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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA ABDICOU DA TENSÃO ENTRE O ACONTECIMENTO SINGULAR E A MARCA HISTÓRICA, COMO NOS TRABALHOS DE CARTIER-BRESSON, E SE VOLTOU PARA A BUSCA DAS IDENTIDADES INDIVIDUAIS E COLETIVAS

O INSTANTE DECISIVO FoRJADO

François Guillot - 25.abr.2003/France Presse
Visitante observa exposição de fotos de Cartier-Bresson que termina hoje na Biblioteca Nacional da França (Paris)


Jacques Rancière

Paris celebra nesse momento dois fotógrafos de certo modo já convertidos em instituições nacionais, Pierre Henri-Lartigue (1894-1986) e Henri Cartier-Bresson (1908). A mostra dedicada ao primeiro assume a feição que ele sempre deu a sua obra fotográfica: expõe o álbum pessoal de um amador. A nostalgia por ela provocada é a de um estilo de vida elegante, marcado pela naturalidade e pela despreocupação. Não é o caso da mostra Cartier-Bresson. Nela, a nostalgia não diz respeito a um mundo de prazeres aristocráticos, mas se refere à própria fotografia como aliança entre uma arte e um modo de ver o mundo. Em que consiste exatamente essa felicidade perdida da fotografia? A arte de Cartier-Bresson costuma ser definida como a captura do "instante decisivo", e, seguindo o ritual, os comentários da exposição não deixam de mencioná-lo. Mas o que se entende por "instante decisivo"? Aparentemente é o encontro de certa capacidade técnica com um sonho. Tal capacidade técnica é sem dúvida herdeira da norma pictórica clássica. Na época clássica, esperava-se que o pintor, sobretudo o pintor especializado em temas históricos, registrasse o "momento pregnante" da ação, aquele no qual o sentido se esclarecia e a índole das personagens se afirmava. O sonho é o dos tempos românticos: deter o instante que passa, fixar o brilho fugidio dos momentos felizes, de uma felicidade íntima, oposta às ações espetaculares representadas pelos pintores acadêmicos.

Imagens mais íntimas
A felicidade da fotografia, vinda após a da pintura impressionista, residiu em sua aptidão para transferir a glória antiga do momento pregnante aos instantes alegres ou simplesmente singulares da vida cotidiana por ela flagrados. Residiu, portanto, em elevar a pintura de gênero ao patamar da pintura histórica. Essa vocação da pintura foi muito tempo contrariada por razões simples. Enquanto os pintores impressionistas aviltavam a grande arte procurando captar os efeitos de luz sobre os divertimentos populares, os fotógrafos buscavam, ao contrário, nobilitar sua desprezada técnica imitando a grande composição e as poses ou as imprecisões artísticas. Na virada dos anos 1920/1930 principalmente, o destino da fotografia como arte ligou-se a sua vocação de registrar qualquer acontecimento insignificante, de conferir a aura da história ao comum da vida e imprimir a marca do cotidiano aos grandes acontecimentos históricos. A arte de Cartier-Bresson testemunha esse momento privilegiado em que a fotografia tirou partido dessa relação de conversibilidade mútua entre o cotidiano e o histórico. Ícones exemplares disso são as conhecidas imagens dos tranquilos primeiros dias de folga pagos, em 1936, à beira do rio Marne. Contudo sua arte se torna mais íntima nas imagens menos obviamente carregadas de sentido social.

Sombra dramática
Observemos, por exemplo, a foto tirada em 1953, na cidade de Salerno, no sul da Itália, na hora em que o calor esvazia as ruas. A sombra negra de uma parede lateral devora toda a frente da imagem. Na parede clara do fundo, destaca-se a silhueta de um menininho cujo rosto, à contraluz, fica indiscernível. Atrás dele, na faixa iluminada pelo sol, uma carroça abandonada. A imagem não tem nenhum significado histórico. Mas a dramaticidade da sombra e a solidão da silhueta infantil bastam para dar à inofensiva carroça um aspecto de canhão, para impregnar essa imagem do cotidiano indiferente da sombra do fascismo italiano e da Guerra Civil Espanhola. Vejamos simetricamente as fotos tiradas em 1949, quando as tropas revolucionárias chegavam a Nanquim. Uma multidão passa na rua sob estandartes que representam as massas revolucionárias em marcha. A mobilidade das atitudes e dos olhares voltados para várias direções destoa da rigidez dos ícones revolucionários, em marcha simulada no sentido oposto àquele em que se desloca a multidão. A imagem se presta a uma dupla leitura. Podemos opor a realidade vivida por essa multidão heteróclita aos ícones de cores berrantes do comunismo. Mas também podemos ver no desacordo entre realidade e imagem o sinal positivo de que são pessoas de carne e osso que levam esses ícones e constroem um comunismo tão contraditório e complexo quanto a vida. Nas duas hipóteses, a foto é bem-sucedida. No registro de um acontecimento histórico no qual triunfa uma ideologia organizada, insere-se a pequena distância reveladora da irredutibilidade da vida aos acontecimentos mais espetaculares e significativos.

