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"Viração" estuda a experiência de meninos de rua
Uma exposição da exclusão
Gilberto Dimenstein
do Conselho Editorial
Meninos de rua são outdoors ambulantes
que, a cada esquina, anunciam a exclusão
social aos motoristas e transeuntes, transmitindo mensagens que oscilam entre pena e medo.
É o movimento visível, palpável e sonoro da miséria,
mal contido pelos vidros trancados, extensões do muro
da casa. O menino de rua simboliza ao mesmo tempo a
compaixão do abandono da criança e a perspectiva da
marginalidade inexorável; nele, a inocência infantil e a
periculosidade do adulto se mesclam na paisagem urbana. São tão poucos e produzem tanto medo, muitas
vezes disfarçado de indiferença.
Por serem tão poucos e destilarem tanto medo, síntese da incivilidade urbana, surgem as propostas mais
simplistas para enfrentá-los. Como todos sabem, para
as idéias complexas sempre há uma solução rápida,
simples -e equivocada.
Entre 1991 e 1995, a antropóloga Maria Filomena Gregori, professora da Universidade Estadual de Campinas
e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), se embrenhou nas tribos nômades
dos meninos de rua da cidade de São Paulo para escrever "Viração". É um antídoto contra simplificações tão
a gosto dos governos e, não raro, dos meios de comunicação.
Simplificação é, por exemplo, imaginar que os meninos estão na rua por causa da miséria. Ou apenas por
causa da violência familiar.
Ela captou, por meio do instrumental etnográfico -a
convivência com seu foco de estudo-, os segredos da
viração, a arte de sobreviver no limite, brincando na
fronteira entre a vida e a morte.
A viração exige a circularidade, uma
espécie de nomadismo, fazendo das ruas
cenários de caçada, movidos em uma
teia de causas que se complementam e se
estimulam, misturando miséria, violência familiar, drogas, a psicologia do adolescente, o encanto pelas ruas e até mesmo, paradoxalmente, o assistencialismo
social.
Ela sustenta a idéia, baseada nas entrevistas em profundidade, de que não se consegue entender o menino
de rua sem perceber a circulação, que faz de tudo e de
todos ligações tênues e provisórias. Para cada circunstância, um papel e discurso; se virar é aprender a se
adaptar no que parece ser inadaptável.
Postergar a morte
A circulação cria malhas de
contatos que reproduzem, na rua, a família e estabelece
um rígido código de ética, regido por uma hierarquia de
poder. Na viração, circular é sobreviver, assim como garantir, na marra, os territórios conquistados, para roubar, mendigar ou traficar. Enganar não é mentir ou falsear; é dar um jeito de postergar a morte ou a prisão.
A riqueza da pesquisa está justamente em acompanhar esse movimento, captando e traduzindo os códigos da marginalidade dessas tribos.
"Viração" revela, com notável precisão, a rede que
draga a criança e o adolescente -e que os retém e mata.
Nessa rede está, inclusive, a trama institucional.
Ela mostrou a monumental taxa de desperdício provada por essa trama, feita por várias esferas de governo
e entidades não-governamentais, que não se entendem,
não trabalham em conjunto, interrompem abruptamente seus serviços. Muitas vezes, se engalfinham numa briga por recursos e reconhecimento.
Programas de governo são boicotados pelo próprio
governo que, por sua vez, não conversa com entidades
governamentais, que brigam com outras entidades
não-governamentais. Joguem-se também nessa teia a
Promotoria Pública e a Justiça.
O menino de rua acaba por vê-los como mais um espaço de viração, onde colhem episódicos benefícios.
Pouco, porém, para tirá-los da rua e encaminhá-los para o estudo e profissão.
Quem tiver de lidar, direta ou indiretamente, com
meninos de rua está obrigado a ler "Viração", para economizar dinheiro, evitando soluções simplistas. A obra tem o mérito de não se render à leviandade academicista, com seus rituais de calculada incompreensão aos leigos, se prestando
aos iniciados, mas, em especial, a quem
veja ali inspiração para políticas públicas.
Viração
288 págs., R$ 28,50
de Maria Filomena Gregori.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32,
CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/
3846-0801)
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