São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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+ brasil 501 d.C.

Um imenso Portugal

Evaldo Cabral de Mello

O Brasil fez-se império antes de se fazer nação. No contexto internacional da época, nosso processo de independência não foi algo aberrante apenas devido ao regime monárquico que adotou, como não se cansará de frisar a propaganda republicana de finais do Segundo Reinado, mas também devido à forma imperial que tomou o Estado brasileiro, numa conjuntura que já se anunciava nitidamente desfavorável às construções imperiais e eminentemente marcada pelo triunfo da idéia nacional na Grécia, depois na Bélgica, na Espanha, que se levantara em 1808 contra o império napoleônico, no próprio Portugal das cortes de Lisboa, que, no momento azado, não hesitou em sacrificar o Brasil aos seus objetivos estritamente nacionais.
Uma das questões curiosamente negligenciadas pela nossa historiografia é precisamente a de por que o Brasil adquiriu sua Independência sob a forma de império e não de reino, como seria de esperar do fato, entre outros, de que desde 1816 dom João 6º o promovera a esta condição. A opção pelo título imperial não correspondeu meramente, ao contrário do que se pretendeu, à tentativa de popularizar o monarca mediante sua identificação ao imperador do Divino, nem ao desejo do príncipe regente de emular seu concunhado, o ex-imperador dos franceses. É possível que tais considerações tenham entrado em linha de conta, mas a verdade é que a idéia de império era uma velha aspiração que remonta aos cronistas do século 16 e que, no decurso do 18, tomara relevo na imaginação de alguns homens de Estado lusitanos.
Registra o barão de Rio Branco, sempre muito seguro nos detalhes, que, na noite do 7 de setembro de 1822, comparecendo dom Pedro ao teatro da cidade de São Paulo, onde já se sabia o que se passara à tardinha nas margens do Ipiranga, fora entusiasticamente acolhido ao grito de "viva o primeiro rei brasileiro", ao passo que certa poesia recitada em seu louvor na mesma ocasião saudava-o como "primeiro imperador". Aduz Rio Branco que, contudo, "só no Rio de Janeiro, em sessão de 14 de setembro, do Grande Oriente, ficou definitivamente adotado o título de imperador, por proposta do brigadeiro Domingos Alves Branco Muniz Barreto", de acordo, aliás, com "uma proclamação anônima, convidando o povo a aclamar dom Pedro "imperador constitucional'", a qual circulara na corte em outubro do ano anterior. Destarte, já a divergência vocabular alinhara-se sobre o antagonismo entre o grupo de José Bonifácio e os liberais de Gonçalves Ledo.
Em finais de agosto, quando o regente partira para São Paulo, uma reunião do Grande Oriente não conseguira chegar a consenso a respeito, só o fazendo, portanto, a 14 de setembro, na presença do príncipe, o qual, havendo retornado ao Rio, assumira então o grão-mestrado da ordem. A resistência de Gonçalves Ledo e amigos à fórmula imperial originava-se, provavelmente, não só na sua conotação autoritária, que a experiência napoleônica viera a acentuar, como na sua identificação com a retórica de império luso-brasileiro, que fora a predominante durante o reinado brasileiro de dom João 6º, capaz, por conseguinte, de denotar a preservação de algum tipo de vínculo entre Portugal e o Brasil. E é mais que provável, reciprocamente, que a preferência de José Bonifácio resultasse da sobrevivência da velha concepção que, de luso-brasileira, ele agora fará exclusivamente nacional.
Sob esse aspecto, o episódio do descobrimento já oferece manifestação muito ao gosto dos apreciadores de alegorias históricas. Referem tanto Pero Vaz quanto o piloto anônimo que, confrontados pela realidade da terra nova, os membros da expedição cabralina foram assaltados pela dúvida sobre sua conformação física: seria continente ou seria ilha? Pero Vaz julgou mais seguro datar sua missiva a El Rei "da vossa ilha de Vera Cruz", mas o piloto anônimo inclinava-se à opinião de tratar-se de terra firme, devido a "seu tamanho".
