São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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Ensaísta analisa as diferentes conotações do conceito nos dois lados do Atlântico Norte

Modulações do liberalismo

Kwame Anthony Appiah
especial para "The NYT Book Review"

A palavra "liberalismo" evoca na Inglaterra associações muito diferentes das que evoca nos EUA. No primeiro país, espera-se que os políticos liberais cuidem especialmente da liberdade -por exemplo, favorecendo a abolição de restrições ao uso de drogas, ao sexo consensual e ao suicídio-, enquanto os economistas liberais se preocupam especialmente com o mercado livre e os direitos à propriedade. Nos EUA, onde todo mundo pelo menos diz defender a liberdade e o livre mercado, a preocupação mais clara do liberalismo é com as condições econômicas dos desprivilegiados, o que na Europa seria o foco da esquerda socialista. Apesar dessa divisão de vocabulários e práticas públicas, existe uma animada conversa filosófica transatlântica sobre o significado da tradição liberal. As figuras proeminentes nesse debate são John Rawls, nos EUA, e o já morto sir Isaiah Berlin (1909-1997), na Inglaterra.
Essas figuras muito diferentes refletem a brecha política que citei acima. Rawls é muito mais ambicioso em relação à função do governo de evitar o pior. Sir Isaiah, por outro lado, foi um exilado da Rússia soviética que passou boa parte da vida falando sobre os perigos da ingerência do governo sobre nossas liberdades em nome de um bem maior. Diante do triplo slogan da Revolução Francesa, ambos apóiam a liberdade, Rawls acrescenta a igualdade e nenhum dos dois tem muito tempo para a fraternidade.
John Gray, professor na Escola de Economia de Londres, é um dos principais acadêmicos dessa tradição liberal. "Two Faces of Liberalism" (Duas Faces do Liberalismo), seu novo livro, certamente pretende nos levar além do atual debate. Em consequência, sua primeira tarefa é contestar o quadro de suposições existente.
Suas queixas contra Rawls -que valem como queixas contra grande parte da filosofia liberal americana- são várias. Ele considera Rawls culpado de "legalismo", porque deseja preservar nossos direitos por meio de uma Constituição que efetivamente retire muitas questões do debate político, colocando-as, como costumam dizer os opositores ao sistema americano, nas mãos de juízes não-eleitos. Esse legalismo não apenas expressa hostilidade à política, afirma Gray, como também depende da aceitação de que, quando houver conflitos de direitos, esses juízes poderão decidir que direito deve predominar, sem ter de recorrer a opiniões morais controversas. Sua tese é que a decisão sobre qual direito favorecer muitas vezes depende de posições morais contestadas.
Aqui encontramos a mais séria discussão de Gray com grande parte da filosofia liberal americana recente. Ele contrapõe o que chama de "ideal de consenso racional" liberal, que supõe que pessoas racionais devem em última instância aceitar que determinado conjunto de arranjos políticos básicos é o melhor. Se isso fosse verdade, realmente seria possível, como propôs Rawls, colocar o próprio sistema político acima das divergências políticas. Mas, como a maioria de seus pares na filosofia liberal, Rawls acredita que há muitas questões sobre como devemos viver nossas vidas com as quais não precisamos concordar.

