São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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IMPORTADO
As fontes imaginárias de um dicionário

DAVID WALTON
especial para o "NYT Book Review"

Uma das mais estranhas histórias literárias modernas é o encontro em 1896 de James Murray, editor do Oxford English Dictionary (OED), com o dr. W.C. Minor, que durante 20 anos foi um de seus mais prolíficos e confiáveis colaboradores. Relatada pela primeira vez em 1915 pelo jornalista americano Hayden Church, já teve diversas versões.
Murray convidou Minor para visitar Oxford várias vezes, sem êxito; então pegou um trem e viajou 90 quilômetros até a aldeia de Crowthorne, em Berkshire. Lá o esperava uma charrete, que o levou a uma austera mansão de tijolos. Conduzido a um escritório forrado de livros no segundo andar, Murray apresentou-se ao homem que, no seu entender, era Minor. "Na verdade sou o diretor do Asilo de Insanos Broadmoor Crimball", foi a resposta desenxabida. "O dr. Minor está aqui, sim, mas é um dos internos. É nosso paciente há mais de 20 anos, o residente mais antigo".
Essa ficção "divertida e romântica", como Simon Winchester apropriadamente a descreve em sua escrupulosa e elegante narrativa "The Professor and the Madman" (O Professor e o Louco), vem a ser mais complexa e estranha, como ocorre em geral com a realidade, e "apenas ligeiramente menos romântica" do que a trama que a antecedeu.
William Chester Minor, nascido em 1834 numa antiga e estimada família de Connecticut, viveu até 1920 e só os últimos de seus 48 anos em asilos do governo. Ele ingressou no Exército federalista como cirurgião quatro dias antes de Gettysburgh e ficou mentalmente perturbado na batalha de Wilderness, porque teria sido obrigado a marcar um "D" no rosto de um imigrante irlandês que desertara. Morando em Londres em 1872, ele sofria alucinações em que militantes da fraternidade irlandesa Fenian entravam em seu quarto à noite para envenená-lo.
A pensão militar de Minor lhe permitia viver confortavelmente em Broadmoor, e ele e sua família sustentaram a viúva do homem que matou. Ela passou a visitá-lo em Broadmoor e trazia de Londres os livros que ele lhe encomendava. Em certo ponto no início da década de 1880, provavelmente num dos pacotes de livros, Minor encontrou um folheto impresso de Murray pedindo voluntários a buscar citações para o que era chamado de "o grande dicionário". O princípio condutor do OED era ilustrar cada palavra com meia dúzia de citações sobre as diversas nuances de seu significado e os usos mais antigos.
Minor, que tinha tempo de sobra e precisava de alguma tarefa digna e redentora, criou um sistema próprio de reunir e organizar as citações, suprindo as necessidades mais urgentes do dicionário com milhares de contribuições. Quando Murray soube de suas verdadeiras circunstâncias, tornou-se seu amigo, visitando-o com frequência em Broadmoor.
A imaginativa versão de Winchester sobre essas duas vidas "curiosamente entrelaçadas e inextricáveis" é emoldurada pela história do surgimento do OED e a própria história da feitura de um dicionário, tarefa mais desordenada do que se poderia crer.
Shakespeare não usou dicionários, lembra-nos Winchester. Os primeiros dicionários ingleses apareceram mais ou menos na época de sua morte e incluíam apenas palavras "difíceis" ou "especiais". Os primeiros não eram organizados em ordem alfabética, mas por assunto. "A língua inglesa era falada e escrita, mas na época de Shakespeare não era definida, não era fixa. Era como o ar -um fato consumado, o meio que envolvia e definia todos os britânicos. Mas o que era exatamente, quais os seus componentes, ninguém sabia."
É irônico que o OED, hoje venerado como "o último bastião da cultura inglesa, um derradeiro e valoroso eco do maior dos impérios modernos", demonstraria por meio de seu próprio método até que ponto o inglês é indefinido, em constante mutação. Ao rever os últimos e tristes anos de Minor, Winchester diz que também existe uma cruel ironia no fato de que o tratamento atual benevolente e a terapia com drogas poderiam ter eliminado seus sintomas. "Mas nesse caso", acrescenta, "talvez ele não sentisse inclinação ou capacidade para realizar seu trabalho para o dr. Murray".

A OBRA

The Professor and the Madman - Simon Winchester. Harper Collins. 242 págs.US$ 22.


Onde encomendar
Livros em inglês podem ser adquiridos na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) ou, pela Internet, na Amazon Books (http://www.amazon.com).


David Walton é contista, autor de "Wainting in Line" (Ardis).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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