São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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A coreógrafa Pina Bausch fala sobre seu método de trabalho, comenta suas relações com os bailarinos e relembra o amigo Federico Fellini
Dançar! Dançar! Dançar!

Fim de maio em Budapeste. Junho em Istambul, Hamburgo e Hannover; depois Paris, por duas semanas. Na sequência, Avignon, Wuppertal e Sydney. Com uma agenda dessas, não é fácil encontrar Pina Bausch. O fato de ela ser notoriamente avessa a entrevistas também não ajuda.
Foram mais de dois meses tentando. Afinal, deu certo: ficou marcado um encontro em Paris, no café ao lado do Théâtre de la Ville, onde ela estava em cartaz com o espetáculo romano, "O Dido".
Deu errado. Naquele dia, foi decretada uma greve geral dos controladores aéreos. Nenhum avião entrava na França. Não houve jeito. Só achamos um horário disponível dois dias depois. A conversa aconteceu numa sala atrás do palco, durante o espetáculo.
Pina Bausch é discreta e gentil. Fala olhando nos olhos, mexe as mãos magras, fuma. Sua voz não chega a ser memorável, mas o jeito de falar, sim. É uma presença controlada e intensa, que não esconde fulgores de entusiasmo e emoção. Tem seu tempo próprio. A sensação é menos de entrevista do que de encontro: um evento, uma diferença humana no curso homogêneo dos dias.
Na entrevista, exclusiva para o Mais!, ela fala de sua relação com os bailarinos, comenta seu método de trabalho, lembra do amigo Fellini e do professor Kurt Jooss. Na despedida, dá dois beijos brasileiros, antes de voltar para o outro mundo, que a gente espreita assombrado nas coxias.
(ARTHUR NESTROVSKI E INÊS BOGÉA)

Dez anos atrás, ao chegar aos 50, a senhora declarou que se sentia "apenas começando". Pelo que se tem visto, a senhora vai continuar começando para sempre. Mas agora, aos 60, há algum sentido novo para esse começo?
Ah, sim. Com esse trabalho recente nas cidades, cada projeto, para mim, é uma grande novidade. Eu me sinto aprendendo coisas novas todos os dias. São relações muito fortes que a gente cria em cada lugar. A vida está aí: e você sempre recomeçando. O que você quer fazer, o que gostaria de ter, o que sente vontade de dizer... e de não dizer... nada disso tem fim.

O que sente vontade de dizer... e de não dizer?
Especialmente não dizer! A maior parte do tempo eu não digo, muito mais do que digo.

Todos os críticos sabem bem disso: suas peças, por um lado, incitam, mas, por outro, bloqueiam a interpretação. Alguma coisa dessa natureza faz parte do seu trabalho com os próprios bailarinos?
O que há de reflexão, nesse caso, está ligado à performance. Nem sempre se sabe ou se consegue exprimir o que se quer. Na dança, o que se vai dizer não está sempre no que se vai dizer.

Isto não é prerrogativa da dança. O mesmo se dá com as palavras.
Com certeza. Nossos desejos... se dão. Nas palavras, na dança. Na música. E, quando a gente trabalha, nem sempre tem toda a clareza de onde está indo. Não gosto muito de falar sobre isso. Não consigo. Mas se trata de achar as relações entre as coisas: entre o movimento e a música e o contexto geral da cena. O que cada um faz pode não ser relevante fora do contexto. Mas o contexto que foi criado faz toda a diferença.

As formas de trabalho da sua companhia exigem grande entrega pessoal dos bailarinos. Dessa perspectiva, já se falou muito das relações deles com a senhora e do quanto isso tem significado para cada um. Mas como tem sido para a senhora a relação com eles, ao longo desses quase 30 anos?
Cada relação é completamente diferente da outra. Mas eles são quase como uma família, para mim. Tenho uma relação de amor com cada um, com tudo o que isso implica. Os relacionamentos vão crescendo. Eu acabo conhecendo os parentes e amigos de muitos bailarinos. Há dias em que a gente se entende perfeitamente; há outros em que a gente se odeia.
Nosso trabalho acontece desse jeito. O que os bailarinos me trazem é muito rico e é meu ponto de partida. No começo, não tenho nenhuma idéia do que vou fazer. Aliás, muitas vezes não sei muito bem, nem na véspera, como o trabalho vai ser.

