São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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PONTO DE FUGA

O caçador de Deus

JORGE COLI
especial para a Folha

Como filmar o Mal? Não os horrores deste mundo, as dores humanas, as grandes tragédias, mas o Mal metafísico e inevitável que se infiltra em cada gesto, em cada respiração? Como filmar a Graça, a Redenção que surge misteriosamente, além das intenções e das ações? Pela subtração: elimina-se o drama, a trama, o espetacular e os efeitos -quaisquer efeitos calculados, sejam os do estilo, da imagem, do texto ou do som. Por que filmar o Mal e a Graça? Porque a cinematografia -a escrita da imagem em movimento- permite certas percepções, certas intuições do invisível.
Robert Bresson é o mais singular dos cineastas. Sua fé religiosa, um catolicismo francês, severo e jansenista, não se separa de seus filmes. Mas ele não quer exprimir sentimentos religiosos ou catequizar: sua câmera não é militante. Ela vai ao encalço de superiores essências e o cineasta torna-se um estranho caçador silencioso daquilo que está por trás das imagens. A elipse torna-se instrumento crucial. O rigor ascético -atos e objetos nus, como assinalou Paulo Emilio- resulta, porém, em filmes paradoxalmente vibrantes, da mais intensa sensibilidade, emanada por personagens perdidos em percursos equivocados. Uma certa inocência aflora, habitada por estranho e secreto humor. "O cinema, quando é verdadeiro, comove, e tão fortemente, que é possível comover com quase nada...", disse Bresson. Um ciclo está trazendo sete de seus treze filmes para algumas cidades brasileiras.

UMBIGO - A estratégia é uma balela, os soldados não são heróis. Nas batalhas, os homens acreditam dirigir os acontecimentos, quando, em verdade, são vítimas. A guerra é absurdo e incoerência, mas o cinema, no oposto de Stendhal e de Tolstói, sempre lhe conferiu razões dramáticas e éticas. Spielberg, em seu "Soldado Ryan", instaura o caos. É o massacre dos soldados rasos. Os personagens confundem-se, as individualidades importam pouco dentro da fúria desencadeada. Diante do horror, a pálida bandeira americana, o sacrifício feito para que os homens de bem sobrevivam são pretextos insuficientes. Spielberg está sempre falando da perda do lar, onde a paz residiu. Atirar-se no mundo é enfrentar crueldades injustas e ET quer voltar para casa. A guerra -vide "O Império do Sol", "Ryan"- é o extremo do exílio na distância e na barbárie.

TENTAÇÕES - Bresson, o asceta, e Hollywood, a frívola, parecem contraditórios. Mas Paul Schrader transformou "Pickpocket" em "American Gigolo". É curioso ouvir a frase que conclui "Pickpocket" e concentra a esperança bressoniana na Redenção -"Que caminhos tive que percorrer até chegar junto a ti"- ressurgir no filme de Schrader, conferindo-lhe uma inflexão espiritual. Schrader foi o roteirista de "A Última Tentação de Cristo", dirigido por Scorsese, este certamente o maior herdeiro das inquietações metafísicas de Bresson. Scorsese busca a Transcendência e procura também desencavar o Mal que se encontra no mundo. Seu filme "O Cabo do Medo" poderia legitimamente tomar o título de um outro filme de Bresson: "O Diabo, Provavelmente".

WC - Escatologia politicamente incorreta, "Quem Vai Ficar com Mary", dos irmãos Farrelly, é uma delícia deslavada.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com



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