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Ensaísta analisa as diferentes conotações do conceito nos dois lados do Atlântico Norte
Modulações do liberalismo
Kwame Anthony Appiah
especial para "The NYT Book Review"
A palavra "liberalismo" evoca na Inglaterra associações muito diferentes das que evoca nos
EUA. No primeiro país, espera-se que os políticos liberais cuidem especialmente da liberdade
-por exemplo, favorecendo a abolição de restrições ao
uso de drogas, ao sexo consensual e ao suicídio-, enquanto os economistas liberais se preocupam especialmente com o mercado livre e os direitos à propriedade.
Nos EUA, onde todo mundo pelo menos diz defender a
liberdade e o livre mercado, a preocupação mais clara
do liberalismo é com as condições econômicas dos desprivilegiados, o que na Europa seria o foco da esquerda
socialista. Apesar dessa divisão de vocabulários e práticas públicas, existe uma animada conversa filosófica
transatlântica sobre o significado da tradição liberal. As
figuras proeminentes nesse debate são John Rawls, nos
EUA, e o já morto sir Isaiah Berlin (1909-1997), na Inglaterra.
Essas figuras muito diferentes refletem a brecha política que citei acima. Rawls é muito mais ambicioso em
relação à função do governo de evitar o pior. Sir Isaiah,
por outro lado, foi um exilado da Rússia soviética que
passou boa parte da vida falando sobre os perigos da ingerência do governo sobre nossas liberdades em nome
de um bem maior. Diante do triplo slogan da Revolução
Francesa, ambos apóiam a liberdade, Rawls acrescenta
a igualdade e nenhum dos dois tem muito tempo para a
fraternidade.
John Gray, professor na Escola de Economia de Londres, é um dos principais acadêmicos dessa tradição liberal. "Two Faces of Liberalism" (Duas Faces do Liberalismo), seu novo livro, certamente pretende nos levar
além do atual debate. Em consequência, sua primeira
tarefa é contestar o quadro de suposições existente.
Suas queixas contra Rawls -que valem como queixas contra grande parte da filosofia liberal americana-
são várias. Ele considera Rawls culpado de "legalismo",
porque deseja preservar nossos direitos por meio de
uma Constituição que efetivamente retire muitas questões do debate político, colocando-as, como costumam
dizer os opositores ao sistema americano, nas mãos de
juízes não-eleitos. Esse legalismo não
apenas expressa hostilidade à política,
afirma Gray, como também depende da
aceitação de que, quando houver conflitos de direitos, esses juízes poderão decidir que direito deve predominar, sem ter
de recorrer a opiniões morais controversas. Sua tese é que a decisão sobre qual
direito favorecer muitas vezes depende
de posições morais contestadas.
Aqui encontramos a mais séria discussão de Gray com grande parte da filosofia liberal americana recente. Ele contrapõe o que chama de "ideal de consenso racional" liberal, que supõe que pessoas racionais devem em última
instância aceitar que determinado conjunto de arranjos
políticos básicos é o melhor. Se isso fosse verdade, realmente seria possível, como propôs Rawls, colocar o
próprio sistema político acima das divergências políticas. Mas, como a maioria de seus pares na filosofia liberal, Rawls acredita que há muitas questões sobre como
devemos viver nossas vidas com as quais não precisamos concordar.
Anterioridade da política
No entanto Rawls
acredita que estamos certos em aceitar o valor de certos
direitos humanos fundamentais e que estes constituem
a base para se criar uma Constituição, enquanto Gray
acredita, em contraste, que quase nada sobre arranjos
constitucionais e direitos básicos pode ser definido antes do debate político.
Para substituir o programa de Rawls e seu grupo,
Gray oferece o que chama de liberalismo do modus vivendi. "O fim do modus vivendi", diz ele no início, "não
é um bem supremo -ou a paz. É reconciliar bens conflitantes. É por isso que o modus vivendi pode ser praticado por modos de vida com visões opostas do bem".
Gray sugere que todas as pessoas, sejam quais forem
seus modos de vida, têm interesse na coexistência.
Também existem certos males universais que põem em
perigo uma vida humana digna baseada em qualquer
concepção do bem. "Ser torturado ou obrigado a presenciar a tortura de seres amados ou compatriotas; ser
separado dos amigos, parentes ou do país (...) -esses
são os grandes males dos que os sofrem. Na medida em
que uma concepção do bem não abranja essas experiências, ela é defeituosa e até mentirosa." Assim ele favorece um regime internacional de direitos humanos
para proteger as pessoas desses males universais.
