São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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Sexualidade antes e depois de Freud

RICARDO GOLDENBERG
especial para a Folha

Adão conhecia Eva antes do pecado original? A pergunta não era apenas acadêmica para os religiosos do século 17, porque da resposta dependia o status da sexualidade humana enquanto tal, e o tratamento que lhe seria dispensado pela igreja. Existe sexualidade inocente ou ela é um dos efeitos colaterais do fruto indigesto da árvore proibida? O que parece inegável, em todo caso, é o vínculo entre sexo e saber. E bem desde o começo, aliás, como a expressão "conhecimento carnal" designa suficientemente.
Roy Porter e Mikulás Teich organizaram para a Cambridge University Press "Conhecimento Sexual, Ciência Sexual", um livro que trata da história desta relação entre saber e sexo. Mais precisamente, da história dos discursos que versam sobre a sexualidade. Porque nem sempre se falou e escreveu sobre sexo do mesmo modo. As mudanças que foram acontecendo entre o que se podia dizer ou não em público sobre assuntos de alcova dependiam tanto do estado da ciência -o que se sabia a respeito do erotismo- quanto dos costumes e das práticas, que por sua vez eram afetados pelo que disso estava permitido saber. Não por acaso esta obra está dividida em antes e depois de Freud, demarcação que revela per se até que ponto o freudismo subverteu de modo decisivo, fundamental, as relações existentes entre o saber e o sexo.
Trata-se de um trabalho universitário digno de nota, para o qual foram convocados pesquisadores ligados aos diversos campos da história: da sociedade, dos costumes, da sexualidade, das idéias, da ciência, da medicina, da biologia, da psiquiatria etc. O livro se centra sobre as mudanças de atitude decorrentes das transformações do conhecimento do erótico. A construção e incidência dos preconceitos sobre as condutas e sobre o que pode ou deve ensinar-se a respeito. Mas os ensaios se ocupam também da evolução do conhecimento sexual em si -desde o que acontece quando um corpus de saber como o teológico se apropria do tema (as Sagradas Escrituras recolhem a opinião de Deus sobre o assunto), até a criação do que passou a se considerar uma ciência sobre o sexual, "Sexualwissenschaft", a sexologia.
Este livro inclui artigos como o de Londa Schiebinger, por exemplo, que discute a opção de Lineu ao nos inserir na sua taxonomia como mamíferos e mostra a influência que um certo desejo de devolver as mulheres -que estavam reivindicando posições masculinas na sociedade- ao seu devido lugar no lar teve na escolha das mamas como traço distintivo da classe a que pertencem os humanos. Ou como o de Angus McLaren sobre o dr. Cream, ginecologista vitoriano dedicado a moralizar a vida erótica das famílias envenenando, com estricnina, as mulheres que o procuravam para abortar. Ou, ainda, como "O Médico Pode Aconselhar o Intercurso Extraconjugal?", no qual Andreas Hill debate a abstinência sexual como questão médica no século 19.
São nove trabalhos dedicados ao período anterior a Freud, e oito ao posterior. Todos dignos de menção. Lamento que o espaço de que disponho me permita referir-me apenas a um ou outro, a título de ilustração. Não posso contudo encerrar esta resenha sem mencionar a análise feita por Roy Porter sobre o impacto da obra impressa sobre as práticas sexuais. A masturbação seria um hábito provocado pela leitura, que estimula a imaginação. E a incriminada não era a literatura pornográfica, mas as novas traduções do latim das obras médicas, que punham o saber científico sobre sexo ao alcance de todos. Elas seriam as responsáveis pelo onanismo como problema no século 18.
Ou seja, como desde a biologia, a fisiologia ou as psicologias tentou-se a resposta a "o que sempre você quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar". Aqui se aplica, mais do que em outros campos do conhecimento, a diferença aristotélica entre saber teórico e prático. Ou alguém duvida que dissertar sobre sexo não é igual a fazê-lo?

A OBRA

Conhecimento Sexual, Ciência Sexual - Organização de Roy Porter e Mikulás Teich. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Cambridge University Press/Ed. da Unesp (av. Rio Branco, 1.210, CEP 01206-904, SP, tel. 011/223-7088). 449 págs. R$ 42,00.


Ricardo Goldenberg é psicanalista, autor de "Ensaio sobre a Moral de Freud" (Ed. Ágalma).



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