São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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Caçada aos tesouros

Repatriação de objetos históricos pode fragmentar acervos de grandes museus e empobrecer o mundo

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Mais conhecido por outros fatores, Napoleão Bonaparte [1769-1821] é famoso -ou infame- na história cultural por ter incentivado a pilhagem maciça de obras de arte dos países que conquistou, como Itália ou Espanha.
É claro que ele não foi o primeiro conquistador a agir dessa maneira -apenas colecionou em escala napoleônica. Nem foi o último conquistador a saquear: durante a Segunda Guerra, os Exércitos alemão, russo e americano levaram tesouros dos países derrotados. O que não é igualmente bem conhecido é a história de como muitos objetos belos ou históricos chegaram a museus do Ocidente.
Quando se faz uma visita ao Museu Britânico, em Londres, ao Louvre, em Paris, ou à Ilha dos Museus de Berlim, é fácil enxergar seus acervos como algo natural e garantido, presumindo que sempre estiveram ali e esquecendo que foram adquiridos ao longo do tempo.
A palavra "adquiridos", empregada com frequência nos círculos dos museus, é uma espécie de jargão resumido que alude a doações, aquisições e objetos pilhados -não pelo museu, é claro, mas por alguns marchands e doadores. Tome-se o caso dos chamados "mármores de Elgin".
No início do século 19, lorde Elgin [1766-1841], o então embaixador britânico no Império Otomano (que, naquela época, incluía a Grécia), obteve autorização para retirar esculturas clássicas encontradas sobre o solo ou debaixo dele perto do Pártenon, em Atenas -mas não para remover artefatos do próprio templo, que foi o que aconteceu de fato.
Elgin pretendia ficar com as esculturas, mas precisava de dinheiro, de modo que acabou vendendo sua coleção ao Museu Britânico. Outro caso: as enormes esculturas presentes no salão assírio do Museu Britânico foram tiradas do Iraque (outra parte do Império Otomano) por Austen Layard [1817-94], diretor de escavações nesse país.
As esculturas de bronze que o museu tem e que são originárias do [antigo reino do] Benin, na África ocidental, chegaram à Inglaterra após uma chamada "expedição punitiva" do Exército britânico em 1897, enquanto alguns dos manuscritos tibetanos chegaram após uma expedição militar ao Tibete em 1903, na qual vários mosteiros foram saqueados.
Outros manuscritos preciosos foram adquiridos depois de o arqueólogo húngaro-britânico Aurel Stein [1862-1943] ter descoberto e levado embora cerca de 40 mil rolos de pergaminho (incluindo o famoso "Sutra do Diamante") das cavernas Dunhuang, um complexo de templos budistas na fronteira ocidental da China. Stein pagou 220 pelos pergaminhos, um valor pequeno mesmo na época de sua expedição, 1907.

Meios questionáveis
Como inglês, senti-me constrangido quando tomei conhecimento dos meios pelos quais o Museu Britânico obteve a posse de alguns dos objetos maravilhosos com os quais estou familiarizado desde minha infância. Mas ele não foi o único a adquirir objetos por meios questionáveis, especialmente no século 19 e no início do 20. Quando, em 1863, o imperador francês Napoleão 3º enviou um exército ao México para reforçar as reivindicações de seu colega imperador Maximiliano, estudiosos acompanharam a expedição e retornaram com vários artefatos astecas.
As forças da aliança de oito países que interveio na China em 1900 para suprimir a chamada Revolta dos Boxers saquearam Pequim, levando embora muitos bronzes e peças de porcelana e jade que acabaram chegando a museus ocidentais.
Em Berlim, alguns objetos famosos expostos na Ilha dos Museus incluem o Portão de Ishtar, retirado da Babilônia, no atual Iraque, e o Altar de Pergamon, um monumento da Antiguidade grega levado da atual Turquia.
O arqueólogo americano Hiram Bingham [1875-1956] tirou cerca de 40 mil objetos, desde esqueletos até artefatos de cerâmica, de Machu Picchu durante uma expedição ao Peru promovida pela Universidade Yale em 1912.
Seria fácil acrescentar mais dados a essa lista resumida. Esses objetos saqueados serão devolvidos? Deveriam ser devolvidos? O Louvre só pôde expor os objetos roubados por Napoleão por poucos anos: a queda de Napoleão, em 1815, levou à devolução dos artefatos.
Na maioria dos outros casos, os pedidos de devolução são relativamente recentes, desde a década de 1980, quando Melina Mercouri, uma antiga atriz que se tornou ministra da Cultura da Grécia, encabeçou uma campanha defendendo a repatriação dos mármores de Elgin (ou os mármores do Pártenon, como os gregos os chamam).
O governo nigeriano pediu a devolução dos bronzes do Benin, por exemplo. Até agora apenas alguns poucos pedidos de repatriação de artefatos tiveram êxito. Em 1971, por exemplo, o governo dinamarquês devolveu à Islândia alguns manuscritos medievais famosos.
Museus dos EUA e do Canadá já devolveram vários artefatos aos "primeiros povos" que os reivindicaram, incluindo o poste sagrado da tribo omaha, devolvido pelo Museu Peabody, da Universidade Harvard, em 1989. Em 2007, foi fechado um acordo entre a Universidade Yale e o governo peruano para a devolução dos objetos levados por Bingham de Machu Picchu.
O aumento dos pedidos de repatriação vem ocorrendo em um momento em que cresce entre a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], governos nacionais, museus e o público em geral a preocupação com o que hoje é conhecido como "patrimônio cultural".

Controvérsia
Esses pedidos de devolução suscitam uma pergunta ampla e difícil de responder. Será que cada objeto de um patrimônio cultural dado que, no passado, foi retirado de seu ambiente original, quer tenha sido doado, comprado ou roubado, deveria ser devolvido? Se sim, a quem deveria ser devolvido? Afinal, os donos originais de todos os artefatos mencionados neste artigo já morreram há muito tempo.
Terão os países modernos o direito de propriedade sobre algo que foi produzido no passado em um território que hoje é deles? Essas questões continuam a ser altamente controversas, e a controvérsia envolve governos, museus, advogados e marchands. A meu ver, o mundo sairia empobrecido se tudo fosse devolvido. O acúmulo de objetos de muitos lugares diferentes em grandes museus públicos proporcionou a grande número de pessoas a oportunidade de apreciar as realizações de outras culturas: a pintura egípcia, máscaras africanas, gravuras japonesas e assim por diante.
Por outro lado, determinados objetos gozam de status especial porque se tornaram símbolos de identidade nacional. Na minha opinião, os mármores do Pártenon deveriam ser devolvidos à Grécia, o busto de Nefertiti, ao Egito, e pelo menos alguns dos bronzes do Benin, à Nigéria, mas grandes acervos internacionais como os do Museu Britânico e do Louvre não deveriam ser fragmentados. Como mostra o número de visitantes estrangeiros que passam por esses museus, esses acervos viraram parte de uma cultura global.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "A Tradução Cultural" (ed. Unesp) e "O Historiador como Colunista" (ed. Civilização Brasileira). Escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Clara Allain.



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