Os argumentos de Gray pelo modus vivendi e contra
o liberalismo do consenso racional repousam intensamente no que Isaiah Berlin chamou de "pluralismo", a
idéia de que "nem todas as perguntas sobre o bem têm
uma resposta verdadeira". Como valorizam coisas de
forma diferente, os adeptos desses modos de vida diferentes às vezes não conseguem concordar com o quadro de direitos liberal. O devoto pode desejar uma sociedade na qual blasfêmia seja crime; o
puritano pode desejar uma sociedade
em que a pornografia seja proibida. Para
eles, a liberdade de expressão não inclui a
blasfêmia ou a lascívia. Os defensores da
livre expressão responderão que todos
têm a liberdade de fazer ouvidos moucos
para palavras ofensivas ou de exercer sua
liberdade de condená-las, mas que restringi-las ofende os direitos do pornógrafo.
Nesses casos, afirma Gray, não podemos garantir que uma opinião seja correta e outra errada. O valor pluralismo significa que pode haver mais de uma maneira de estar certo. A opinião
de Gray, com efeito, é que há menos consenso sobre
questões morais entre os diversos modos de vida do que
supõem os teóricos liberais. Além disso, algumas das
principais discórdias que dividem as pessoas e os países
não podem ser superadas apenas por meio da razão.
Poder-se-ia pensar que a resposta liberal adequada seria dizer, como Isaiah Berlin, que as pessoas devem ter o
direito de fazer suas próprias opções. O único valor que
o governo deveria defender, depois de garantir a paz, é a
autonomia pessoal. Não, é claro, na forma de uma teoria filosófica requintada, mas apenas deixando para as
pessoas a responsabilidade por suas próprias vidas.
Mas é aí que John Gray acha que os liberais contemporâneos de ambos os lados do Atlântico estão errados.
Quando alguém defende a autonomia pessoal está tomando um partido. A autonomia pessoal defenderá a
permissão da blasfêmia e da pornografia, e nesse ponto
o devoto e o puritano têm um problema. Se a importância da autonomia for uma das questões sobre as quais
existem várias respostas verdadeiras, então o liberalismo está impondo sua resposta às pessoas que têm uma
resposta própria racional, embora diferente.
Os liberais pluralistas reagirão com graus de veemência variados. Alguns afirmarão enfaticamente que a autonomia é necessária para todos, independentemente
da tradição, caso se pretenda viver uma vida boa segundo os próprios padrões. Outros afirmarão, com menor
ênfase, que embora a autonomia realmente não faça
parte de todas as tradições, esse fato levanta alguns problemas num mundo em que todas as pessoas cada vez
mais aderem à celebração liberal da autonomia.
Gray antecipa as duas linhas de raciocínio. Diz, por
exemplo, que alguns imigrantes asiáticos nos países
ocidentais constituem um exemplo de pessoas que
prosperaram "sem adotar a autonomia pessoal como
ideal". Mas a maioria dos liberais provavelmente não
acha isso muito convincente. Se acreditarmos que a autonomia é um valor humano básico, negaremos que
aqueles que tentam viver sem ela estão se saindo bem,
ou pelo menos tão bem quanto possível. A resposta liberal enfática não vai vencer pela mera afirmação do
contrário. E o defensor menos firme da validade do liberalismo provavelmente não aceitará a descrição dos
imigrantes asiáticos rapidamente esboçada por Gray.
É pelo menos discutível que a maioria dos imigrantes
do sul da Ásia para a Grã-Bretanha e os imigrantes do
Extremo Oriente para os Estados Unidos, assim como
muitas pessoas que ficaram na Ásia, foram cada vez
mais atraídos por algum tipo de autonomia. Gray rejeita os que vêem aí um "americanocentrismo", mas isso é
mais um insulto do que um argumento.
Kwame Anthony Appiah é professor de estudos afro-americanos e
de filosofia na Universidade Harvard e autor de, entre outros, "Na Casa de Meu Pai" (Contraponto).
Tradução de Clara Allain.
Two Faces of Liberalism
161 págs., US$ 25,00
de John Gray. The New Press
(EUA).
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