São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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A VASTA PERIFERIA


POEMA CENTRAL PARA A TRADIÇÃO LITERÁRIA BRASILEIRA, "A MÁQUINA DO MUNDO" ATUALIZA O DIÁLOGO COM DANTE, CAMÕES E OS ILUMINISTAS ATRAVÉS DO FORTE REALISMO QUE PERCORRE TODA A OBRA DO POETA MINEIRO


 "O incompreensível é que o mundo seja compreensível"
Albert Einstein

O "Claro Enigma" venceu aproximadamente meio século de interpretações dissonantes. Foi desqualificado como tônica decadente, sobretudo para aqueles que acompanhavam o poeta "participante", marcado pela coletânea de 1945, "A Rosa do Povo", e, ao mesmo tempo, recebido como acontecimento ímpar de literatura. A frase de epígrafe: "Les événements m'ennuient" [Os acontecimentos me entediam", de Paul Valéry, havia alcançado o grau de relevo máximo, lançando luzes para uma leitura sombria do livro. Depois de meio século de crítica, no entanto, o "susto" parece estar resolvido, e o "Claro Enigma" determina, assim como a coletânea imediatamente sucessiva, "Fazendeiro do Ar", um dos mais altos pontos da poética drummondiana. É mais ou menos nessa direção que o crítico José Guilherme Merquior caminha, chamando esse momento de "quarteto metafísico" ("Verso Universo em Drummond", ed. José Olympio, 1975), considerado como a segunda maturidade do poeta (a primeira corresponde à poesia meridiana de "A Rosa do Povo"). É o período em que a poesia despede-se, por assim dizer, dos poemas de temática histórica, chamados "dramas do cotidiano", meditando outra espécie de problema. Do ponto de vista do conjunto da obra, tudo se passa como se fôssemos de um grau maior de "comprometimento com a subjetividade do poeta", segundo a expressão de Luiz Costa Lima, à "eticização" do eu na poesia meridiana, segundo a expressão de José Guilherme Merquior, até chegar ao fechamento do horizonte visual no "Claro Enigma", ou seja, à obstrução do foco sociológico e à opacidade do mundo. Em outras palavras, é como se Drummond caminhasse do "humor grotesco" (Merquior) de "Alguma Poesia" ao humor cada vez menos imediato e mais intelectualizado das coletâneas seguintes, "Brejo das Almas" e sobretudo "Sentimento do Mundo", até alcançar a tonalidade ética dos poemas urbanos dos anos 40 (Drummond se fixa no Rio de Janeiro em 1934). O fechamento dos canais de participação abertos pela poesia ligada ao povo, o crescimento do enigma e o hermetismo da pedra interceptante são formas correlatas à impossibilidade de dissolução dos conflitos entre a poesia e o mundo. Do ponto de vista da conjuntura histórica, a crise do marxismo, a ditadura Vargas e a Guerra Fria, assim como o fim de regimes totalitários, proporcionam o estado de desengano e o pessimismo do "Claro Enigma".

Uma nova ordem de literatura
Diante desse panorama, a primeira conclusão importante é que, se examinarmos, por contraste, a lírica dos anos 40 e a dos anos 50, a poesia dita social ou participante dos ideais comunitários e o classicismo dominante do pós-guerra, veremos que a transformação completa dos caracteres histórico-culturais permite a gênese de uma nova ordem de literatura. Na verdade, é o contexto de (extrema) crise que move a poesia do "Claro Enigma", mas em sentido perfeitamente atípico. Os acontecimentos que "calaram o nosso maior poeta público", como gostam de enfatizar os intérpretes -e que estão pressupostos na epígrafe do livro-, podem ser esboçados na forma de um duplo movimento: primeiro, fuga de estetização da arte em sentido estrito, como era de esperar da arte pela arte, da dita "torre de marfim", ou outras formas de manifestação artística facilmente criticáveis como entorpecentes do espírito crítico; e, segundo, a incompatibilidade com uma literatura vinculada ou diretamente comprometida com o político. De saída, portanto, o "Claro Enigma" tem a virtude de levar a experiência da linguagem ao estado de máxima independência, sem desfazer por completo o sentimento do mundo. Não podemos esquecer que a recusa e a dificuldade de comunicação entre o poeta e o povo, se atingem o apogeu na década de 50, são vencidas pela forma privilegiada de expressão do silêncio -sem sobreposição dos planos privado e público, isto é, sem desproporção entre o eu poético e o mundo-, de modo que o "Claro Enigma" é a forma negativa de resultado expressivo ou, se quisermos, a forma positiva de silêncio do mundo. Importa menos a circunscrição dos domínios individual e coletivo do que a percepção ainda bruta, não mapeada pela natureza das idéias, que está na raiz da melancolia que gerou a sensação de dúvida e o tom esquivo, alegorias do "sinal de menos" -conforme o "Poema-Orelha" de "A Vida Passada a Limpo". A transformação do poeta público em poeta precário é a própria metamorfose da expressão poética nos limites do que é dizível. Mais ainda, é a forma de trazer para a experiência da linguagem -mesmo que essa linguagem se dê sobre índices negativos- a "precária síntese", isto é, a forma impura de silêncio, que está na origem de expressões como "Claro Enigma", "A Impureza do Branco", "A Vida [Não" Passada a Limpo", formas ambíguas de composição do mundo.

