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Torcidas-empresas
Organizadas se converteram em lugares de negócios, valendo-se do marketing e do merchandising para competir com
o material dos clubes
BERNARDO BUARQUE DE
HOLLANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em caravana de
apoio ao clube que
contagiou o país
no final dos anos
1970, o Corinthians Paulista, no seu drama de perseguição por um
título depois de quase duas
décadas de jejum, os Gaviões da Fiel distribuíam
um folheto aos viajantes. O
lembrete aos corintianos
prescrevia: "Não corra, não
mate e não morra".
O prospecto foi na época
guardado pelo sociólogo
Sérgio Miceli e consta da
abertura de um dos primeiros artigos acadêmicos sobre o fenômeno das torcidas organizadas no Brasil.
Em 1978, o texto foi publicado pela "Revista de Administração de Empresas",
da Fundação Getúlio Vargas (RJ). Passadas mais de
três décadas de sua publicação, o lembrete ainda ecoa
como advertência, mas
muito pouco de sua prudente recomendação parece ser hoje aplicável a determinados setores de torcidas
organizadas.
Correr, matar e morrer
tornaram-se verbos até certo ponto corriqueiros, atrativas palavras de ordem entre alguns adeptos dessas
associações, como se pode
observar nos incidentes fatais do último fim de semana, envolvendo torcedores
de Palmeiras e São Paulo.
As rodovias, as ferrovias
ou quaisquer outros meios
de acesso aos estádios são
agora os locais privilegiados
para o enfrentamento desses grupos.
Houve, de fato, uma mudança na dinâmica espacial
dos confrontos entre torcidas organizadas. Se, até o final dos anos 80, as torcidas
se confrontavam com mais
frequência dentro dos estádios, a partir do decênio seguinte, a crescente vigilância em seu interior levou à
sistematização das brigas
para fora das arenas.
Desde então, a cada ano, o
raio de ação da polícia nas
imediações do estádio tem
se alargado, criando uma
espécie de segundo território de conflito. Este se afigura muito mais amplo e
menos controlável em relação ao primeiro, o que coloca as forças da ordem diante de uma nova série de desafios a enfrentar.
Agonia
Conforme muitos estudiosos já assinalaram, a violência -bem como a busca
por sua sublimação- é um
componente agonístico liminar, constitutivo da sociedade e da atividade esportiva. Como tal, essa tensão, quer latente quer manifesta, está presente em um
esporte popular como o futebol.
No que diz respeito às
torcidas organizadas, a especificidade de seus embates físicos é que ela assiste a
ciclos violentos, verdadeiras "espirais" que fazem e
desfazem vendetas ao sabor
das gerações e das lideranças à frente dos grupos, com
o efeito alarmante de difundir aquilo que na Europa se
chamou de "pânico moral".
A cada nova tragédia, a
sociedade é instada a se mobilizar e a expiar os seus
"bodes". Quase sempre, a
pedra de toque para a solução do problema recai na interdição das torcidas, por
meio da simples extinção
jurídica ou da proscrição
dos "baderneiros".
Como se isso fosse apenas
uma questão de norma -e
não, principalmente, de
costume-, os decretos vêm
redundando em sucessivos
fracassos.
Por que a situação é tão
difícil de ser solucionada?
Em parte, porque a aparente barbárie que evoca o
comportamento violento
das torcidas constitui apenas sua franja superficial.
Quando se discute o problema, pouco se atenta para
o fato de que as torcidas organizadas não estão apenas
na contramão dos princípios desportivos ou nos antípodas do futebol mercantilizado moderno.
De forma homóloga à lógica dos clubes-empresas,
as agremiações de torcedores se tornaram elas próprias torcidas-empresas.
Orbitam em torno dos
clubes -razão de existirem-, mas são também autônomas, com sedes, símbolos, legendas, cânticos e logotipos que traduzem uma
identidade à parte.
Seguindo o etos comercial, as torcidas organizadas
converteram-se em lugares
de negócios, passando a se
valer do marketing, do merchandising e da oferta de
uma série de produtos ligados a suas grifes.
Elas competem, assim,
com o material dos clubes e
atendem à demanda de seu
público consumidor, adolescentes e jovens seduzidos pelo pertencimento a
uma coletividade.
A expansão em âmbito
nacional das torcidas acarreta ainda o recrutamento
de mais simpatizantes, o
que leva ao seu alargamento
simbólico-territorial, à semiprofissionalização de
seus quadros e à formação
de uma complexa rede de
relações sociais.
Nos primórdios do futebol, dizia-se que a prática
esportiva era uma atividade
intrinsecamente amadora,
razão pela qual o jogador
não podia ganhar dinheiro
com o jogo.
No Brasil, foi preciso esperar até os anos 1930 para
que tal formulação fosse refeita, com a adoção do profissionalismo no futebol e
com a transformação do jogador em atleta profissional, capaz de auferir astronômicos salários.
Talvez hoje nós estejamos, em meio à globalização do futebol, onde tudo se
comercializa e se rentabiliza, assistindo a um debate
moral não muito distinto.
Se o torcedor representa
a quintessência da paixão
futebolística, último bastião
de um idealizado "amadorismo", até que ponto estaríamos dispostos a aceitar o
fato de que o torcedor organizado pode fazer de sua
atividade uma profissão legítima e legalizada?
BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA é
pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getúlio Vargas (RJ).
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