São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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UMA EXPERIÊNCIA ATROZ


TRADUTOR DE MENOR ENVERGADURA QUE MANUEL BANDEIRA, O AUTOR DE "A ROSA DO POVO" FEZ BOAS VERSÕES DE ROMANCES, MAS NUNCA CHEGOU A TRADUZIR POESIAS


Carlos Drummond de Andrade talvez não tenha sido um tradutor da grande constelação de tradutores da sua geração. Manuel Bandeira foi mais do que ele, principalmente porque traduziu -e divulgou ao leitor brasileiro- muita poesia. Não se conhecem traduções de poesia de Drummond em particular. Verdade que há a peça "Dona Rosita, a Solteira", de García Lorca, para a editora Agir (1956), e "Artimanhas de Scarpino", de Molière, em 1962, para uma edição do MEC. Poesia apenas não se conhece. Apesar disso, foi um tradutor atirado. Em 1943, ele traduziu "Les Liasons Dangereuses" ["As Ligações Perigosas"", de Choderlos de Laclos (1741-1803). A tradução foi publicada em 1947, na coleção "Grandes Romances" da editora Globo, dirigida por Paulo Rónai (que, ainda em Budapeste, em 1939, traduzira para o húngaro, "língua e país de tradutores", o embaraço sem remédio de "No Meio do Caminho"). Não tinha havido encomenda da tradução. Drummond traduziu o romance epistolar de Laclos pelo desafio que havia nisso (a última tradução que fez, "Fome", do sueco Knut Hamsun, de 1963, também foi pelo desafio). Numa dessas listas de dez mais, ele colocara "As Ligações Perigosas" no alto. A tradução feita por Drummond é primorosa, melhor do que as outras duas que também circularam no Brasil, de Osorio Borba e Sérgio Milliet.

Um outro sujeito literário
Antes, ele já traduzira "Thérèse Desqueyroux", de François Mauriac. A tradução sairia publicada em 1943, pela Pongetti, com o título "Uma Gota de Veneno" (e reeditada agora pela Cosac & Naify, com o título original em francês). Essa tradução tinha sido encomendada. Mas parece que Drummond foi ao romance, no qual não se sabe quem vence, se o horror do autor francês ao que ele vê como pecado ou o fascínio e o amor que ao mesmo tempo sente por Thérèse, para se atracar com o católico "caixa-encourada" que era Mauriac. Com a tradução de Drummond, e a apresentação que escreveu, é quase possível dizer que ganham Thérèse e as suas razões, e surge como que um outro sujeito literário e uma outra direção para o livro. A grande prova, claro, consistiu na tradução de "Albertine Disparue" ("A Fugitiva", na edição da Globo), o sexto e penúltimo da série de Proust, publicado em 1956 (dois anos antes, ele traduzira para a mesma editora "Les Paysans" ["Os Camponeses"", de Balzac). Talvez Drummond tenha ficado com a parte mais difícil, mais do que a dos tradutores dos outros volumes. É que há ali, como sente qualquer leitor de Proust, uma tal inteligência do sofrimento e das leis da perda amorosa, um tal desvelamento das intermitências do desejo, uma tal ontologia do ser amoroso, o qual cochila e desaparece para tornar a aparecer quase como um acontecimento ctônico (antes não havia nada, só um certo tédio, agora, que Albertina se mandou, aflorou tudo de novo, e muito mais), que é como se antes nunca tivéssemos visto tais coisas, embora as reconheçamos em nós.

Experimental e atirado
A opção que Drummond faz -ou é levado sem o saber a fazer- dá o que pensar. Não parece tão atirada. Ele segue atrás de Proust, da sua soberba lucidez no meio do horror e dos fogos infernais da perda (perda de alguém que, como Odette para Swann, "nem era seu tipo"), sem se adiantar a nada, como se devesse apenas encontrar um equivalente para acompanhar tudo.
Assim ele escreve: "De resto, a idéia da partida de Albertina, desejada por ela própria, mil vezes poderia vir-me ao espírito, da maneira mais clara, mais nítida do mundo, e nem por isso eu teria imaginado o que seria essa partida para mim, isto é, na realidade: que coisa original, atroz, desconhecida, mal inteiramente novo. Se a tivesse previsto, poderia pensar nela continuamente, anos e anos, sem que, reunidos, todos esses pensamentos tivessem a mais frágil relação, não só de intensidade, mas de semelhança, com o inconcebível inferno de que Francisca descerrara o véu, ao dizer: "A srta. Albertina foi embora".".
A opção é só aparentemente tímida. Pois a sensação que se comunica ao leitor é a de que Drummond (e o próprio leitor) está tendo contato com isso pela primeira vez, "com essa coisa original, atroz, desconhecida", e com a forma pela qual ela surge. Como se ele acompanhasse e reproduzisse uma experiência original e desconhecida, algo como um rol inaugural de tormentos que começa a nos atingir. O que, num poeta no qual "tudo acontecia por conflito", como disse Davi Arrigucci Jr. em ensaio recente, tudo acontecia por revelação e auto-revelação violentamente desencadeadas, como se fosse pela primeira vez, não deixa de ser experimental, auto-experimental e atirado.

José Maria Cançado é jornalista e autor da biografia de Carlos Drummond de Andrade, "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta).


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