Poesia irônica, social e metafísica
A segunda conclusão importante e ligada à primeira diz respeito ao formalismo clássico dos anos 50.
Em estudo recente sobre a recepção crítica do livro, Vagner Camilo ("Drummond - Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas", editora Ateliê, 2001), além de fazer um recorte estratégico das disputas que marcaram o terreno crítico desde Antonio Candido, delimita o que se poderia chamar de "viragem histórica na fortuna crítica do poeta", segundo Bento Prado Jr., ou seja, o golpe decisivo sobre a tripartição clássica da poesia drummondiana: irônica, social e metafísica. José Guilherme Merquior refere-se ao livro de 1951 como "clássico moderno". Por classicismo há que entender a abstração do real, que vem a ser o ponto forte de Drummond nesse período. Tal abstração, se mostra independência artística e descompromisso ideológico, embora tivesse lugar privilegiado somente após o realismo de "A Rosa do Povo", é uma forma de "concentração sobre o essencial para fazer face à crise da cultura", segundo Vagner Camilo. Nesse caso, o contraponto de Drummond pode ser perfeitamente reconhecido na literatura mundial contemporânea. Como nota Merquior: Mallarmé, Kafka, Rilke, entre outros, estão na mesma via de percepção do mundo bruto. Perseguindo o "flâneur" baudelairiano, Walter Benjamin já havia dado relevo ao "spleen" característico da metrópole moderna. A impossibilidade de alcançar a totalidade obriga o poeta a um estado de concentração máxima para a produção de algo mínimo: a consciência apurada da perda, em primeiro lugar, que configura a ótica trágica e o que poderíamos chamar de "explicação órfica da terra", segundo a expressão de Mallarmé, mas também a procura da palavra tautegórica, isto é, de uma linguagem que diga as próprias coisas. Mas vamos ao coração do diamante. A "Epifania da Máquina" tem sido a tônica principal da leitura crítica do poema. Merquior, Affonso Romano de Sant'Anna e Alfredo Bosi reconhecem a "paternidade" do termo em Camões, pelo menos, mas é em Romano de Sant'Anna que essa análise é mais regressiva, por assim dizer, alcançando os poemas de Homero. Embora a pertinência dessa análise tenha razões para continuar, vamos caminhar na direção de uma interpretação que vai além da epifania da "máquina cósmica", "objeto apocalíptico", segundo José Guilherme Merquior.

