São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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+3 questões Sobre "Os Sertões"

1. Qual é o significado estético e político do livro?
2. O que nele é datado e o que é atual?
3. Qual é a visão de Euclides da Cunha sobre a religiosidade popular sertaneja?


Roberto Ventura
responde

1.
"Os Sertões" (1902) é uma obra que transita entre a literatura, a história e a ciência. Para recriar a guerra de Canudos, Euclides da Cunha adotou um enfoque científico, baseado em teorias sobre a determinação da história pela natureza, e uma construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica. Buscou correspondências entre o conflito e a paisagem ao tomar como cenário os sertões, cuja vegetação seca e contorcida permitiria antever o martírio dos seguidores de Antônio Conselheiro. Escreveu em uma prosa rítmica, capaz de recriar as oscilações climáticas do semi-árido e a inconstância dos sertanejos entre o heroísmo e a resignação. Criticou a atuação do Exército ao denunciar o massacre da comunidade e a degola dos prisioneiros. Defendeu a revisão da Constituição liberal de 1891, cujo princípio de soberania popular era desrespeitado pelas fraudes eleitorais da Primeira República.

2.
Muitos de seus aspectos científicos se encontram hoje superados, como as teorias sobre a formação geológica do sertão baiano, as hipóteses a respeito do caráter autóctone do homem americano e sobretudo as concepções racistas sobre a superioridade do branco e a inferioridade do mestiço. Euclides teve uma opinião negativa a respeito de Canudos e do Conselheiro. A comunidade era, para ele, primitiva e caótica, formada por mestiços de branco e índio, que praticavam o amor livre e o coletivismo dos bens. Tomou seu líder por um fanático místico, deixando de lado o catolicismo ortodoxo de sua pregação. Mas Euclides inseriu Canudos na memória coletiva brasileira, ao exibir um país dividido entre as grandes cidades e um interior desconhecido e ameaçador, hoje presente nos morros e nas periferias urbanas. Atribuiu ao Conselheiro a profecia de que o sertão vai virar praia ou mar, promessa de inversão climática ou social, que ganhou depois significado revolucionário no filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), de Glauber Rocha.

3.
Ele recriou, a partir de poemas e profecias, o imaginário dos seguidores do Conselheiro. Acreditava que houve, em Canudos, a espera mágica do dom Sebastião, morto em batalha no século 16. Segundo a crença popular, o monarca desaparecido deveria voltar, para restaurar a monarquia e derrotar os enviados do anticristo, as tropas da República, cuja "eleição" era tida como a "lei do cão".

José Celso Martinez Corrêa
responde

1.
Dois meses lendo em coros e percussão, ritmo e poesia, todos os jorros de letras e silêncios desse aerólito chamado "Os Sertões", caído nesse tempo de Martírio Secular da Terra virando Movimento dos Sem-Terra, iluminados pelo Sol poderoso na pista da terra do Oficina, tocando com o público palmo a palma, o beco sem saída do anfiteatro da luta -vivemos a ressurreição dos corpos, beleza brotando poder. O começo da incorporação do livro nos coros despertou energias adormidas do poder do teatro: "sim-tonizou" a ação com os brasis em movimento que não estão se deixando massacrar pelo Brasil que massacrou Canudos. Euclides poeta, louco, engenheiro criou essa "terra ignota", a "rocha viva", a mesma do eterno retorno de Nietzsche, um livro vingador que transtorna agora estética e politicamente. Oswald escreveu: em Machado já existe o germe de toda uma sociedade condenada, em Euclides, surge a anunciação do povo brasileiro. O povo anunciado está aí, não para um massacre, mas para um desbloqueio, para completar civilizações interrompidas. E não é só no Brasil, mas em todos os sertões do mundo pós-globalizado. Os desejos que fecundam a abolição da feiúra da escravidão, da desigualdade da economia geral da vida, são os cantos desse poema, se lido cá e já.

2.
2002: cem anos de "Os Sertões", eleições presidenciais no Brasil. A data desse livro é a de hoje. Tempo de vingar essa montanha e, do ponto de vista da vertigem, enfrentar os crimes das nacionalidades, para que não fiquem mais nas costas dos bodes, Conselheiros, jagunços de ontem e de hoje. As ciências datadas, o racismo, se espatifam na rocha viva. Ficou essa matéria energética contracenando com o ecossistema.

3.
O cisco positivista sai dos olhos, iluminando-se nas fogueiras "destruidoras de uma crença forte", como das mulheres preferindo se lançar nela com os filhos a se render à República. "Os Sertões" é um livro escrito por uma compulsão religiosa. Mais do que um testemunho do holocausto de quem não suportou assistir a seus últimos dias, é um ser vivo soprado por essa crença imbatível do ser em insurreição sertaneja.

QUEM SÃO

Roberto Ventura
É professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade de São Paulo (USP) e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras) e "Casa-Grande & Senzala" (Publifolha).

José Celso Martinez Corrêa
É diretor da companhia teatral Oficina Uzyna Uzona e autor de "Primeiro Ato" (ed. 34). Prepara, atualmente, montagem de uma adaptação de "Os Sertões", com estréia prevista para o segundo semestre deste ano.



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