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Dançando no escuro
"Além da Escuridão", da premiada Hilary Mantel, tem como protagonista uma médium que se apresenta nos palcos ingleses
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
É na convergência de
duas importantes tradições das artes britânicas, a do humor negro e a das histórias de
fantasmas, que pode ser situado "Além da Escuridão", romance de 2005 de Hilary Mantel que chega agora às livrarias
brasileiras.
Se juntarmos à série de predecessores importantes o fato
de a autora ter recebido em
2009 o prestigioso Man Booker
Prize [com o livro "Wolf Hall",
a ser lançado pela editora Record], há boas razões para começar animadamente a leitura
das 420 páginas do volume. E
elas se confirmam em termos.
Como sabe, por exemplo,
qualquer um que tenha acompanhado nas últimas décadas
os quadrinhos do Homem-Aranha, "com grandes poderes
vêm grandes responsabilidades". Além delas, vêm do mesmo modo, como o simpático
aracnídeo reaprende com frequência, perdas, sofrimento,
insegurança, decisões difíceis,
amores impossíveis etc.
É mais ou menos nessa "chave" que se situa a heroína de
"Além da Escuridão", a desajeitada Alison Hart: vê e escuta
espíritos desde a terrível infância, na qual precisa lidar com a
ausência de pai (como sempre,
nessas histórias...) e com a mãe
bêbada e seus amigos violentos
e abusivos.
Quando cresce, já médium
profissional, se torna capaz de,
em uma simples ligação telefônica, perceber doenças de seus
interlocutores ou de, nos palcos em que se apresenta em cidadezinhas próximas a Londres, conversar com facilidade
com parentes das pessoas da
plateia.
E ela não se rebela com a turma de espíritos malignos que a
acompanha permanentemente
nem com as críticas constantes
de sua assistente, Colette...
Artificial
Ainda que conduza com razoável segurança a narrativa,
com destaque especial para
diálogos bem desenvolvidos,
Mantel vez por outra escorrega
em trechos como o seguinte,
duros de engolir:
"Colette anseia para que apareça um homem em sua vida.
Nas noites, ela sente, no apartamento de Wexham, o lento arrastar do desejo além da parede
rebocada de gesso. Colette ocupa os dedinhos, em busca do
prazer solitário..."
Também fica artificial a pontuação da vida das protagonistas com eventos históricos, como o 11 de Setembro ou a morte
da princesa Diana.
Há, por fim, em "Além da Escuridão", uma espécie de vício
estrutural de encerramento
que contamina um número
imenso de romances e há tempos já não funciona como marca de apuro técnico.
Trata-se de mania de dobrar
a narrativa sobre si mesma,
misturando o passado, o presente e o futuro das personagens, em passagens superpostas nas quais o foco de atenção
do narrador se alterna rapidamente (parágrafo a parágrafo,
muitas vezes) entre aqueles seres que tão lentamente, até
aquele momento, vinham sendo apresentados, como se fosse
necessário, antes de uma batida
que termina com tudo, acelerar
ao máximo o carro.
A certa altura do livro, Alison
reflete: "Você dá a partida, começa a falar, não sabe o que vai
dizer. Não sabe nem como chegar ao fim da frase. Não sabe
nada. E aí, de repente, sabe.
Tem de andar às cegas. E vai
dar direto na verdade".
Talvez seja um bom conselho
para a própria autora, talvez,
contudo, ela precisasse fazer
exatamente o contrário.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
na Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da USP.
ALÉM DA ESCURIDÃO
Autora: Hilary Mantel
Tradução: Maria D. Alexandre
Editora: Bertrand Brasil (tel. 0/xx/21/ 2585-2070)
Quanto: R$ 45 (420 págs.)
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