O sentido da máquina
Nosso ponto de partida será uma nota de Floyd Matson, encontrada em Romano de Sant'Anna: "Numa noite de novembro de 1619, Descartes teve a experiência de um sonho premonitório em que (como lhe pareceu em reflexões posteriores) o Espírito da Verdade abria a seus olhos o tesouro de todas as ciências, nas quais "o espírito humano não desempenhava nenhum papel", e revelava ao "filósofo" a fundação da ciência admirável ("mirabilis scientiae fundamenta')". É nessa direção que Romano de Sant'Anna menciona uma interessantíssima provocação do filósofo: "Inebriado por sua visão e sucesso, desafia: Dê-me extensão e movimento que construirei o universo". Se tomarmos o núcleo da idéia de Natureza mecanicista cartesiana, não será esse mesmo o sentido da máquina, da mecânica, do mecanismo que movimenta o mundo? Lei mecânica da natureza, sim, mas em última análise idéia, vontade inscrita no pensamento de Deus. A máquina é o mecanismo (cada vez mais metafórico) de Deus. Mas Deus também será, mais uma vez, cada vez mais metafórico, isto é, irá de entidade supra-sensível a operador lógico-metafísico. É mais ou menos essa operação que se repetirá em filosofias diferentes do absoluto. A maturidade de Drummond no "Claro Enigma" recusa, ao mesmo tempo, a certeza universal de Descartes, as filosofias da consciência e o Absoluto de Hegel, postas em risco com a famosa "crise dos princípios ou dos fundamentos" (antes mecânicos, agora transcendentais) da razão. Em vez de epifania, ou melhor, além de epifania ("epí": posição superior; "phainés": o que se mostra), propomos a odisséia da razão, pensada desde o pontapé do "cogito". Se com ele o pensamento é levado à concepção pura de si mesmo e, em seguida, à condição suficiente da verdade, a epifania tem lugar assegurado enquanto grau mais alto de evidência abaixo de Deus, no caso de Camões, mas apta à forma ideada da consciência (que implica a posição transcendental do mundo), no cenário posterior. Mas, lembremos, estamos no espaço idealizado pelo poema, assim como a Máquina é ideal, isto é, sobrevinda como em sonho. Sonho da razão. No entanto o mundo parece exigir outras formas de tratamento, entre as quais a ambiguidade (e a ironia). O pensamento drummondiano nesse poema, em todo caso, tem um duplo benefício: a consciência da crise, que pontua a falha no coração do diamante, e por isso o ceticismo de Drummond se faz tão resistente, isto é, apto a não cair na tentação do entendimento, que opera um princípio de razão suficiente e, em seguida, a recusa de uma significação do mundo pela via puramente mecânica e não corpórea do pensamento. Em outras palavras, decisão (de recusa) e crise, a um só tempo.

Uma precária intimidade
Depois dessa rememoração da gênese da poesia de Drummond, a partir da descrição da história de sua recepção, mas sobretudo depois de seu último parágrafo que já abre a porta para a compreensão de "A Máquina do Mundo" [leia a íntegra do poema na contracapa", torna-se mais fácil mergulhar nesse poema extraordinário. Estabeleçamos, de início, uma espécie de esquema sumaríssimo do itinerário do poeta, resumindo caricaturalmente o que já foi dito (ou deixando de lado os necessários matizes introduzidos nos parágrafos anteriores). Lembrando-nos de alguns versos célebres, de diferentes momentos de sua carreira, marquemos três momentos da relação entre "meu coração" e "o Mundo": 1. ... Vasto mundo, mais vasto é meu coração; 2. O mundo é maior que meu coração; 3. Meu coração desdenha ver, em transparência, a estrutura do vasto mundo, de que é apenas parte insignificante.
Num primeiro momento, a singularidade de meu coração triunfa sobre a "prosa do mundo". Num segundo, meu coração, descobrindo seus limites (e seu narcisismo), abre-se para um fora, ao mesmo tempo social e cosmológico. Finalmente, meu coração recua para sua precária intimidade, sem esquecer o horizonte mais amplo que o engloba (ética e metafisicamente), e desdenha algo como uma verdade absoluta.
Um poema jamais é um filosofema, como observou Eliot, em seus ensaios sobre os "metaphysical poets". Mas aqui, certamente, estamos diante de um poema metafísico por excelência. Como compreendê-lo, sem confundir poesia e filosofia? Como situar-nos nesse limite indefinido que separa esses gêneros literários, não por essência (basta pensar, no passado, nos "poemas" de Parmênides e de Lucrécio), mas nos dias de hoje? Já contei [Bento Prado Jr." em outro lugar como, em 1954, saindo da juventude comunista e da prática de plagiar a "poesia engajada" da "Rosa do Povo", quando descobria a filosofia, experimentei um verdadeiro alumbramento lendo a "Máquina do Mundo", numa manhã clara e inesquecível, caminhando pela alameda Santos [em São Paulo".
Na ocasião, perplexo, disse para mim mesmo: "Então é possível dizer essas coisas na língua que falo e habito?". Era uma súbita e inesperada promoção. Em outra ocasião, comentei o alcance "filosófico" da poesia de Drummond, contrapondo-a a certa tradição da poesia alemã, em especial a de Rilke. Aí insistia que, ao contrário do grande poeta alemão, Drummond elevava a poesia aos cumes da metafísica, sem perder seus pés na terra, guardando a dimensão do humor, que garante a continuidade estilística de sua obra por sob as revoluções que opera.
Humor? Há certamente algo de trágico na "Máquina do Mundo". Como conciliar humor e tragédia? Não é impossível: recentemente Davi Arrigucci Jr. [em "Coração Partido", ed. Cosac & Naify" aplicou a Drummond as categorias criadas por Schiller com a oposição poesia ingênua/poesia sentimental. Poesia sentimental, é claro, não significa sentimentalismo ou expressão compulsiva dos afetos: pelo contrário, significa, por oposição à espontaneidade da poesia grega (continuidade, sem conflito, entre visão mítica do mundo e expressão literária), o estilo dramático da moderna concepção (germânico-cristã) do sujeito infeliz (coração insulado), separado para sempre de um Deus abscôndito e de uma Natureza perdida ou incontornável, com a olímpica exceção de Goethe.