Jaime Cortesão lembrou a esse respeito que a própria designação dada por Cabral, Terra de Vera Cruz, se associa antes "à expressão terra firme, com que era de uso designar os continentes, do que a uma ilha, no significado atual". E, com efeito, a Independência se fará sob a égide do que devia ser, isto é, da concepção do Brasil como terra firme, continente ou império, sobre o Brasil como já era, vale dizer, ilha, arquipélago ou reino, vale dizer, os Brasis da descrição plural usada então em língua inglesa. Seria prematuro atribuir vontade de construção imperial ao descobridor ou a seu séquito, embora, na célebre frase "querendo-a (a terra) aproveitar-se, dar-se-á nela tudo", deva-se ao escrivão da armada a primeira afirmação da vocação autárquica da terra recém-descoberta, vocação que será reputada um dos principais atributos do império.
No século 16, a noção de império, como a supremacia do Sacro Império Romano-Germânico sobre toda a cristandade, vinha sendo desde a Idade Média tardia erodida pelos Estados nacionais, que haviam adotado como barreira a tais pretensões o princípio do "rex imperator in regno suo", que fazia de cada monarca o imperador do seu reino, ou seja, o detentor integral da soberania interna e externa. Portugal não fugira à regra, se valendo inclusive, como outros reinos da península, do argumento de que fora reconquistado aos mouros sem apoio ou ajuda do império.
Esse processo culminou na adoção por dom Sebastião do título de majestade, privativo, até então, do imperador, adoção já realizada pelos demais monarcas europeus (os antecessores de dom Sebastião se haviam restringido ao de alteza). Por outro lado, desde o reinado do seu bisavô, dom Manuel, o Venturoso, viera-se impondo uma acepção de império que se compaginava com a expansão marítima na África, na Ásia e na América, fabricando inclusive o simbolismo da romã e da esfera armilar, a qual, originalmente concedida a dom Manuel quando ainda duque de Beja, só posteriormente adquiriria a conotação imperial, passando a ser encarada como a prefiguração do papel mundial do monarca.
Como adverte Martim de Albuquerque, a quem se deve o exame detido do assunto, essa diferente concepção de império nada tinha a ver com o sentido primitivo da palavra, que denotara na Roma antiga o mando, a fonte última do poder, noção que, em seguida, fora utilizada para designar a extensão territorial sobre a qual se exercia a soberania da urbe. Ela ligava-se antes à acepção que, como indicou Anthony Pagden, se dera a partir de Tácito ao Império Romano, definido como "imenso corpo imperial", ou seja, como uma unidade estabelecida sobre diferentes Estados preexistentes, que podiam inclusive estar espacialmente separados, como os que os europeus virão a conquistar na Ásia, no México ou no Peru; ou, caso de figura oposto, sobre um território virgem de estrutura estatal desenvolvida, como ocorrerá no restante das Américas. Como assinala Martim de Albuquerque, era nesse último sentido de "largos domínios" que "os poetas e cronistas de Quinhentos usam continuamente a palavra "império'"; e, pode-se aduzir, fazem-no também nossos cronistas do primeiro século de colonização.


Registra o barão de Rio Branco que, na noite do 7 de setembro de 1822, comparecendo dom Pedro ao teatro da cidade de São Paulo, onde já se sabia o que se passara à tardinha nas margens do Ipiranga, fora entusiasticamente acolhido ao grito de "viva o primeiro rei brasileiro"

Essas veleidades imperiais não ultrapassaram o plano retórico, de vez que o pensamento jurídico e político no Portugal do período não teorizou o império ultramarino, se é que jamais o fez. O "De Justo Imperio Lusitanorum Asiatico", por exemplo, escrito por frei Serafim de Freitas em 1625, visa a assentar em bases que pudessem escapar à impugnação por Hugo Grócio da doutrina do "mare clausum", que constituía, como se sabe, a justificação ibérica do monopólio colonial. Como conclui o leitor da erudita obra de Luís Reis Torgal, no século 17, os teóricos da Restauração não se preocuparão com o tema, absorvidos que estavam na justificação da recém-conquistada independência do reino frente à Espanha. Ironicamente, se a noção de império permaneceu viva no Portugal de Seiscentos, isso se deveu não aos doutos, mas ao baixo clero intelectual do sebastianismo, que lhe conferiu conotações religiosas e místicas, que combinavam a lenda do milagre de Ourique, que é propriamente um mito fundador da nacionalidade, como o designou Ana Isabel Buescu, com a expansão colonial, com o milenarismo do Quinto Império e com o messianismo das trovas do Bandarra.
