São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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"Viração" estuda a experiência de meninos de rua

Uma exposição da exclusão

Gilberto Dimenstein
do Conselho Editorial

Meninos de rua são outdoors ambulantes que, a cada esquina, anunciam a exclusão social aos motoristas e transeuntes, transmitindo mensagens que oscilam entre pena e medo.
É o movimento visível, palpável e sonoro da miséria, mal contido pelos vidros trancados, extensões do muro da casa. O menino de rua simboliza ao mesmo tempo a compaixão do abandono da criança e a perspectiva da marginalidade inexorável; nele, a inocência infantil e a periculosidade do adulto se mesclam na paisagem urbana. São tão poucos e produzem tanto medo, muitas vezes disfarçado de indiferença.
Por serem tão poucos e destilarem tanto medo, síntese da incivilidade urbana, surgem as propostas mais simplistas para enfrentá-los. Como todos sabem, para as idéias complexas sempre há uma solução rápida, simples -e equivocada.
Entre 1991 e 1995, a antropóloga Maria Filomena Gregori, professora da Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), se embrenhou nas tribos nômades dos meninos de rua da cidade de São Paulo para escrever "Viração". É um antídoto contra simplificações tão a gosto dos governos e, não raro, dos meios de comunicação.
Simplificação é, por exemplo, imaginar que os meninos estão na rua por causa da miséria. Ou apenas por causa da violência familiar.
Ela captou, por meio do instrumental etnográfico -a convivência com seu foco de estudo-, os segredos da viração, a arte de sobreviver no limite, brincando na fronteira entre a vida e a morte.
A viração exige a circularidade, uma espécie de nomadismo, fazendo das ruas cenários de caçada, movidos em uma teia de causas que se complementam e se estimulam, misturando miséria, violência familiar, drogas, a psicologia do adolescente, o encanto pelas ruas e até mesmo, paradoxalmente, o assistencialismo social.
Ela sustenta a idéia, baseada nas entrevistas em profundidade, de que não se consegue entender o menino de rua sem perceber a circulação, que faz de tudo e de todos ligações tênues e provisórias. Para cada circunstância, um papel e discurso; se virar é aprender a se adaptar no que parece ser inadaptável.

Postergar a morte
A circulação cria malhas de contatos que reproduzem, na rua, a família e estabelece um rígido código de ética, regido por uma hierarquia de poder. Na viração, circular é sobreviver, assim como garantir, na marra, os territórios conquistados, para roubar, mendigar ou traficar. Enganar não é mentir ou falsear; é dar um jeito de postergar a morte ou a prisão.
A riqueza da pesquisa está justamente em acompanhar esse movimento, captando e traduzindo os códigos da marginalidade dessas tribos.
"Viração" revela, com notável precisão, a rede que draga a criança e o adolescente -e que os retém e mata. Nessa rede está, inclusive, a trama institucional.
Ela mostrou a monumental taxa de desperdício provada por essa trama, feita por várias esferas de governo e entidades não-governamentais, que não se entendem, não trabalham em conjunto, interrompem abruptamente seus serviços. Muitas vezes, se engalfinham numa briga por recursos e reconhecimento.
Programas de governo são boicotados pelo próprio governo que, por sua vez, não conversa com entidades governamentais, que brigam com outras entidades não-governamentais. Joguem-se também nessa teia a Promotoria Pública e a Justiça.
O menino de rua acaba por vê-los como mais um espaço de viração, onde colhem episódicos benefícios. Pouco, porém, para tirá-los da rua e encaminhá-los para o estudo e profissão.
Quem tiver de lidar, direta ou indiretamente, com meninos de rua está obrigado a ler "Viração", para economizar dinheiro, evitando soluções simplistas. A obra tem o mérito de não se render à leviandade academicista, com seus rituais de calculada incompreensão aos leigos, se prestando aos iniciados, mas, em especial, a quem veja ali inspiração para políticas públicas.



Viração
288 págs., R$ 28,50
de Maria Filomena Gregori. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801)


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