São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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+ 3 questões Sobre heróis

1. Por que um país precisa de heróis?
2. Qual o papel do marketing e da mídia no surgimento deles?
3. Quem é o grande herói brasileiro?


André Sant'Anna responde

1.
A própria existência de países já é uma coisa meio estranha. Não vejo sentido algum no fato de os humanos demarcarem territórios e obrigarem todos que estão dentro deles a viver sob leis comuns. Mas já que a vida, a existência, a arte, a morte, o povo e as criancinhas subnutridas da Etiópia existem, cercados pelas fronteiras nacionais e que, de vez em quando, um maluco qualquer resolve abrir mão do próprio bem-estar, da própria felicidade, para lutar sinceramente, até as últimas consequências por seus compatriotas, os heróis servem para realizar aquilo que os outros não têm saco para fazer. Um herói, dos legítimos mesmo, é, antes de mais nada, um santo. E sua principal missão é ser adorado e fazer com que os outros tenham a ilusão de que há algo realmente importante nessa vidinha besta, além da própria vidinha besta (que até é bem divertida).

2.
O marketing e a mídia são máquinas de repetição que não fazem surgir coisa nenhuma. O máximo que conseguem é colocar os humanos para repetir aquilo que foi repetido milhões de vezes. Um herói de verdade se faz sozinho, por pura vocação. Tem que ser um Cristo fazendo esguichar o próprio sangue em nome do amor ao próximo ou, no mínimo, um Che Guevara, em plena crise de asma, libertando o povo cubano.

3.
Pelé. Embora falte ao craque a porção de sofrimento necessária ao currículo dos grandes heróis, ele conseguiu ser uma das únicas coisas importantes produzidas no Brasil desde a sua inauguração, fazendo do futebol a maior expressão cultural do país. Se ainda existe algum respeito internacional pelos brasileiros, é por causa do futebol. Também Glauber Rocha, que inclusive sofreu um bocado pela pátria, mas a fome não permitiu que o pessoal compreendesse que a revolução é uma "eztétika" -aquela do Pelé dando o chapéu no zagueiro sueco em 58 e fazendo aquele golaço.

Soninha responde

1.
Não sei se um país precisa de heróis, mas as pessoas certamente os procuram. Heróis podem ser uma espécie de presença divina na terra: onipresentes/oniscientes/onipotentes. Talvez a diferença entre os brasileiros e os outros seja o fato de precisarmos de um herói novo a toda hora.
A nossa necessidade de heróis talvez se alimente de outros mitos, como o do "povo pacífico e cordial". Tão "cordial" que uma ovada desrespeitosa equivale a uma "ameaça à estabilidade do governo democrático". Outros países precisam de bem mais do que isso para o sistema tremer. Acreditando que somos pacíficos e indefesos, precisamos de alguém que nos salve. Envergonhados de nossa condição, vemos um herói naquele que consegue não mudar a situação, mas projetar, apesar dela, uma bela imagem de nós: Ayrton Senna, Xuxa, Gustavo Kuerten... O país campeão de operações plásticas valoriza tanto uma boa imagem que atribuiu ao ídolo o papel de herói. Não nos salva, mas redime.

2.
A televisão tem muito mais poder para construir heróis e vilões do que outros meios, porque tem música e câmara lenta. Parece banal, mas não é, se concordarmos que nossos heróis têm, em primeiro lugar, imagem. A mídia tem um mesmo padrão viciado: retratar nossa Patópolis como um inferno completo. Se o inferno fosse toda a verdade, como poderiam os mesmos meios falar calmamente da moda verão, do casamento e divórcio da estrela da novela?
O mundo é pior do que a mídia diz naquilo que a mídia não diz: na desigualdade, na injustiça, na ineficiência cruel do serviço público. Você pode passar (e passa) muitos dias da sua vida sem ver um assalto ou homicídio, mesmo que more nos bairros mais violentos da cidade. Mas não deixa de ver mortes violentas todo dia na TV. Tem mais medo de sair de casa e menos vontade de fazer alguma coisa do que deveria . Se soubéssemos que somos mais capazes e responsáveis pelo que há no mundo do que nos fazem crer, procuraríamos menos salvadores.

3.
Não temos. Em uma pesquisa de opinião, cravaríamos Ayrton Senna na cabeça. Eu votaria no Betinho, pela sobrevivência à violenta perseguição política sem qualquer traço de revanche; pela fidelidade obstinada às suas crenças; pela superação sobre-humana do sofrimento físico em nome de uma causa. Mas era o anti-herói, feinho e bem-humorado e com uma única imunidade: à glória.

QUEM SÃO

André Sant'Anna
É escritor, autor dos livros "Sexo" (7 Letras) e "Amor" (Du Bolso).

Soninha
É apresentadora de TV e colunista de esportes na Folha.


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