Resulta curioso, porém, que o sebastianismo oficial, quer na sua versão ortodoxa, quer na versão recriada pelos ideólogos da Restauração no fito de fazer de dom João 4º, e depois de seus filhos, o verdadeiro Encoberto das profecias bandarristas, concedesse escassa atenção ao Brasil. O império da parenética restauradora, exaustivamente analisada por João Francisco Marques, não é apenas o império ultramarino, é o próprio Quinto Império, uma entidade de escopo universal, espiritualmente confiada por Deus a são Pedro no Calvário, e temporalmente a dom Afonso Henriques, no campo de Ourique. Um império que, ademais, não está num presente cruel, mas num futuro promissor em que ele surgiria, à raiz do triunfo lusitano sobre o turco, como o sucessor dos impérios assírio, meda, persa e romano, se cumprindo desse modo o antigo vaticínio sobre a translação imperial de oriente a ocidente. Portugal dominará as "quatro partes do mundo", mas a predileção dos pregadores de meados do século 17 não se dirige ao Brasil, mas ao Estado da Índia, da costa leste da África ao Japão e à China. Que o Oriente fosse o vetor predileto do delírio sebastianista é tanto mais revelador do seu componente medieval e joaquinista quanto, àquela altura, o Brasil não estava menos ameaçado pelos holandeses do que Goa, o Ceilão ou Macau.
Ao esboçar-se nos cronistas de final de Quinhentos e começos de Seiscentos, a idéia de império brasileiro representou uma aspiração de colonos portugueses, sob a forma de um Estado de grande extensão geográfica, muito superior em todo caso à de Portugal, movido assim por uma vocação eminentemente autárquica. No seu memorial a Felipe 2º, Gabriel Soares de Sousa recomenda uma política de "reparo e acrescentamento" para o Brasil que reate com os planos que se atribuíam a dom João 3º e que teriam sido abandonados pelos seus sucessores, pois a nova terra "está capaz para se edificar nela um grande império, o qual, com pouca despesas destes reinos, se fará tão soberano que seja um dos Estados do mundo, porque terá de costa mais de mil léguas".
Por sua vez, ao descrever o território, do rio das Amazonas à Capitania de São Vicente, o autor dos "Diálogos das Grandezas do Brasil" reputa-o "terra bastantíssima para se poder situar nela grandes reinos e impérios". Era natural que a povoadores oriundos de um país de superfície acanhada em termos dos grandes Estados nacionais que se estavam forjando na Europa desde o fim da Idade Média o critério da extensão territorial prendesse preferencialmente a imaginação. A abundância de terra que eles vinham a encontrar deste lado do Atlântico tinha de impressioná-los vivamente e até como que compensá-los das dimensões modestas da pátria. A esse tema não se mostrarão, aliás, menos sensíveis os cronistas do século 18.

Seiva sebastianista
Nada impede, contudo, que nessa aspiração brasileira se tenha infiltrado a seiva sebastianista, pois nos nossos primeiros cronistas o Brasil está também associado ao papel messiânico que lhe caberia nos destinos de Portugal, segundo a alegada previsão de astrólogo da corte de dom Manuel, para quem a terra recém-descoberta por Cabral haveria de se tornar "uma opulenta província, refúgio e abrigo da gente portuguesa", segundo o registro do autor dos "Diálogos das Grandezas". E na "História do Brasil", frei Vicente do Salvador aduz que a fundação do governo geral por dom João 3º estaria ligada à necessidade, para o caso da invasão do reino, de se premunir de uma estrutura de acolhimento na América e de uma base para a reconquista da mãe pátria, hipótese em que transmigrariam para este lado do Atlântico El Rei, a corte e os vassalos que o desejassem ou pudessem fazê-lo.
