|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+livros
A bisavó da Wikipédia
Obra coletiva, "Enciclopédia" de Diderot e D'Alembert inovou nas remissões, para driblar a censura, e condenou o colonialismo, diz Roger Chartier
PIERRE LE HIR
Na entrevista abaixo, publicada originalmente no jornal "Le Monde", o
historiador da cultura Roger Chartier fala sobre a
importância da "Enciclopédia"
iluminista.
Dirigida por Denis Diderot
(1713-84) e Jean d'Alembert
(1717-83), ela reuniu cerca de
72 mil artigos de mais de 140
autores, tornando-se um marco não apenas pelo ideal de catalogar "as ciências, as artes e
os ofícios", mas por sua forma
colaborativa e sua influência na
cultura revolucionária.
Professor no Collège de
France e diretor de estudos na
Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais (Paris), Chartier discute o caráter subversivo da "Enciclopédia", disponível on-line (em francês) no site
da Universidade de Chicago
(http://encyclopedie.uchicago.edu).
PERGUNTA - O sr. leu toda a "Enciclopédia"?
ROGER CHARTIER - Quem a leu na
íntegra? Talvez duas pessoas:
Diderot e o editor Le Breton,
que estava na origem do projeto. A pergunta é interessante
porque remete à própria estrutura da obra, ou seja, ao sistema
pelo qual um artigo remetia a
outro, utilizado por Diderot para as ideias mais audazes. Como o artigo "antropofagia" remetendo a "eucaristia".
Quando estamos na presença
dos 17 volumes de textos, completados por 11 volumes de ilustrações, cuja publicação foi feita gradativamente entre 1751 e
1772, a utilização das remissões
se torna problemática.
Paradoxalmente, é a versão
eletrônica da primeira edição
da "Enciclopédia", colocada
on-line pela Universidade de
Chicago, que torna eficaz hoje
um artifício concebido por Diderot como um dos mais filosóficos -ou seja, subversivos-
possíveis.
PERGUNTA - De que maneira é subversivo esse sistema de remissões?
CHARTIER - A "Enciclopédia" foi
publicada numa época de censura, de que foi vítima duas vezes. Em 1752, após a publicação
dos dois primeiros volumes,
por decisão do Conselho de Estado, que enxergou nela uma
semente de erros, de irreligião
e de corrupção dos costumes.
Depois, em 1759, atendendo
a pedido do Parlamento, que
conduz à perseguição aos livros
ditos "filosóficos" e os queima.
Em ambas as vezes, foi Malesherbes, diretor da Biblioteca
[cargo responsável por zelar
pela censura], que salvou o empreendimento.
Dentro desse contexto, em
que o privilégio da publicação
enfrentava a ameaça constante
de ser revogado, o jogo das remissões permitia contornar a
censura.
Muitos artigos cujos títulos
poderiam levar a imaginar que
estivessem entre os mais causticantes, como o artigo "censura", seguem, na realidade, um
tom muito moderado, de viés
puramente histórico.
Já outros, de aparência mais
anódina, abrigam as intenções
mais filosóficas e as críticas
mais ásperas às autoridades.
PERGUNTA - A "Enciclopédia" de
Diderot e D'Alembert não foi a primeira. Por que ela é tão singular?
CHARTIER - Inicialmente, seria
uma simples tradução da
"Cyclopaedia", de Ephraim
Chambers, publicada na Inglaterra em 1728 [na qual já se encontrava a remissão a eucaristia no artigo sobre os antropófagos]. Pouco depois, porém, o
projeto mudou radicalmente.
A "Enciclopédia" francesa
tornou-se uma produção coletiva, de um grupo de pessoas de
letras cuja ambição era dar voz
à filosofia das luzes e cobrir todos os campos do saber.
Apesar de a obra seguir uma
ordem alfabética, o "Discurso
Preliminar" de D'Alembert organizou esses conhecimentos
de maneira sistemática em torno das três grandes faculdades
do espírito humano: memória,
razão e imaginação.
Assim, ocorrem aproximações inesperadas, por exemplo
entre "religião" e "superstição",
"teologia" e "adivinhação", como fazendo parte da mesma família temática. Essa abordagem também rompe com uma
ordenação hierárquica em que
a teologia vinha sempre em primeiro lugar.
PERGUNTA - Em que medida esse
manifesto das luzes solapou os valores do Antigo Regime [que cairia em
1789, com a Revolução Francesa]?