Estamos diante de um poema metafísico por excelência; como compreendê-lo, sem confundir poesia e filosofia?


Mas, justamente, se essa perspectiva "sentimental" levou o romantismo alemão na direção da ironia (na oscilação entre o niilismo e o retorno à ortodoxia teológica, numa deriva irresponsável segundo Hegel), no caso do poeta brasileiro a infelicidade da consciência não o afastou de alguma forma de realismo que acompanha sua obra poética de ponta a ponta. Não é possível ser idealista alemão em Minas Gerais ou em nosso país, em nossa língua. A situação exposta no poema é, a um só tempo, metafísica e dramática. Alguém, um sujeito solitário, que percorre uma estrada de Minas, pedregosa, ouve, de súbito, a voz da máquina do mundo que lhe oferece mostrar, gratuitamente, seus mecanismos mais secretos. Alfredo Bosi e José Guilherme Merquior já compararam, como era necessário, o teor do poema com estruturas semelhantes na "Divina Comédia" e nos "Lusíadas". Embora a língua comum favoreça o segundo paralelo, talvez o primeiro seja mais pertinente. A começar pelo fato de que, no poema de Dante, já está inscrita a obsessão pelo meio do caminho ("Nel mezzo del cammin..."). E também pelo fato de que a "máquina do mundo" (na verdade o sistema cosmológico de Ptolomeu) de Camões é uma espécie de complemento quase "científico-experimental" da grande descrição da nova experiência do mundo navegável. Aí estamos mais perto de Francis Bacon, mesmo nos melhores versos consagrados às tempestades marítimas. Ao passo que, com Dante, estamos em pleno Absoluto, que se abre generosamente aos olhos do poeta que o recebe, de coração aberto, para poder, assim, "s'eternare" (como o "noûs poietikós" de Aristóteles, são Tomás e Dante, pode tornar-se eterno, retornando à sua fonte, o motor imóvel, esse Amor "che move il sole e l'altre stelle").