Regina Advento (bailarina brasileira que dança na companhia) comentou que às vezes os bailarinos não têm um único ensaio geral do novo trabalho até o dia da estréia. Só laboratórios individuais e marcação de cenas.
É porque estamos sempre atrasados! Só isso. Não há um motivo especial, uma técnica especial. Não sei como explicar o que faço... Só fazendo.
Muitas vezes, o tempo é curto mesmo. E não existe nenhum esboço prévio em que se apoiar. Nem roteiro, nem música, nem cenário. Nada. E, nesse tempo restrito, temos de criar tudo do nada. O que é complicado. Há, ainda, um tempo de espera, até as coisas começarem a se encaixar. E eu luto para não cair no conhecido. Acontece, então, de ficar muita coisa em suspenso até o último minuto. Assim como acontece às vezes de a gente chegar na véspera do espetáculo, no primeiro ensaio geral, e eu pensar: "Que desastre. Impossível. Temos de trocar isso e aquilo e mais aquilo. E a roupa. E a música".

Quem escolhe a música dos espetáculos?
Quem escolhe a música sou eu, mas tenho dois assistentes maravilhosos, que saem pesquisando material para cada espetáculo. Procuram em lojas, encontram pessoas, vasculham coleções. Os bailarinos também trazem o que acham interessante. Amigos que a gente vai fazendo em cada país nos ajudam.
Tudo isso é um acervo, no qual conto encontrar depois da criação de cada cena, nunca antes, aquilo que me parece mais certo. E, às vezes, como disse, tudo muda: uma, duas, até três vezes.

As canções, em particular, têm um papel importante em muitos espetáculos. A senhora poderia falar sobre o uso dessas canções e a sua relação com o movimento dos bailarinos?
Sim... (não diz nada por algum tempo).

Vamos ver se a senhora concorda. As canções aparecem de tal modo que aquilo que têm de trivial, até de ridículo, vem à tona. Mas não só isso. Também sugerem algo de afirmativo. De entendimento, de proximidade. O uso de movimentos banais pelos bailarinos seria algo análogo?
Sim... (não diz nada por algum tempo). Acho que se poderia ver as coisas assim.

Quantos espetáculos a companhia apresenta por temporada?
Dez, 12 espetáculos diferentes. Acho que neste ano estamos com 14.

Por que tantos ao mesmo tempo?
Porque de outro modo vamos perdê-los! Não existe registro dos espetáculos. Não há um roteiro geral escrito. Não são filmados. Portanto, se não os encenarmos, vamos acabar perdendo um, depois outro e assim por diante. É preciso ficar encenando o maior número de peças.
Nosso repertório inclui desde peças antigas (como "Café Müller" e "A Sagração da Primavera") até as mais recentes. No meio do caminho, outras tantas foram abandonadas. Sem montar os espetáculos, não há como mantê-los. O tipo de espetáculo que nós fazemos só pode ser preservado no palco.

A senhora já tem alguma idéia sobre a peça brasileira?
Nenhuma! (risos) Em cada lugar a que chegamos, estamos abertos a tudo. Novas experiências, novas informações. Nunca tenho qualquer idéia prévia.

Ficam em São Paulo por duas semanas. E depois?
Depois Salvador, por uns dias. E depois um pequeno grupo (não a companhia inteira) continua viajando comigo, por alguns outros lugares.

Muita gente no Brasil, que nunca teve ocasião de assistir a seus espetáculos, a conhece mesmo assim, como a atriz que faz a princesa cega no filme "... E La Nave Va", de Fellini. Que memórias tem dele?
Ah... Fellini. O que posso dizer de Fellini?
Eu o conheci em Roma. Estávamos fazendo um espetáculo e ele veio nos ver. Depois apareceu nos bastidores. Sabíamos que estava à procura de atores para um novo filme e eu achei que ele estivesse querendo falar com alguma das bailarinas. Quando me dei conta de que tinha vindo atrás de mim, não quis acreditar. Fiquei sem saber o que dizer.
Não podia acreditar e, a princípio, também não queria aceitar o convite. As filmagens estavam marcadas para um período que não era nada bom, porque coincidiam com a elaboração de um novo espetáculo. Mas a companhia inteira me incentivou. Achavam que seria uma oportunidade única, que eu não poderia desprezar etc.
Fellini e eu acabamos nos tornando muito amigos. Gostava muito, muito dele.