CHARTIER - Além do artigo dedicado à "tolerância", muitos outros giram em torno da ideia de
tolerância: não se deve perseguir os indivíduos em razão de
suas crenças. Assim, condenou-se a repressão exercida
contra os protestantes.
Trata-se de uma ideia muito
forte, em uma França na qual
existiam uma só religião -o catolicismo- e uma só autoridade -a faculdade de teologia.
Outro questionamento dos
conceitos dominantes na época: a crítica à violência e à submissão impostas aos povos da
África ou da América.
Com relação ao campo político, a obra é mais prudente. Mas
lemos nela que "o fim da soberania é a felicidade do povo", o
que não é exatamente a linguagem do absolutismo.
PERGUNTA - Podemos enxergar nela os primórdios de 1789?
CHARTIER - Ela tornou possível
uma ruptura -ou melhor, a
tornou imaginável.
Não há nada de revolucionário ou mesmo de pré-revolucionário na "Enciclopédia", que se
mantém muito distante da virulência dos libelos, panfletos e
outras sátiras sediciosas que
aparecem na mesma época.
Mas ela ajudou a instilar, difundir, disseminar uma maneira de pensar que se distancia
das autoridades -da autoridade política e, mais ainda, da religiosa. Foi preciso uma adesão
ao processo revolucionário ou,
ao menos, uma aceitação.
Os leitores da "Enciclopédia"
certamente não eram o povo:
como mostrou o historiador
americano Robert Darnton,
eles pertenciam à aristocracia
esclarecida, às profissões liberais, ao mundo dos negociantes
-em suma, aos meios mais tradicionais do Antigo Regime.
Nesses círculos, a "Enciclopédia", juntamente com outros
escritos, impôs ideias e representações coletivas que não
provocaram 1789, mas, sim, o
permitiram.
PERGUNTA - O sonho enciclopédico
não teria se desfeito depois, com a
fragmentação dos conhecimentos?
CHARTIER - A virada aconteceu
no final do século 18, com a
"Enciclopédia Metódica", do livreiro e editor Panckoucke, que
refundou a "Enciclopédia" de
Diderot e D'Alembert, adotando uma organização por campos do saber.
A partir desse momento, perdeu-se a vivacidade de provocação da obra inicial: ela se ateve,
em parte, a sua organização
"racional", que atrapalhava as
classificações antigas.
Isso acabou com o esforço
magnífico de Diderot e D'Alembert para produzir um livro
de livros, uma soma dos conhecimentos na qual o homem honesto pudesse circular sem enclausuramentos.
A fragmentação dos conhecimentos é sem dúvida o preço a
pagar por seu aprofundamento.
A erudição sai ganhando, mas
conduz à antinomia das culturas -de um lado, a científica; de
outro, a literária-, presente em
todos os debates atuais sobre os
programas escolares.
PERGUNTA - A Wikipédia não seria
fruto do projeto de Diderot e D'Alembert?
CHARTIER - Em certo sentido,
sim, na medida em que se baseia nas contribuições múltiplas de uma espécie de associação de intelectuais invisíveis.
Mas Diderot com certeza não
teria aceito a simples justaposição de artigos, sem árvore de
conhecimentos nem ordem arrazoada, que caracteriza a Wikipédia. É um empreendimento democrático, aberto e ao
mesmo tempo extremamente
vulnerável, muito exposto a erros e falsificações. Assim, fica
visível a tensão entre o desejo
de constituição de um saber coletivo e a profissionalização dos
conhecimentos.
PERGUNTA - Olhando à distância, a
"Enciclopédia" mudou o mundo?
CHARTIER - Pode um livro mudar a face do mundo? Os autores gostariam de pensar que
sim. Eu prefiro dizer que um livro pode -em um lugar e um
tempo dados e, depois, por sua
trajetória por outros lugares e
outros tempos- mudar as representações e a relação com os
dogmas, com as autoridades.
A "Enciclopédia" exerceu esse papel, além das fronteiras do
reino da França. Mas o que faz
com que um livro possa ter um
impacto são as apropriações,
múltiplas e às vezes contraditórias, de que é objeto. A "Enciclopédia" talvez tenha sido um
dos germes da ruptura revolucionária, mas, ao mesmo tempo, foi rejeitada pelos revolucionários mais radicais.
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: Dançando no escuro Próximo Texto: +Lançamentos Índice
|