Um intransigente racionalismo
No nosso caso, o sujeito reticente ou o coração infeliz, sem denegar sua inscrição num quadro que o ultrapassa, vê, na revelação assim súbito oferecida, algo como uma demissão. No fundo, como se dissesse: prefiro minha dor e meu não-saber a um Saber que eliminaria minha dor e minha própria realidade -nada de Epifania!. Há algo de "aufklärer" em Drummond, de ponta a ponta, ou de um intransigente racionalismo de quem está na periferia do Mundo (em todos os sentidos da palavra: no sentido cosmológico, como já sabia Pascal, mas também no sentido político e econômico -como sabemos, hoje, cada vez mais). Em todo caso, nada de teologia, meu não-saber é lúcido como na "Crítica" de Kant! Certamente o céu está vazio e frio para todo o sempre, constelado apenas de problemas. O movimento das estrelas nada tem a ver com o pulsar de meu coração. Não posso, pela contemplação, "eternarmi". Já mostramos em outro lugar como Drummond domestica os animais de Rilke, deslocando-os para fora da hierática leitura de Heidegger, num ensaio denominado "O Boi e os Marcianos", onde terminávamos por dizer que o estratagema do poeta consistia em criar uma dialética entre o ponto de vista interno da consciência infeliz e o ponto de vista de Sirius, do ponto de vista de Deus ou do próprio Mundo, personificado. O segredo da dialética de Drummond estaria em confirmar, assim, de fora, o que estava dado desde início na estreiteza da experiência subjetiva. A transcendência celeste e a calma imanência animal não seriam apenas arabescos traçados no ar, mas cruas luzes lançadas sobre a intuição de que o homem está embarcado no mundo sem nenhuma amarra ou âncora. Talvez esteja aí um dos traços dessa grande poesia que consegue retirar, do aprofundamento do desencanto e da separação, o fôlego que lhe permite, invertendo a perspectiva natural, dizer sim à condição humana e à idéia de solidariedade. Estamos embarcados juntos, até em nossos desencontros. Comentando outro poema, falávamos indiretamente de "A Máquina do Mundo", que seria bom comentar, aqui, verso a verso, caso houvesse o espaço necessário. Fiquemos apenas numa nota, sublinhando a fidelidade jamais rompida com o espírito da "Aufklärung". Lembremos os seguintes versos: "Mas, como eu relutasse em responder/ a tal apelo assim maravilhoso,/ pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,// a esperança mais mínima -esse anelo/ de ver desvanecida a treva espessa/ que entre os raios de sol inda se filtra;// como defuntas crenças convocadas/ presto e fremente não se produzissem/ a de novo tingir a neutra face// que vou pelos caminhos demonstrando,/ e como se outro ser, não mais aquele/ habitante de mim há tantos anos// passasse a comandar minha vontade [..."// baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita a meu engenho". Não me é possível dissociar esses versos, em minha imaginação errante, da peça "Nathan, o Sábio", de Lessing (1729-81). Lá também a "verdade absoluta" era colocada entre parênteses, em nome da tolerância e do racionalismo, sem prejuízo para a inevitável paixão da subjetividade, digamos, o mesmo esforço por limitar e controlar a nossa in-eliminável fé no futuro, no Mundo ou nos Trans-Mundos.

Deixar de ser moderno para ser atual
Para encerrar voltemos aos inevitáveis paralelos com Dante e Camões. Já sugerimos a distância que separa a "metafísica" de Drummond (ou sua atualidade) daquelas subjacentes aos dois grandes poetas das línguas neolatinas. Não quero sugerir que o meu poeta predileto tenha a mesma estatura que os dois outros e no entanto... Mas Dante e Camões fizeram tarefa semelhante, criando o italiano e o português como línguas literárias, fazendo uma ponte entre o latim e as novas línguas que germinavam (basta lembrar a língua falada pelo personagem, ligado aos "fraticelli" franciscanos algo transgressivos, de "O Nome da Rosa", que termina imolado nas flamas da Santa Inquisição).
Drummond começa a escrever como poeta moderno, a contrapelo do classicismo parnasiano (que gostaria de retornar à antiga Hélade ou à Roma Antiga, ignorando os conflitos do Brasil contemporâneo). Ao fim e ao cabo, e sem perder o pé na realidade contemporânea e no nosso falar atual, é capaz de elevar a nossa língua à complexidade e à reflexividade da poesia ibérica do Século de Ouro. "Como ficou chato ser moderno", diz Drummond; e não devemos tomar ao pé da letra o verso seguinte, que parece exprimir uma aspiração à "eternidade" -o humor que atravessa o poema proíbe qualquer elogio enfático da eternidade. Talvez devamos interpretar esses versos da seguinte maneira: é preciso deixar de ser moderno para ser verdadeiramente atual. Mas que não se engane o leitor, se Drummond tivesse notícia do chamado pensamento "pós-moderno" certamente recuaria, tomado do mais sagrado horror.


Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de, entre outros, "Alguns Ensaios" (ed. Paz e Terra).
Cristiano Perius é mestre pela USP e doutorando em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos.




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