Anterioridade da política
No entanto Rawls acredita que estamos certos em aceitar o valor de certos direitos humanos fundamentais e que estes constituem a base para se criar uma Constituição, enquanto Gray acredita, em contraste, que quase nada sobre arranjos constitucionais e direitos básicos pode ser definido antes do debate político.
Para substituir o programa de Rawls e seu grupo, Gray oferece o que chama de liberalismo do modus vivendi. "O fim do modus vivendi", diz ele no início, "não é um bem supremo -ou a paz. É reconciliar bens conflitantes. É por isso que o modus vivendi pode ser praticado por modos de vida com visões opostas do bem".
Gray sugere que todas as pessoas, sejam quais forem seus modos de vida, têm interesse na coexistência. Também existem certos males universais que põem em perigo uma vida humana digna baseada em qualquer concepção do bem. "Ser torturado ou obrigado a presenciar a tortura de seres amados ou compatriotas; ser separado dos amigos, parentes ou do país (...) -esses são os grandes males dos que os sofrem. Na medida em que uma concepção do bem não abranja essas experiências, ela é defeituosa e até mentirosa." Assim ele favorece um regime internacional de direitos humanos para proteger as pessoas desses males universais.
Os argumentos de Gray pelo modus vivendi e contra o liberalismo do consenso racional repousam intensamente no que Isaiah Berlin chamou de "pluralismo", a idéia de que "nem todas as perguntas sobre o bem têm uma resposta verdadeira". Como valorizam coisas de forma diferente, os adeptos desses modos de vida diferentes às vezes não conseguem concordar com o quadro de direitos liberal. O devoto pode desejar uma sociedade na qual blasfêmia seja crime; o puritano pode desejar uma sociedade em que a pornografia seja proibida. Para eles, a liberdade de expressão não inclui a blasfêmia ou a lascívia. Os defensores da livre expressão responderão que todos têm a liberdade de fazer ouvidos moucos para palavras ofensivas ou de exercer sua liberdade de condená-las, mas que restringi-las ofende os direitos do pornógrafo.
Nesses casos, afirma Gray, não podemos garantir que uma opinião seja correta e outra errada. O valor pluralismo significa que pode haver mais de uma maneira de estar certo. A opinião de Gray, com efeito, é que há menos consenso sobre questões morais entre os diversos modos de vida do que supõem os teóricos liberais. Além disso, algumas das principais discórdias que dividem as pessoas e os países não podem ser superadas apenas por meio da razão.
Poder-se-ia pensar que a resposta liberal adequada seria dizer, como Isaiah Berlin, que as pessoas devem ter o direito de fazer suas próprias opções. O único valor que o governo deveria defender, depois de garantir a paz, é a autonomia pessoal. Não, é claro, na forma de uma teoria filosófica requintada, mas apenas deixando para as pessoas a responsabilidade por suas próprias vidas.
Mas é aí que John Gray acha que os liberais contemporâneos de ambos os lados do Atlântico estão errados. Quando alguém defende a autonomia pessoal está tomando um partido. A autonomia pessoal defenderá a permissão da blasfêmia e da pornografia, e nesse ponto o devoto e o puritano têm um problema. Se a importância da autonomia for uma das questões sobre as quais existem várias respostas verdadeiras, então o liberalismo está impondo sua resposta às pessoas que têm uma resposta própria racional, embora diferente.
Os liberais pluralistas reagirão com graus de veemência variados. Alguns afirmarão enfaticamente que a autonomia é necessária para todos, independentemente da tradição, caso se pretenda viver uma vida boa segundo os próprios padrões. Outros afirmarão, com menor ênfase, que embora a autonomia realmente não faça parte de todas as tradições, esse fato levanta alguns problemas num mundo em que todas as pessoas cada vez mais aderem à celebração liberal da autonomia.
Gray antecipa as duas linhas de raciocínio. Diz, por exemplo, que alguns imigrantes asiáticos nos países ocidentais constituem um exemplo de pessoas que prosperaram "sem adotar a autonomia pessoal como ideal". Mas a maioria dos liberais provavelmente não acha isso muito convincente. Se acreditarmos que a autonomia é um valor humano básico, negaremos que aqueles que tentam viver sem ela estão se saindo bem, ou pelo menos tão bem quanto possível. A resposta liberal enfática não vai vencer pela mera afirmação do contrário. E o defensor menos firme da validade do liberalismo provavelmente não aceitará a descrição dos imigrantes asiáticos rapidamente esboçada por Gray.
É pelo menos discutível que a maioria dos imigrantes do sul da Ásia para a Grã-Bretanha e os imigrantes do Extremo Oriente para os Estados Unidos, assim como muitas pessoas que ficaram na Ásia, foram cada vez mais atraídos por algum tipo de autonomia. Gray rejeita os que vêem aí um "americanocentrismo", mas isso é mais um insulto do que um argumento.


Kwame Anthony Appiah é professor de estudos afro-americanos e de filosofia na Universidade Harvard e autor de, entre outros, "Na Casa de Meu Pai" (Contraponto).
Tradução de Clara Allain.

Two Faces of Liberalism
161 págs., US$ 25,00
de John Gray. The New Press (EUA).

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 285-4033) e, no Rio, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994).




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