Que se tratava de versão corrente entre os colonos e não de mera invencionice dos cronistas indica o fato de que, ainda em meados do século 17, Gaspar Dias Ferreira a repetiria em carta a dom João 4º, que, aliás, recomendará a solução à sua mulher para a eventualidade de ocupação espanhola do reino após sua morte. Por conseguinte, já então o estabelecimento de um vasto império no Brasil se vinculava ao estado crônico de insegurança internacional do reino, vinculação que se tornará manifesta em vários momentos especialmente delicados dos séculos 16 e 17 como também nos projetos dos "estrangeirados" do século 18, como dom Luís da Cunha e o duque de Silva Tarouca, que conceberão de maneira explícita o grandioso programa. Paralelamente, essa função salvadora da colônia era vista em termos de promoção econômica e social da população da metrópole.
Correlata a essa noção de império estava a de autarquia, já insinuada, como vimos, por Pero Vaz. Com efeito, a descrição das nossas riquezas pelos cronistas do primeiro século visa a induzir a noção de que, convenientemente explorada e administrada, a colônia se bastará, desfrutando, por conseguinte, da condição julgada fundamental para se transformar verdadeiramente num império. Gabriel Soares de Sousa, por exemplo, assevera ser o Brasil tão abundante de mantimentos que se escusava de lhe enviar gêneros estrangeiros, se entenda, importados de outros países europeus, mas não os produzidos pelo reino. Implícita nessa associação entre autarquia e império achava-se a identificação entre dependência e reino. Portugal era um reino, pois sabidamente não se podia bastar, inclusive no tocante ao produto-chave das economias do Antigo Regime, o trigo; o Brasil se poderia tornar um império, na medida em que poderia dispensá-los todos.
Nos começos de Seiscentos, Brandônio exprimia a mesma conexão entre império e autarquia quando assinalava que "a terra é disposta para se haver de fazer nela todas as agriculturas do mundo", não havendo "nenhuma província ou reino dos que há na Europa, Ásia ou África que seja tão abundante de todas elas (coisas), pois sabemos bem que se têm umas, lhes faltam outras".
Gabriel Soares quisera excluir as mercadorias européias; mas Brandônio vai mais longe, apregoando que o Brasil não tem "necessidade de coisa nenhuma das que se trazem de Portugal e, quando a houvesse, fora de poucas". Os "Diálogos" fazem o inventário das potencialidades da terra inexploradas pela negligência dos povoadores, a começar pelo algodão, de que se poderia fazer toda a sorte de tecidos, como na Índia; pela lã das ovelhas, que poderia ser empregada na manufatura de colchões, em vez de importá-la do reino a preços superiores; pelos laticínios; pelas hortaliças; pelos vinhos indígenas, que dispensariam os vinhos das Canárias e da Madeira; os azeites nativos e não tão nativos assim, como o do coco, que tornariam supérfluo o azeite do reino, para não falar de "muitas outras coisas".
Dessa vocação autárquica frei Vicente do Salvador fará na sua "História do Brasil" (1627) todo um programa de substituição de importações do reino, ao sugerir que, no tocante à tríade canônica da mesa portuguesa e mediterrânea, os colonos não só substituíssem o azeite de oliva pelo de dendê ou de coco e o vinho pela aguardente, mas até mesmo o trigo pela farinha de mandioca, o que não ousara fazer Brandônio. Ao passo que Gabriel Soares de Sousa assinalara a superioridade do produto reinol cultivado na colônia sobre seu similar metropolitano, o cronista franciscano vai além, afirmando a superioridade das espécies nativas sobre as reinóis, como na descrição das madeiras utilíssimas desconhecidas do outro lado do Atlântico. Destarte, era "o Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão (além dos próprios) os mantimentos de todas as outras". O Brasil já seria até mesmo suficiente demograficamente, asserção que não teria certamente acolhida por parte dos maiores propagandistas da idéia imperial do fim do período colonial, para quem a escassez populacional representava o grande problema a resolver.

