenciosos, de cabeça erguida, passando entre o coro de insultos e gritos, gestos ameaçadores e obscenos. A cada ofensa ou provocação lançada por um branco, todos os outros, homens e mulheres, explodem em gargalhadas, às vezes com uma insistência quase histérica, mas às vezes também com um ar bonachão, e estes para mim são os mais terríveis, esse absoluto racismo complacente. O mais admirável são as garotas negras, que descem em grupos de duas ou três, enquanto os estúpidos cospem no chão diante de seus pés, param no meio da calçada, obrigando-as a passar em ziguezague, dão uivos, e as meninas negras continuam a passar entre eles, nunca se movem de modo a parecer que querem evitá-los, nunca mudam de rumo quando os vêem no caminho, como se estivessem habituadas a essas cenas desde o nascimento. [...] Essas lutas têm sido guiadas por um jovem político negro (que, como todos os outros, é oficialmente um ministro da Igreja Batista), Luther King, que não tem nenhum pensamento político ou social em particular, apenas a igualdade de direitos dos negros. Aliás, não há dúvida de que os negros, uma vez conquistada a igualdade, serão mais conservadores que os outros, como ocorreu com outras minorias ex-pobres, irlandesas e italianas; entretanto esse espírito de luta é uma coisa única na América de hoje, e é importante que os estudantes negros também participem [...].

9.3.60

E agora?
Poderia ir à Carolina do Norte, para onde fui convidado pela Universidade de Chapel Hill.
Ou voltar ao Oeste, ir ao Colorado, onde me esperam muitos convites. [...]
No entanto decido voltar a Nova York para passar lá os dois meses que ainda me separam do retorno à Europa, porque Nova York, cidade sem raízes, é a única onde posso pensar que tenho raízes, no fundo dois meses de viagem são suficientes, e Nova York é o único lugar onde posso fazer de conta que sou residente. [...]

Tradução de Maurício Santana Dias.
Copyright: Herdeiros de Italo Calvino, 2003.


Texto Anterior: A visão mais espetacular da Terra
Próximo Texto: + autores: O instante decisivo forjado
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.