São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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De Hannah para Martin, de Martin para Hannah

Cara Hannah!
Os boatos que a inquietam são calúnias plenamente de acordo com as outras experiências pelas quais passei nos últimos anos.
A prova de que não estou recusando convites para seminários vindos dos judeus pode ser retirada do fato de não ter recebido nos últimos quatro semestres absolutamente nenhum convite para seminários. A insinuação de que não cumprimento judeus é uma difamação tão baixa que a anotarei aliás para mim futuramente.
Como esclarecimento de como me comporto em relação aos judeus, cito apenas os seguintes fatos:
Fui licenciado neste semestre de inverno e por isso mesmo já informei a tempo, no verão, que gostaria de ser deixado em paz e que não assumiria trabalhos e coisas do gênero.
Apesar disso, quem se encontrou comigo, quem precisa urgentemente e pode inclusive defender sua tese de doutorado é um judeu. Quem tem a oportunidade de vir mensalmente até mim para relatar um grande trabalho em curso (nem dissertação de doutorado nem projeto de pós-doutorado) é uma vez mais um judeu. Quem me enviou há algumas semanas um trabalho extenso para uma leitura urgente é um judeu.
Os dois bolsistas da sociedade beneficente, que foram alocados por mim nos últimos três semestres, são judeus. Quem conseguiu com minha ajuda uma bolsa para Roma é um judeu.
Quem quiser chamar isso de "anti-semitismo furioso" pode fazê-lo.
De resto, sou tão anti-semita hoje em relação a questões universitárias quanto há dez anos; tão anti-semita quanto era em Marburg, onde cheguei mesmo a encontrar o apoio de Jacobsthal e Friedländer para esse anti-semitismo.
Isso não tem nada a ver com ligações pessoais com judeus (por exemplo, Husserl, Misch, Cassirer e outros).
E não pode ainda por cima afetar meu relacionamento consigo.
Se em geral me retraio há um longo tempo, isso se dá porque me deparei em todo o meu trabalho com uma falta de compreensão aflitiva e não pude ter mais do que umas poucas experiências pessoais belas em minha atividade docente. Já perdi aliás há muito tempo o costume de esperar dos assim chamados alunos um agradecimento qualquer ou mesmo uma meditação sincera.
De resto, estou bem-disposto para o trabalho que a cada dia se torna mais difícil. Saudações cordiais.
M.
Inverno de 1932/33


Cartas extraídas do volume "Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência" (Relumé-Dumará).


Martin,
Desculpe-me se, ao vê-lo hoje, armei imediatamente uma cena. Mas é que me ocorreu naquele instante a imagem de você e Günter juntos, à janela, enquanto eu mesma me achava na plataforma da estação de trem. De modo que não consegui afastar a clareza diabólica dessa visão. Desculpe.
Coincidiram tantas coisas que me confundiram ao extremo. Não apenas o fato de seu olhar ter acendido uma vez mais o meu saber acerca da mais clara e urgente continuidade de minha vida, acerca da continuidade do nosso... amor. Deixe-me por favor dizer!
Eu já me encontrava, porém, havia alguns segundos diante de você, que com certeza já tinha me visto. Você tinha levantado rapidamente os olhos, de maneira mecânica, e não me reconheceu. Quando era criança, minha mãe me assustou certa vez da mesma forma, brincando de maneira tola. Tinha lido o conto de fadas do anão e seu nariz, no qual se conta a história de um anão cujo nariz crescia tanto que ninguém mais o reconhecia. Minha mãe agiu como se isso tivesse acontecido comigo. Ainda me lembro do pavor que me fazia gritar sem parar: eu sou uma criança, eu sou a Hannah! Algo similar se deu hoje.
E então, quando o trem já estava quase partindo, como sempre não restou outra alternativa para mim senão deixar acontecer, senão esperar, esperar, esperar. Tudo se deu exatamente como havia imaginado; como tinha certamente desejado: vocês dois aí em cima e eu sozinha e totalmente impotente diante disso.

Setembro de 1930


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