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Sexualidade antes e depois de Freud
RICARDO GOLDENBERG
especial para a Folha
Adão conhecia Eva antes do pecado original? A pergunta não era
apenas acadêmica para os religiosos do século 17, porque da resposta dependia o status da sexualidade humana enquanto tal, e o
tratamento que lhe seria dispensado pela igreja. Existe sexualidade
inocente ou ela é um dos efeitos
colaterais do fruto indigesto da árvore proibida? O que parece inegável, em todo caso, é o vínculo
entre sexo e saber. E bem desde o
começo, aliás, como a expressão
"conhecimento carnal" designa
suficientemente.
Roy Porter e Mikulás Teich organizaram para a Cambridge University Press "Conhecimento Sexual, Ciência Sexual", um livro
que trata da história desta relação
entre saber e sexo. Mais precisamente, da história dos discursos
que versam sobre a sexualidade.
Porque nem sempre se falou e escreveu sobre sexo do mesmo modo. As mudanças que foram acontecendo entre o que se podia dizer
ou não em público sobre assuntos
de alcova dependiam tanto do estado da ciência -o que se sabia a
respeito do erotismo- quanto
dos costumes e das práticas, que
por sua vez eram afetados pelo
que disso estava permitido saber.
Não por acaso esta obra está dividida em antes e depois de Freud,
demarcação que revela per se até
que ponto o freudismo subverteu
de modo decisivo, fundamental,
as relações existentes entre o saber
e o sexo.
Trata-se de um trabalho universitário digno de nota, para o qual
foram convocados pesquisadores
ligados aos diversos campos da
história: da sociedade, dos costumes, da sexualidade, das idéias, da
ciência, da medicina, da biologia,
da psiquiatria etc. O livro se centra
sobre as mudanças de atitude decorrentes das transformações do
conhecimento do erótico. A construção e incidência dos preconceitos sobre as condutas e sobre o
que pode ou deve ensinar-se a respeito. Mas os ensaios se ocupam
também da evolução do conhecimento sexual em si -desde o que
acontece quando um corpus de
saber como o teológico se apropria do tema (as Sagradas Escrituras recolhem a opinião de Deus
sobre o assunto), até a criação do
que passou a se considerar uma
ciência sobre o sexual, "Sexualwissenschaft", a sexologia.
Este livro inclui artigos como o
de Londa Schiebinger, por exemplo, que discute a opção de Lineu
ao nos inserir na sua taxonomia
como mamíferos e mostra a influência que um certo desejo de
devolver as mulheres -que estavam reivindicando posições masculinas na sociedade- ao seu devido lugar no lar teve na escolha
das mamas como traço distintivo
da classe a que pertencem os humanos. Ou como o de Angus
McLaren sobre o dr. Cream, ginecologista vitoriano dedicado a
moralizar a vida erótica das famílias envenenando, com estricnina,
as mulheres que o procuravam para abortar. Ou, ainda, como "O
Médico Pode Aconselhar o Intercurso Extraconjugal?", no qual
Andreas Hill debate a abstinência
sexual como questão médica no
século 19.
São nove trabalhos dedicados ao
período anterior a Freud, e oito ao
posterior. Todos dignos de menção. Lamento que o espaço de que
disponho me permita referir-me
apenas a um ou outro, a título de
ilustração. Não posso contudo encerrar esta resenha sem mencionar a análise feita por Roy Porter
sobre o impacto da obra impressa
sobre as práticas sexuais. A masturbação seria um hábito provocado pela leitura, que estimula a
imaginação. E a incriminada não
era a literatura pornográfica, mas
as novas traduções do latim das
obras médicas, que punham o saber científico sobre sexo ao alcance de todos. Elas seriam as responsáveis pelo onanismo como problema no século 18.
Ou seja, como desde a biologia, a
fisiologia ou as psicologias tentou-se a resposta a "o que sempre
você quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar". Aqui se
aplica, mais do que em outros
campos do conhecimento, a diferença aristotélica entre saber teórico e prático. Ou alguém duvida
que dissertar sobre sexo não é
igual a fazê-lo?
A OBRA
Conhecimento Sexual, Ciência Sexual - Organização de Roy Porter e Mikulás Teich. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Cambridge University Press/Ed. da Unesp (av. Rio Branco, 1.210, CEP 01206-904, SP, tel. 011/223-7088). 449 págs. R$ 42,00.
Ricardo Goldenberg é psicanalista, autor de
"Ensaio sobre a Moral de Freud" (Ed. Ágalma).
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