Registro tríplice
Em outras fotos, a distância entre significação histórica e atitude individual dos corpos se torna mais sensível: vemos um homem aparentemente bem vestido dormindo sobre um tapete de jornais jogados no chão, aos pés de compatriotas apinhados em Trafalgar Square, no centro de Londres, para assistir à passagem do cortejo da coroação de Jorge 6º, em 1938. Uma menina brinca de escalar o Muro de Berlim enquanto outra apanha sabe Deus o quê na calçada. O instante dito decisivo é antes um instante qualquer em que os automatismos e improvisações cotidianas se distanciam das decisões dos poderes, das corroborações das doutrinas ou dos desfiles das hierarquias. A época áurea da fotografia foi aquela na qual ela pôde abolir a oposição entre arte e documento, apresentando como sua força o registro do episódio, registro tríplice, porém: ao mesmo tempo teatro abstrato de formas recortadas em luz e sombra; testemunho das grandes mudanças ou dos grandes impasses e conflitos de um período; o evidenciar de uma distância, de um insólito hiato entre tais manifestações históricas e o modo como os indivíduos as vivem. A fotografia viveu essa tensão entre os contrastes de luz e a marca da história, entre a marca da história e o jogo que a perturba e por isso mesmo a autentica. Formou assim um olhar novo, propício tanto a registrar os signos coletivamente relevantes quanto a perscrutar o pequeno acidente que transtorna sua legibilidade. Essa característica incentivou o consórcio entre sensibilidade social, provocação surrealista e senso estético. Hoje a inocência dessa aliança parece remota. Desde aquela época, perdemos o grande livro da história que nos permitia ler os acontecimentos da vida coletiva nos gestos dos corpos. Perdemos a própria disponibilidade dessas figuras anônimas que emprestavam seu corpo à lente espectadora do mundo e borravam com sua opacidade o jogo das significações. Como lembraram alguns recentemente, no lugar desses corpos, a um só tempo estranhos e familiares, que tanto levavam quanto borravam as marcas da história, existem hoje identidades. Sejam identidades de grupo, esses tipos de novo muito utilizados pelo cinema, para conquistar "públicos-alvo"; sejam identidades individuais, cada vez mais assimiladas pela lei a uma propriedade de si, a salvo do voyeurismo fotográfico. Aos poucos, a rua e seus encontros imprevistos entre o singular e o histórico vão sendo roubados ao fotógrafo. Cada vez mais este se contenta em dispor diante da câmera modelos, inventando para eles pequenas cenas, quando não toma a si mesmo por objeto. Em Paris, por exemplo, o Centro Nacional da Fotografia exibe agora, com o título de "Fábulas da Identidade", uma coleção contemporânea de retratos. A maioria das fotos expostas sem dúvida pretende pôr em questão essa "identidade" tão ruidosamente celebrada pelo universo midiático. Ora o rosto desaparece, escondido pela coluna, encoberto pelos braços de quem se debruça exausto sobre a mesa, voltado para o espelho que não reflete sua imagem ou então a reflete desfocada em contraste com a nitidez dos objetos: o retraimento do rosto se contrapõe à legibilidade social do cenário. Ora a lente se aproxima da face a ponto de reduzi-la a um olho, a uma boca, a ponto até mesmo de torná-la inumana, convertê-la numa paisagem molecular indistinta.

Véus e máscaras
Muitas vezes o próprio fotógrafo ou fotógrafa põe véus, máscaras que apagam ou modificam sua identidade, transformando-se em imagem publicitária ou estatueta pré-colombiana. E houve quem colasse umas sobre as outras dezenas de fotos de identidade cuidadosamente recortadas, de modo que só restasse o contorno emoldurando -o vazio da imagem. Podem questionar a identidade. Esta, no entanto, auxiliada por essa negação, ocupou o lugar antes reservado ao registro das alteridades indecisas.
Duas das obras presentes na mostra dão uma perfeita idéia da distância percorrida em meio século. Entre os "clássicos" da coleção figura a mais famosa das fotos de Robert Doisneau: a dos moleques parisienses que brincam de tocar a campainha dos prédios. Mais adiante, uma parede inteira conta uma história de rua: o auto de infração e as fotografias de Sophie Calle feitas por um detetive particular, contratado, sem o saber, pela própria fotógrafa, para realizar essa "espionagem". A travessura do menino, criado solto pelas ruas, é flagrada pelo fotógrafo das ruas. Inteiramente oposto a isso é o roteiro da fotógrafa seguida pelo detetive, roteiro por ela construído como equivalência absoluta entre a realidade surpreendida pelo observador e a história inventada.
A fotografia passou a simbolizar o novo status de uma arte até então cúmplice de seu contrário, a vida qualquer e incalculável do acaso. Hoje ela assinala exemplarmente o fim dessa aliança, o retorno do artista a um mundo próprio, o mundo da autocontemplação e dos modelos que posam, das cenas arquitetadas e das histórias forjadas.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Bluma Waddington Vilar.


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