São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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Dançando no escuro

"Além da Escuridão", da premiada Hilary Mantel, tem como protagonista uma médium que se apresenta nos palcos ingleses

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

É na convergência de duas importantes tradições das artes britânicas, a do humor negro e a das histórias de fantasmas, que pode ser situado "Além da Escuridão", romance de 2005 de Hilary Mantel que chega agora às livrarias brasileiras.
Se juntarmos à série de predecessores importantes o fato de a autora ter recebido em 2009 o prestigioso Man Booker Prize [com o livro "Wolf Hall", a ser lançado pela editora Record], há boas razões para começar animadamente a leitura das 420 páginas do volume. E elas se confirmam em termos.
Como sabe, por exemplo, qualquer um que tenha acompanhado nas últimas décadas os quadrinhos do Homem-Aranha, "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades". Além delas, vêm do mesmo modo, como o simpático aracnídeo reaprende com frequência, perdas, sofrimento, insegurança, decisões difíceis, amores impossíveis etc.
É mais ou menos nessa "chave" que se situa a heroína de "Além da Escuridão", a desajeitada Alison Hart: vê e escuta espíritos desde a terrível infância, na qual precisa lidar com a ausência de pai (como sempre, nessas histórias...) e com a mãe bêbada e seus amigos violentos e abusivos.
Quando cresce, já médium profissional, se torna capaz de, em uma simples ligação telefônica, perceber doenças de seus interlocutores ou de, nos palcos em que se apresenta em cidadezinhas próximas a Londres, conversar com facilidade com parentes das pessoas da plateia.
E ela não se rebela com a turma de espíritos malignos que a acompanha permanentemente nem com as críticas constantes de sua assistente, Colette...

Artificial
Ainda que conduza com razoável segurança a narrativa, com destaque especial para diálogos bem desenvolvidos, Mantel vez por outra escorrega em trechos como o seguinte, duros de engolir: "Colette anseia para que apareça um homem em sua vida.
Nas noites, ela sente, no apartamento de Wexham, o lento arrastar do desejo além da parede rebocada de gesso. Colette ocupa os dedinhos, em busca do prazer solitário..." Também fica artificial a pontuação da vida das protagonistas com eventos históricos, como o 11 de Setembro ou a morte da princesa Diana. Há, por fim, em "Além da Escuridão", uma espécie de vício estrutural de encerramento que contamina um número imenso de romances e há tempos já não funciona como marca de apuro técnico.
Trata-se de mania de dobrar a narrativa sobre si mesma, misturando o passado, o presente e o futuro das personagens, em passagens superpostas nas quais o foco de atenção do narrador se alterna rapidamente (parágrafo a parágrafo, muitas vezes) entre aqueles seres que tão lentamente, até aquele momento, vinham sendo apresentados, como se fosse necessário, antes de uma batida que termina com tudo, acelerar ao máximo o carro.
A certa altura do livro, Alison reflete: "Você dá a partida, começa a falar, não sabe o que vai dizer. Não sabe nem como chegar ao fim da frase. Não sabe nada. E aí, de repente, sabe. Tem de andar às cegas. E vai dar direto na verdade".
Talvez seja um bom conselho para a própria autora, talvez, contudo, ela precisasse fazer exatamente o contrário.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

ALÉM DA ESCURIDÃO
Autora: Hilary Mantel
Tradução: Maria D. Alexandre
Editora: Bertrand Brasil (tel. 0/xx/21/ 2585-2070)
Quanto: R$ 45 (420 págs.)




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