Programa nativista
O que é mais, frei Vicente coloca expressamente a questão de se é preferível a autarquia ou seu contrário, procurando resolvê-la, segundo sua cultura eclesiástica, em termos das Sagradas Escrituras. Ora, elas forneciam uma resposta inconclusiva, pois, se o salmista louva Sião por ter suas portas abertas a todos, louva também Jerusalém por ter tudo dentro de si, mas não há dúvida para que lado se inclina a argumentação do frade. O Brasil podia "sustentar-se com seus portos fechados sem socorro de outras terras", porque lhe bastava a farinha da terra em lugar da de trigo, a aguardente de cana era excelente sucedâneo do vinho, o azeite de coco, do azeite de oliva, a castanha de caju, da amêndoa, os tecidos de algodão, dos de linho e de lã. O sal dava-se naturalmente e, no tocante ao ferro, havia "muitas minas", sendo que em São Vicente já se lavrava o minério. Quanto às especiarias, havia "muitas espécies de pimenta e gengibre". Reconhecia frei Vicente um único empecilho a seu programa nativista na necessidade do trigo e do vinho para o culto católico.
Ele, contudo, descartava parcialmente o argumento, lembrando que para esses fins sobejava o trigo produzido em São Paulo, embora fosse indispensável receber o vinho do reino. É curioso constatar que, quando nos últimos decênios do século 17 se aprofundar a crise do Brasil talássico, o programa de frei Vicente voltará à ordem do dia. Informando da Bahia que em 1689 haviam deixado de "moer muitos engenhos e no seguinte haverá muito poucos deles que se possa fornecer", o padre Vieira notava que, em vista de tal situação, aconselhavam "os mais prudentes que se vista algodão, se coma mandioca e que, na grande falta que há de armas, se torne aos arcos e flechas", de modo que lhe parecia que "brevemente tornaremos ao primitivo estado dos índios, e os portugueses seremos brasis", isto é, índios.
No final do primeiro século de povoamento, a argumentação de frei Vicente já traz assim embutida a contestação do monopólio colonial, pois, se o Brasil se bastava, que necessidade teria da metrópole? E, com efeito, a atmosfera mental da "História do Brasil" já é perceptivelmente diferente da de Gabriel Soares de Souza e da do autor dos "Diálogos". Concluída precisamente no período entre o ataque holandês a Salvador e a ocupação de Pernambuco, ela deixa ver que os ventos começavam a soprar de outro quadrante. Se a compararmos superficialmente às crônicas anteriores, tem-se a mesma louvação da terra e dos seus recursos. Na realidade, o tom mudou. Ao otimismo que exalam as páginas dos primeiros cronistas, reinóis radicados na terra, substituiu-se o pessimismo do mazombo que era frei Vicente.
É palpável o ressentimento com que é encarado o tratamento dado à colônia pela metrópole. Com exceção de dom João 3º, a quem, como vimos, se atribuía o propósito de fundar novo reino na América, os monarcas lusitanos, sejam Aviz ou Habsburgo, fazem pouco caso de nós, a ponto de, podendo se intitular reis do Brasil, preferem se chamar reis da Guiné, só por causa de uma mísera caravelinha que despacham anualmente para aquelas paragens. Tampouco premiam os serviços prestados pelos povoadores. Devido a esse descaso, colonizada há menos de cem anos, a terra já dá sinais de declínio, já se despovoa em alguns lugares e, malgrado sua grandeza e fertilidade, não progride. Ademais, frei Vicente dá teor mais contundente à oposição, esboçada nos "Diálogos", que pode ter lido nos anos que viveu no claustro franciscano de Olinda, entre o comerciante, que visava apenas a tirar proveito imediato da sua atividade, e o produtor, senhor de engenho ou lavrador de cana, que havia conquistado a terra com seu esforço e seu sangue, embora esse tampouco escapasse à crítica de que também sonhava levar para Portugal os cabedais reunidos ao cabo de muitos anos de luta.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.


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