E as filmagens, propriamente, como foram?
Para mim, um prazer; e muito interessantes também. Adorava ver o jeito como Fellini ia tentando isso e aquilo, sofrendo para chegar ao que queria, mas sempre muito gentil, muito cordial. Anos depois do filme, eu continuava visitando Fellini, sempre que estava em Roma. Ia vê-lo trabalhar nos estúdios da Cinecittà. E ele também vinha sempre ver nossos espetáculos.
Tenho guardados três desenhos que ele me deu. Você sabe que Fellini estava sempre rabiscando e fazia muitos desenhos antes das filmagens. Quase caricaturas. Entre esses desenhos, havia esboçado a princesa cega do filme. E, quando me mostrou, fiquei pasma: ele havia virtualmente me desenhado. Tinha feito um desenho de mim, antes de me conhecer. Só então entendi por que havia me procurado nos camarins, naquela primeira vez, em Roma.
Continuamos sempre amigos, por muitos anos. Até o fim.

A senhora foi muito próxima também de seu professor, Kurt Jooss, não é verdade?
Kurt Jooss era uma figura muito calorosa. Os alunos o chamavam de "Papa" Jooss e ele era mesmo um papai para todos nós.
Sua escola era muito especial. Não se aprendia só dança, mas música, literatura, teatro, pantomima. Tínhamos aulas também com fotógrafos e designers. Todas as artes juntas. Isso faz muita diferença para quem está em formação. E com certeza teve importância para mim.
Ao redor de "Papa" Jooss, nós éramos como uma grande família. Para mim, especialmente, porque cheguei a morar na casa dele por um tempo. Eu costumava dizer que tinha dois "papas": o meu pai e "Papa" Jooss.
(Conversa interrompida por uma multidão gritando na rua e barulho de fogos.) O que está acontecendo?

A França marcou um gol. Empatou com Portugal.
Talvez o jogo (da Eurocopa) tenha acabado.

Não, não. Falta muito.
Mas eles não param de gritar.

Nem vão parar, por um bom tempo. Você vai ver mais disso, no Brasil.
É mais alto do que uma tourada.

Já que estamos falando de países... Até que ponto a senhora diria que o seu trabalho é "alemão"? Faz sentido usar essa palavra?
Nós temos bailarinos de todas as partes do mundo... Na escola em que me formei, havia gente de toda parte do mundo...

Não estamos falando da companhia, mas do trabalho em si.
Acho que essa é a pergunta errada.

Mas isso já é uma boa resposta.
Naturalmente temos a preocupação de pensar nossa relação com os lugares. Reconheço que, para outras pessoas, em outros contextos, a questão nacional pode ser relevante. Mas não para nós. O contexto é outro. São as pessoas, não os países, que nos interessam. E as pessoas são pessoas em qualquer lugar.

O que gostaria de ter feito, na dança, que ainda não fez?
Dançar! Dançar bem mais do que consigo.

A senhora dançou um solo em "Danzón" , que a companhia apresentou há poucos meses na Brooklyn Academy of Music (em Nova York).
Sim, sim; eu ainda danço em algumas peças. Mas é pouco. Eu adoro dançar, mas quase nunca tenho tempo para me preparar à altura. Além da criação dos espetáculos, passo muito tempo no escritório, resolvendo assuntos da companhia. Gostaria de poder dançar mais.

A senhora tem um companheiro da vida inteira, sobre quem nunca fala. O que pode nos dizer sobre o cigarro?
Ah... essa é uma pergunta difícil. Na verdade, passamos as duas últimas noites só falando sobre isso. Que o cigarro faz mal etc. Eu sei que não faz bem, mas... Matthias (o diretor-geral da companhia, que está presente na sala) não aguenta mais ouvir falar do assunto! É melhor deixar para depois.

Muito bem. Então só uma última pergunta: "Für was kann Samba alles gut sein"? (Em que o samba pode ser bom para tudo?)
"Für alles". Para tudo. (Ela pára um segundo. Depois explode, rindo.) "Für alles"!


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